Capítulo 67: O calor
Tyla percebeu, ainda a certa distância, que algo estava muito mais errado que tinha previsto. O alerta do visor indicava que estava se aproximando da coordenada estimada, mas não foi o ponto vermelho que chamou sua atenção, e sim os brilhos irregulares refletindo no branco do terreno.
Pequenas placas metálicas estavam espalhadas sobre o gelo, presas em fendas ou meio soterradas pela neve que caia mais forte agora.
Tentando absorver a cena, diminuiu o ritmo, não por cansaço, mas porque seu coração tinha parado um instante de bater.
A queda tinha sido brutal.
— Não… — murmurou.
Um lago congelado se estendia à frente, espesso e opaco, como uma única pedra branca. Perto da margem, dois paraquedas estavam presos ao gelo por cabos esticados. O vento puxava as lonas com estalos secos. A cápsula principal não estava ali, apenas a parte de cima.
Não havia qualquer estrutura reconhecível, nenhum painel, porta, nada. Apenas uma rachadura larga na superfície do lago, e escombros metálicos espalhados.
Tyla caminhou até a extremidade da ruptura, sentindo o gelo gemer sob as botas. A água abaixo era escura, profunda. Tudo apontava para o óbvio: a cápsula tinha afundado por inteiro.
O peito dela apertou.
“Ela está lá embaixo”.
— Lyra! — gritou, mas a voz foi levada pelo vento.
Respirou fundo, tentando focar. O visor começou a mapear variações térmicas. Nada além do frio absoluto. Nenhum sinal humano.
Ela cerrou os dentes. Um instante de pânico subiu pela coluna, suas pernas tremiam, mas algo interrompeu a onda antes que tomasse forma. Um som grave, familiar, ecoou de uma valeta além da margem onde estava. Uma espécie de cacarejo urgente.
Tyla virou-se na hora.
O Kocka de Lyra estava alguns metros adiante, meio coberto na neve acumulada, o corpo amorfo mudando de forma conforme tentava se manter firme contra as rajadas. A cabeça aviana projetava-se de seu corpo maleável, os olhos negros focados nela, reconhecendo a ajuda.
Se o Kocka estava vivo… então Lyra também estava.
— Onde ela está? — perguntou Tyla, já se aproximando.
O Kocka tremia, Tyla percebeu que estava ferido e quase morto. Seus olhos encontraram os dela, e seu corpo se alterou, abrindo e revelando o que estava guardando com tanto zelo.
Lyra estava encolhida dentro ele, quase como se o próprio corpo da criatura fosse um casulo. O macacão preto do Domatorum estava congelado em alguns pontos. A pele exposta do pescoço e das mãos tinha perdido cor. Os lábios estavam roxos. A respiração, fraca demais.
Tyla se ajoelhou ao lado, tocando o rosto da amiga com a ponta dos dedos. Gelada e mole. Sem qualquer reação.
— Lyra… — murmurou, e o nome pareceu doer.
Passou o scanner sobre ela. A leitura confirmou o que já sabia: hipotermia severa, pulso lento, pressão em queda. A armadura dela devia ter aberto sozinha na queda, e sem o sistema interno de calor e sem isolamento adequado, Lyra tinha tido apenas o Kocka para protegê-la.
Por mais que olhasse o quebra cabeça não fechava em sua cabeça.
“Não é hora disso, depois vou saber o que aconteceu”.
— Você lutou sozinha até aqui, né… — sussurrou. — Não mais…
O Kocka tremia, não de frio, mas de esforço. Havia dado tudo o que podia. Tyla colocou a mão sobre o topo de sua cabeça, acariciando sua crista.
— Vocês dois fizeram um bom trabalho. Agora deixa comigo.
O kocka fechou os olhos esgotados e se deixou transformar em uma nuvem dourada, que voltou para o peito de Lyra.
Tyla respirou fundo. Precisava agir rápido. Aquela região tinha algumas cavernas abertas pelo vento e pela erosão glacial, e uma delas ficava relativamente perto dali, a mesma de onde o Polarion tinha surgido durante a luta. Um abrigo natural, profundo o suficiente para bloquear o avanço das rajadas mais fortes. Com o material que tinha faria um abrigo improvisado.
Tyla passou os braços por baixo de Lyra e a levantou com cuidado. A sensação foi imediata: o peso estava errado. Lyra parecia mais leve do que devia. Era como segurar alguém que estava se afastando da própria vida.
— Fica comigo — murmurou, ajustando a posição do corpo dela contra o peito. — Ainda não terminei de te encher o saco.
Ela começou a correr, o tempo estava contra elas.
O vento golpeava de lado, levantando neve em redemoinhos. A visão oscilava, mas Tyla mantinha o foco na pequena elevação que marcava o início da encosta rochosa. A distância parecia sempre maior do que lembrava, mas não tinha escolha. A respiração de Lyra era cada vez mais fraca.
Tyla avançou caverna adentro. A luz externa do visor projetava um feixe branco nas paredes irregulares. O ar era mais parado ali dentro. Frio, mas não mortal. Encontrou o ponto onde o chão era mais plano e abriu a mochila, retirando tudo de dentro, sem muito cuidado. O fogareiro químico ativou-se com um clique e espalhou um calor constante, baixo, mas suficiente para mudar a atmosfera interna.
Saiu de dentro de sua armadura e tremeu. O frio ainda era intenso. Deitou Lyra sobre o saco térmico e começou a remover o macacão molhado com movimentos rápidos. A roupa estava congelada em alguns pontos, rígida e colada a sua pele. O corpo de Lyra não reagiu ao contato.
— Preciso que você lute comigo, Lyra… só um pouco — disse Tyla, movendo-se sem pausa, como se falar fosse parte essencial do processo.
Secou a pele dela. Colocou ela dentro do saco de dormir. A temperatura do local subiu lentamente, mas não era suficiente. O corpo dela a alertava: Lyra tinha passado tempo demais exposta. Se não a aquecesse de forma mais direta, o risco seria maior que já era.
Tyla hesitou apenas um segundo.
— Não vou perder você — disse.
Sentou-se atrás de Lyra, puxou-a com cuidado até encostar em seu peito. O macacão atrapalhava a troca de calor.
— Que eu faço?
Aumentou a intensidade do fogareiro e não pensou duas vezes. Retirou seu próprio macacão e se enfiou no saco de dormir com Lyra, abraçando a amiga que mais parecia uma pedra de gelo.
Lyra voltou à consciência como quem sobe de um mergulho profundo. A primeira coisa que percebeu foi o calor. Não um calor confortável, parecia quente demais. O corpo inteiro úmido, a respiração pesada, a pele colando em alguma coisa escorregadia e macia.
Abriu os olhos devagar. Escuridão irregular. A única luz vinha do fogareiro químico, pulsando baixo, projetando sombras que tremiam nas paredes da caverna.
Tentou mover o braço. Ele não obedeceu, algo o prendia.
Só então registrou o peso firme ao redor da cintura. Algo macio, quente, vivo. Músculos tensos mesmo em descanso. Uma perna sobre a sua. Outra por baixo. E dois braços cruzados ao redor do peito dela, segurando-a como se o mundo fosse acabar se soltasse.
Seu coração disparou tão rápido que doeu.
O primeiro impulso foi se afastar. Só que qualquer tentativa de movimento só fez os corpos se encaixarem mais, pele contra pele, sem nenhuma camada entre elas. Não precisava olhar. O cheiro bastava. Suor, lavanda, e um perfume que ela conhecia bem.
Tyla.
Lyra fechou os olhos por um instante. A mente ainda lenta da hipotermia e do choque tentou entender.
Ela estava viva. Dentro de um saco térmico. Nua. Tyla também. O calor vinha das duas, misturado. A respiração quente batia na sua nuca. O coração de Tyla seguia firme, constante, como se estivesse vigiando até no sono.
E o dela… o dela estava completamente fora de controle.
Um pânico leve subiu pela garganta, não o pânico de perigo, mas o outro. O que ela sempre empurrava para longe. O que fingia não existir.
Porque aquilo não podia estar acontecendo.
Porque ela não tinha preparado nenhuma resposta pra isso.
Porque não fazia ideia do que dizer quando Tyla acordasse.
E, principalmente, porque não sabia como esconder o que estava sentindo.
As pernas de Tyla apertaram um pouco mais, instintivas, como se mesmo dormindo ela temesse que Lyra escapasse. O ar sumiu dos pulmões dela por um segundo.
Ela segurou o choro com força.
Mas então veio a lembrança, fragmentada e turva, da queda, do uso da habilidade de seu kocka, seu corpo sem forma por um instante, da água gelada, da dor, da sensação de estar sendo puxada para o fundo. E depois, nada.
E agora… isso.
Tyla segurando ela inteira, inteira, inteira…
Uma respiração mais profunda atrás dela. Tyla se mexeu, apenas alguns centímetros, mas o suficiente para fazer Lyra prender o ar. O rosto de Tyla encostou mais na sua nuca, quente demais para aquele lugar gelado.
E então, quase inaudível, veio um som baixo, rouco, arrastado pelo sono:
— … Lyra…
Lyra mordeu o lábio para não fazer barulho. Um soluço pequeno escapou mesmo assim.
Era demais.
Demais porque era real. Demais porque era simples. Demais porque ela nunca tinha se permitido nem imaginar essa cena sem sentir culpa, medo ou vergonha.
Ela apertou os olhos, e as lágrimas vieram. Silenciosas. Quentes. Incontroláveis.
Ali, naquele espaço apertado que cheirava a cansaço e luta, algo dentro dela finalmente parou de resistir.
Tyla tinha atravessado toda a neve do continente para chegar até ela.
Tyla tinha carregado o corpo dela.
Tyla tinha dividido o calor do próprio corpo para mantê-la viva.
Tyla estava ali agora, dormindo abraçada nela como se isso fosse tão natural quanto respirar.
E Lyra só conseguiu sussurrar, escondendo o rosto no braço da outra, a voz mínima, como se falasse só para o espaço entre elas:
— Eu te amo…
O peito dela tremeu.
— …desde sempre.
Não disse mais nada.
Só ficou ali, encolhida nos braços que nunca imaginou poder ter, deixando o choro cair devagar, sem som, porque pela primeira vez em muito tempo, era seguro sentir.
E porque, pela primeira vez, ela não estava sozinha.

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