Capítulo 54 – Luto Por Você
Narrador: Azazel
As três figuras do paredão desceram num salto preciso, posicionando-se atrás do homem de jaqueta, formando um bloqueio instintivo diante de Althaia.
O homem de traços orientais se ajoelhou ao lado dela. Silencioso, retirou as luvas pretas.
— S-Sr. Yamamoto… — murmurou Althaia, com o tórax ainda aberto, a voz frágil e embebida de dor.
O homem de máscara branca inclinou a cabeça, analisando tudo com calma inquietante.
— O que aconteceu aqui? — perguntou ele, a voz abafada, porém firme. — E o que é aquela coisa?
— Lethos… — sussurrou Althaia, antes que a consciência a abandonasse.
Yamamoto pousou a mão sobre o peito dela.
A carne começou a se fechar lentamente, puxada por fios invisíveis.
À medida que as feridas cicatrizavam, o rosto dele envelhecia, rugas começaram a surgir e o brilho dos olhos diminuir.
Era o preço.
— Gula. — Chamou o homem mascarado.
O ar pareceu murchar.
A criatura surgiu diante dele.
Magro demais para ser vivo, deformado demais para ser humano, o corpo se contorcia como fome encarnada.
Pele translúcida, ossos à mostra, dedos alongados como garras secas.
A cabeça grande demais; o maxilar, sempre aberto um centímetro além do natural; dentes finos como agulhas.
A língua serpenteava o ar.
Buracos fundos onde olhos deveriam existir.
As pernas dobradas ao contrário estalavam como madeira velha se partindo.
E o som, um ronco grave e faminto que vibrava dentro do estômago de quem o ouvia.
— S-Santo… — gaguejou Gula, a voz arranhada, quase morta. — Como posso… servi-lo?
— Encontre Lethos. Traga-o até mim agora — ordenou o Santo.
A guerreira do braço em chamas bufou, semicerrando os olhos.
— Então aquele covarde fugiu só por causa dessa coisa fraca e repugnante? — provocou Eleonor.
— Eleonor… — corrigiu o Santo, calmo. — Lethos será punido. Eu lhe dou minha palavra.
O homem da jaqueta de couro começou a estalar os dedos enquanto caminhava devagar na direção de Azazel, que jazia a alguns metros, imóvel.
Mas um riso seco estourou pelo bosque, distorcido, como cordas tensionadas até arrebentar.
Azazel se ergueu de uma só vez, desengonçado como um boneco puxado por fios invisíveis.
A foice, caída ao lado, vibrou e voou para sua mão como se tivesse vida própria.
A chama que antes o consumira desaparecera.
Mas o sorriso…
O sorriso não era humano.
— Eu conheço você — disse Azazel, a voz arranhando o ar. — Está diferente… mas essa aura nojenta, imunda… é você, Hendrick.
O Santo virou o rosto devagar, desconfiado, olhos estreitos sob a máscara.
— Quem é ele, Hendrick? — perguntou, com um tom que soava perigosamente próximo de acusação.
Hendrick permaneceu imóvel.
Atrás deles, Yamamoto continuava o trabalho de fechar o peito de Althaia, silencioso, mas atento à tensão que tomava o ar.
Azazel ergueu o braço com um gesto brusco. A ponta da foice apontou para Eleonor.
— Este corpo te odeia, humana. É você. — A voz distorcida de Azazel vibrou com uma raiva que não era só dele. — Você é quem essa garota mais odeia.
Os olhos dele se estreitaram, inflamados por algo que queimava mais fundo que fogo.
— E o ódio dela me fortalece. O ódio dela me dá controle.
Eleonor rosnou, mas não respondeu.
Azazel abriu um sorriso maior, a pele do rosto repuxando como se tentasse acompanhar algo que se movia por baixo.
— Então venham. — A foice desceu num arco lento, preparando-se. — Só desta vez… eu vou saciar a sede de sangue dela.
Hendrick fixou o olhar em Azazel.
Foi aí que percebeu.
O cristal cravado na testa do demônio era o mesmo, idêntico, ao que Li Wang carregava no peito.
A aura de Azazel também lembrava a dela no dia em que enfrentara Lyria, mas havia algo profundamente errado ali. Um abismo. Uma densidade que parecia puxar o ar para dentro de si.
Então ele entendeu.
Li Wang havia perdido.
E seu corpo… não pertencia mais a ela.
O pensamento o atingiu como um golpe nas costas.
“Droga… achei que você seria a única capaz de mudar o destino do mundo. Então todo aquele tempo, toda aquela aposta… foi inútil?”
A tristeza endureceu seu rosto por um instante e um luto silencioso tomou-lhe conta.
Mas durou pouco. Muito pouco.
Hendrick respirou fundo e voltou a encarar Azazel, agora com uma fúria que acendia os músculos como se fossem cordas prestes a estourar.
— Isso é culpa sua, Yamamoto. — murmurou, irritado. — Voltar a ser jovem está me deixando com os nervos à flor da pele.
Ele nem esperou que Yamamoto falasse algo. Apenas segurou a própria jaqueta pela gola e a arrancou do corpo em um movimento abrupto. O couro estalou no ar antes de ser jogado no chão.
Yamamoto não reagiu. Continuou curando Althaia, concentrado, enquanto a pele dela lentamente se fechava sob seus dedos.
Azazel arqueou o corpo numa curvatura impossível, como se forças estranhas puxassem suas articulações em direções que nenhum ser vivo aceitaria.
A foice repousava na mão direita, inquieta, vibrando como um predador preso atrás de grades finas demais para segurá-lo.
O primeiro movimento não veio de Azazel.
Veio de Hendrick.
O modo Berserker despertou nele sem explosão, sem espetáculo, apenas um brilho ancestral nos olhos enquanto as veias saltavam sob a pele e sua respiração escapava em vapor quente, como se o corpo começasse a ferver por dentro.
Azazel só percebeu o movimento tarde demais. Quando seus instintos enfim reagiram, Hendrick já estava diante dele, tão perto que a surpresa atravessou o demônio como uma fissura, aquilo era veloz demais até para os olhos de Azazel acompanharem.
Ainda assim, a lâmina desceu num arco elegante, terrível.
Entrou pelo ombro de Hendrick e atravessou seu torso como se cortasse água.
Qualquer outro cairia, mas, Hendrick não diminuiu um único passo sequer.
A dor simplesmente não existia.
Ele rapidamente segurou a haste da foice com uma mão firme.
A arma perdeu força, como se Azazel tivesse sumido por um instante.
O demônio sorriu, um sorriso largo demais para qualquer rosto humano.
Hendrick ignorou.
Abaixou a mão, encontrou um dos fragmentos do machado de Althaia, o mesmo que Azazel havia partido com as próprias mãos instantes antes. Ele o agarrou sem hesitar, apertando com tanta força que o metal afiado rasgou sua palma, abrindo a carne até que o sangue escorresse entre seus dedos, e, mesmo assim, não soltou.
Hendrick havia transformado o objeto numa extensão de si no mesmo instante.
O primeiro golpe estourou a clavícula de Azazel.
O segundo arrancou metade de seu tronco.
O terceiro quebrou o pescoço e lançou a cabeça para trás.
A regeneração absurda de Azazel reverteu tudo num piscar e ele gargalhou enquanto se recompunha.
— Mais. Me dê mais.
A cada troca de golpes, ele se tornava mais rápido.
Mais forte.
Mais preciso.
Os reflexos de Hendrick desenhavam trajetórias que Azazel só percebia depois de ser atravessado por elas.
E ainda assim, o demônio voltava.
Sempre.
Cada parte destruída reorganizava-se com voracidade, como se o próprio corpo tivesse prazer em se remendar.
Mas quando Azazel atacava, Hendrick não regenerava com facilidade.
As feridas fechavam-se devagar, como cicatrizes teimosas costuradas por mãos relutantes.
O sangue escorria sem pressa, e ele avançava mesmo assim, como quem aceita se partir ao meio para garantir a vitória.
Um golpe descendente da foice abriu Hendrick do ombro à cintura.
Nada.
Nenhum tropeço.
Nenhum recuo.
Ele agarrou a lâmina com ambas as mãos e a afastou do próprio corpo.
Os olhos de Azazel tremeram pela primeira vez.
E quando Hendrick deu o passo seguinte, Azazel sentiu algo que não lembrava há eras:
Desvantagem.
Porque ele sabia.
A cada segundo que passava… Hendrick ficava ainda mais forte.

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