Capítulo 45: Tribo Kura'ru
Dois anos.
Setecentos e trinta dias de sóis vermelhos e noites estreladas.
O tempo nas Camadas Negativas não corre; ele se arrasta como um rio de lava. Dois anos vivendo costumes que não eram meus, falando uma língua que não era a minha, respirando um ar que cheirava a enxofre e especiarias.
Eu olhava para cima e via o “Sol” desta camada. Um globo rubro, profano e inchado, pairando estático no céu amarelado, lançando sobre o mundo uma luz de fim de tarde eterna.
— Lysanthir, pode me ajudar com esse trigo?
A voz firme me puxou de volta.
Uma mulher estava na plantação, os pés descalços afundados na terra ocre e quente. Seus cabelos loiros, queimados pelo sol artificial, estavam presos em tranças grossas que desciam pelas costas. A pele escura brilhava com suor, marcada por rugas que contavam histórias de sobrevivência.
Vesti a túnica simples que os Kura’ru haviam me dado. Tecido cru, áspero, tingido com padrões geométricos em vermelho sangue.
Caminhei até ela, pegando dois sacos pesados de grãos dourados.
— Claro, Senhora Iara. — respondi, sério.
A tribo Kura’ru nos acolheu.
Nos deu abrigo quando éramos fantasmas.
Nos deu… uma nova chance de não morrer.
É difícil descrever a vida aqui. Não há comparação com a superfície.
As casas não são prédios de pedra ou metal. São orgânicas. Hexagonais, esculpidas numa madeira avermelhada e fibrosa que parece respirar, expandindo-se no calor do “dia” e contraindo-se no frio da “noite”. Elas se organizam em espirais perfeitas, dividindo a vila em quatro zonas cardeais, como um mandala sagrado desenhado no chão do inferno.
No centro de cada zona, ergue-se uma Aruwã-É.
Árvores colossais, pilares da civilização. Suas folhas de vidro vermelho vibram com o vento constante, emitindo uma música de fundo, um zumbido melódico que nunca para. Dizem que é a voz dos ancestrais. À noite, a música muda, fica mais grave, ecoando pelas raízes ocas onde o povo reza.
Estamos no Verão de Sangue.
Dura apenas três meses. O calor é opressivo, o ar fica denso. As flores carnívoras da floresta desabrocham. O suor é constante.
Mas, estranhamente… há beleza nisso.
Voltando para a vila com os sacos de trigo nas costas.
Atravessar as ruas era sempre um lembrete de que eu era um alienígena.
Os habitantes de Kura’ru tinham a pele em tons variados de moreno, do bronze ao ébano. Ninguém tinha a palidez doentia minha ou de Cedric.
Mesmo depois de dois anos, os olhares ainda eram de desconfiança cautelosa. Eu era o “Fantasma da Superfície”.
Caminhei até o centro. O coração político.
Atravessei a ponte de pedra vulcânica que passava sobre um rio de lava domesticada. O calor subiu pelas minhas pernas, familiar e perigoso. Acima, suspenso nas raízes da Árvore Mãe, estava o Palácio Kaetá-Hemiru.
Subi os degraus entalhados na madeira viva.
Empurrei as portas duplas, pesadas, esculpidas com relevos de bestas caçadas.
— Ly! Finalmente! Vem cá ver isso!
A voz animada cortou o silêncio solene do salão.
Lá dentro, jogado entre almofadas de seda rústica e tecidos coloridos, estava Cedric.
A imagem dele ainda me causava estranheza.
O garoto birrento tinha crescido. Os cabelos loiros, que ele deixara crescer selvagemente, agora batiam na cintura, ondulados e presos de qualquer jeito com um pedaço de couro. O corpo, antes magro de um espadachim de academia, agora tinha músculos funcionais, definidos pela caça e pela sobrevivência.
Mas o sorriso… o sorriso continuava o mesmo.
Ele segurava um pedaço de tecido bordado como se fosse a cabeça de um rei inimigo.
— Olha só esse tigre! — exclamou ele, os olhos verdes brilhando. — Fiz sozinho! Sem furar o dedo dessa vez!
O bordado era, admito, impressionante. Linhas de fio âmbar formavam um tigre estilizado, prestes a pular. As garras eram de fio prateado, brilhando na luz das tochas.
— Impressionante. — respondi, o tom neutro, quase automático. — Parabéns, “pequenino”.
Ele bufou, jogando uma almofada em mim (que eu desviei).
— Você com essa cara de peixe morto… não dá nem vontade de mostrar minha arte!
Antes que ele pudesse continuar o drama, passos pesados e militares ecoaram no corredor de madeira.
Toc. Toc. Toc.
E então, a voz. Cortante como aço frio.
— Cedric! Você é um guerreiro da Elite Kura’ru! Como pode perder tempo com… com costura?!
Marcellia Vireya Kaê.
Ela parou no batente da porta como uma tempestade súbita.
O rosto acobreado estava corado de frustração. Os olhos de jade, afiados, evitavam olhar diretamente para o bordado.
Mas eu vi. O olhar dela desviou por um milésimo de segundo.
Ela achou bonito. Óbvio.
Mas a General do Sul preferiria morrer a admitir que gostou de um gatinho de linha.
Marcellia era a disciplina em forma de mulher. Cabelos loiro-claros curtos, repicados de faca, uniforme cerimonial reforçado com placas de couro de besta, uma katana curva na cintura.
Ela olhou para mim.
— Lysanthir, você também está aqui? Ótimo. Menos tempo perdido. Temos missão. Um Lobo Laranja foi avistado nas ravinas do norte. O Festival da Lua Vermelha é hoje à noite, e o Conselho quer carne fresca para a oferenda.
— Entendido. — respondi, ajeitando a túnica. — Estamos prontos.
Cedric se levantou devagar, espreguiçando-se como um gato preguiçoso. Ele caminhou até ela com aquela confiança irritante que ele desenvolveu.
Passou o braço pelos ombros da guerreira.
Eles tinham a mesma altura agora.
O que tornava a dinâmica… explosiva.
— Relaxa, Marcy. — disse ele, usando o apelido que ela fingia odiar. — Já faz dois anos que estamos aqui. Você sabe que a gente resolve isso antes do jantar.
Marcellia congelou.
Os olhos dela se arregalaram. As bochechas explodiram em vermelho. Os punhos cerraram ao lado do corpo, os nós dos dedos brancos de tensão. Ela parecia estar travando uma guerra interna entre socar a cara dele ou beijá-lo ali mesmo.
Ela não disse uma palavra. Não conseguia.
Todos na vila sabiam.
Eu sabia. A velha Iara sabia. Até as árvores sabiam.
Todos, menos o idiota do Cedric.
Marcellia era perdidamente apaixonada por ele.
E assistir a essa novela se desenrolar todo santo dia…
Bom, nesse abismo sem fim, era o meu único entretenimento de qualidade.
Marcellia não era apenas um interesse romântico frustrado.
Ela era a General do Sul. Uma lenda viva entre os Kura’ru.
Foi ela quem nos ajudou desde o primeiro dia, junto com Aruan-Kaê. Foi ela quem defendeu nossa permanência no Conselho quando queriam nos jogar no vulcão. Foi ela quem nos ensinou a lutar, a comer e a falar.
Sem ela, seríamos ossos na neve.
A nossa chegada foi… turbulenta.
Mas, aos poucos, as peças se encaixaram.
Aprendemos a língua. Entendemos os rituais.
E, principalmente, entendemos a estrutura.
Foi o choque mais profundo de todos.
Eles não eram selvagens vivendo em cavernas.
Eles tinham uma Civilização.
Comércio complexo, agricultura adaptada, filosofia, política…
E um sistema de hierarquia rígido.
Um sistema de Ranking.
Sim.
Mesmo aqui, nas profundezas esquecidas onde Deus não vê… os números ainda governavam os homens.
Só que aqui, eles não eram tatuados na pele. Eram tatuados na alma e na tradição.
Eram mais sutis. Mas, talvez, ainda mais cruéis.
Saímos do Palácio Kaetá-Hemiru sob o céu avermelhado do fim da tarde eterna.
Caminhamos em direção à Zona Norte.
A vila estava em metamorfose. O Festival da Lua Vermelha não era apenas uma festa; era a respiração daquela sociedade.
Guerreiros penduravam lanternas de pedra luminescente nas pontes de cipó. Crianças de pele acobreada corriam entre as pernas dos adultos, rindo, carregando fitas coloridas. O cheiro de especiarias sendo queimadas em incensários de barro preenchia o ar.
Há dois anos, a ideia de uma civilização complexa numa camada que os mapas diziam não existir era loucura.
Hoje, era a minha casa.
— Lysanthir! Você pode me dar uma ajuda?
A voz doce cortou o barulho da preparação.
Meu corpo virou por instinto.
Ali, sob a luz âmbar das pedras que iluminavam a trilha, ela se aproximava com passos leves, quase flutuando sobre a terra batida.
Rara.
Por um momento… senti um arrepio frio subir pela minha espinha, ignorando o calor do verão.
Ela era a prova viva do paradoxo. A prova de que, mesmo aqui embaixo, as regras do topo se aplicavam.
Pele morena como caramelo derretido. Cabelos negros e longos, enfeitados com penas de pássaros raros.
Mas eram os olhos.
Dourados. Líquidos.
E no centro de cada pupila, brilhando com uma luz própria e antiga… uma Estrela de Sete Pontas.
O mesmo selo dos Rankeadores de Asgard.
A mesma marca maldita que decidia quem era deus e quem era verme lá em cima.
Por que ela a tinha? Por que aqui?
Rara sorriu de forma tímida, encolhendo os ombros, como quem sabe o peso que carrega, mas tenta desesperadamente suavizá-lo para não esmagar os outros.
— Eu preciso de um favor… — disse ela, a voz suave, delicada demais para este mundo de monstros e lava. — Preciso colher algumas flores de Lírios Azuis para o ritual da noite. Eles crescem perto da margem do rio, mas… não consigo ir sozinha.
Cedric, sempre o herói solícito (e o idiota alheio), nem hesitou. Mesmo que ela tivesse chamado meu nome, ele se voluntariou.
— Claro, Senhorita Rara! — Ele sorriu, ajeitando a espada na cintura. — A gente ajuda sim. Lírios azuis, né? Deixa com a gente.
E então… o silêncio pesado caiu.
A temperatura ao nosso lado despencou.
Marcellia.
Ela estava de braços cruzados, o pé batendo contra o chão num ritmo frenético e impaciente. Os olhos de jade estavam estreitos, afiados como navalhas, alternando entre Cedric e Rara.
Ciúmes? Sim.
Mas também orgulho ferido.
— De jeito nenhum. — respondeu ela, ríspida. A voz carregava aço. — Não somos jardineiros. Somos guerreiros. Por que deveríamos perder tempo colhendo flores para você, Rara?
Rara deu um passo para trás, encolhendo-se como se tivesse levado um tapa. O brilho nos olhos estrelados tremeu.
Suspirei, massageando as têmporas.
Era típico de Marcellia. A agressividade como escudo.
Mas, naquele momento… ela estava cruzando uma linha perigosa.
— Marcellia… não seja tão dura com ela. — Uma voz murmurou, vindo das sombras das árvores. — Você sabe quem é Rara. Ela é o coração deste lugar.
Foi aí que a gravidade mudou.
Ele apareceu.
Seruus Vritra.
O General do Oeste.
O andar dele era silencioso, espectral. As folhas secas no chão não estalavam sob seus pés descalços.
Mas a presença…
Pesava no ar, densa e úmida, como se uma jiboia gigante tivesse acabado de entrar no recinto.
Sua pele era tão escura quanto uma noite sem lua na superfície, coberta por tatuagens tribais brancas que contavam histórias de caçadas que ninguém ousava repetir.
Seus olhos, verdes como esmeraldas brutas, guardavam uma tristeza funda, geológica — como se ele tivesse vivido mil vidas e perdido algo precioso em todas elas.
Os dreadlocks longos estavam presos para trás, pesados, entrelaçados com contas de osso e pedras de rio.
Vestia um manto pesado de tom verde-oliva, feito de escamas de algum réptil colossal, que parecia respirar junto com ele.
Na cintura, sua espada. A Lâmina da Serpente.
Diziam que ela sibilava antes de provar sangue.
Eu nunca desejei ver essa espada fora da bainha.
Ele parou ao lado de Rara, protetor, mas sem tocá-la. O olhar dele pousou lentamente sobre Marcellia. Pesado.
E então falou, com uma voz grave, ritmada e lenta, como um trovão distante.
— Rara é uma das figuras mais valiosas desta tribo, General do Sul.
— Se ela pedir algo… nós ouvimos.
— Não se nega um pedido de alguém que carrega o símbolo dos Sete Olhos.
A tensão no ar se dissolveu, substituída por submissão.
Marcellia hesitou. A fúria no rosto dela vacilou.
Seus olhos se desviaram por um segundo.
Ela odiava admitir… mas ela era uma soldada. E diante de Seruus Vritra, até o orgulho dela se curvava.
Rara apenas abaixou a cabeça, humilde, os olhos estrelados fitando o chão.
— Obrigada, Seruus… — sussurrou.
Eu fiquei ali, observando. Silencioso.
Essa tribo. Esse sistema.
Mesmo no fundo do mundo, onde a luz do sol verdadeiro nunca tocou…
As estrelas nos olhos ainda dividiam as pessoas.
Os Ranks ainda existiam, disfarçados de misticismo.
E o peso de um símbolo… continuava decidindo o valor de uma vida.
— Já que vão até o Rio Marezza… — continuou Seruus. O tom dele mudou, ficou preguiçoso, arrastado como fumaça espessa. — Posso acompanhar vocês? Meus batedores informaram que um grupo da Tribo Marezza está descendo o rio. Eles estão vindo para cá… e eles são um pouco problemáticos em época de festival. É melhor tentar o diálogo antes do aço.
Marcellia bufou alto.
Dessa vez, ela não tentou esconder. O som foi um estalo de frustração.
O olhar dela passou rápido por mim e por Cedric — cortante, acusador —, mas sem se fixar. Depois desviou para o chão, chutando uma pedra, como se quisesse fingir que Seruus e a “missão das flores” simplesmente não existiam.
Ela girou nos calcanhares com um movimento brusco e militar.
Começou a andar na frente, em direção ao norte. Passos pesados, ritmados, quase furiosos. Cada passada fazia seu hakama cerimonial balançar violentamente, chicoteando o ar.
Cedric riu baixo, balançando a cabeça.
— Hah… ela fica engraçada quando tá assim. — murmurou ele, com aquele sorriso despreocupado que um dia ainda vai matá-lo. — Tipo um gato selvagem que tomou banho frio.
Ele a seguiu, saltitando.
Fiquei um momento parado, ainda absorvendo a cena e o peso dos olhos de Rara.
Senti Seruus se aproximar. O General do Oeste cruzou os braços musculosos e fitou o céu vermelho.
— Sabe, Lysanthir… — Ele falou devagar, arrastando as sílabas. Um sorriso pequeno, nostálgico, tocou o canto dos lábios dele. — Depois que vocês chegaram aqui, caindo do céu como pedras… é estranho ver como a Marcellia mudou. Ela era pedra. Agora… ela sente.
Ele olhou para mim. Os olhos de esmeralda eram profundos.
— E quer saber? Eu também fico feliz com isso. Nunca imaginei que existissem humanos lá em cima. Muito menos que seriam tão… parecidos com a gente. No fim, todos sangramos igual.
Eu encarei o céu também. O falso sol.
— É… talvez o mundo não seja tão grande assim.
E então, seguimos em direção ao Norte.
Para as margens do Rio Marezza. Onde as flores azuis cresciam… e onde os rivais nos esperavam.

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