Capítulo 46: Tribo Marezza
A floresta do norte estendia-se diante de nós como um oceano petrificado.
Era um mar infinito de árvores retorcidas e raízes que se entrelaçavam como serpentes adormecidas à espera de uma presa. Cada passo era acompanhado pela sinfonia dos nossos próprios corpos — o farfalhar das folhas secas, o estalar de galhos mortos sob as botas, e ao longe, o uivo do vento nas copas.
Esta camada… é imensa.
É vasta, maior do que qualquer uma das 10 Camadas Neutras ou das 70 Negativas conhecidas pelos cartógrafos de Asgard. Leva-se dois meses de marcha forçada apenas para ir de Kura’ru até uma das bordas, e isso se nenhum imprevisto — leia-se, monstro colossal — acontecer. Agora, imaginem tentar atravessá-la de ponta a ponta. É como tentar caminhar sobre o céu.
Durante os primeiros dias aqui, fomos bombardeados com perguntas. Os anciões, os jovens guerreiros, até as crianças, aproximavam-se com uma curiosidade feroz e quase invasiva. Queriam saber tudo: como funcionava a nossa política, o significado das nossas palavras, a textura da nossa magia.
Claro que eu não contei tudo. Mantive alguns segredos trancados a sete chaves. Mas a recíproca foi verdadeira. Eles também não entregaram o ouro de imediato.
Há várias tribos aqui, dispersas pela vastidão, porém apenas três são consideradas os pilares deste mundo esquecido.
Kura’ru, onde estamos agora — a maior, a mais estruturada, com um sistema social rígido e quase militarizado. A ordem no caos.
Marezza, a tribo da água. Vivem às margens do grande rio serpenteante que corta a floresta como uma artéria aberta. São comerciantes natos, pescadores habilidosos e os melhores navegadores que esta camada já viu. Dizem que eles conhecem caminhos na água que não existem nos mapas.
E, por fim, a Tribo do Sol Branco.
A mais distante. A mais silenciosa. E, sem dúvida alguma, a mais temida.
Pouco se sabe sobre eles, mesmo aqui. Vivem perto do “Centro” da camada, onde o terreno é instável e dizem que o próprio chão brilha em certos dias com radiação antiga. A devoção deles ao Sol é quase fanática — e isso não é força de expressão.
As lendas contam que, há mais de dois mil anos, um ser caiu do céu. Não um anjo, mas uma bola vermelha flamejante que rasgou o firmamento estático como uma lança divina. Onde ele caiu… a terra sangrou e ergueu-se a vila da Tribo do Sol Branco.
Desde então, o Sol — ou melhor, este Sol Vermelho que nos ilumina — passou a ser visto como algo sagrado.
Não apenas uma estrela.
Mas um símbolo. Uma lápide.
Uma lembrança viva de que algo divino atravessou os céus… e caiu.
E talvez, só talvez, ainda esteja vivo, dormindo em algum lugar abaixo de tudo.
Já havíamos caminhado por horas sob a copa das árvores altas, onde a luz filtrava em tons rubros pelas folhas avermelhadas que dançavam com o vento. Cada passo estalava sobre raízes grossas e musgos úmidos, enquanto o som das folhas sussurrava como uma canção antiga, quase hipnótica.
Foi então que Marcellia parou subitamente.
Ela limpou a garganta, um som seco e nervoso.
— Vamos nos separar. — disse ela, a voz tentando ser autoritária, mas falhando levemente. Os olhos dela evitavam encontrar os nossos, focados numa árvore distante. — Você e o Seruus pegam as flores da Rara… e eu e o Cedric vamos atrás do…
Ela hesitou. A vergonha tingiu as bochechas acobreadas de um vermelho escuro.
— …do lobo laranja. É melhor cobrirmos mais terreno.
Cedric, com a percepção emocional de uma porta, soltou um animado “Beleza!” e deu um tapinha leve no ombro da general.
Marcellia quase pulou com o toque, engolindo o desconforto (e a alegria) com um pigarro mal disfarçado.
— Por mim, tudo certo. — respondi com naturalidade, segurando o riso. — Boa caçada, pombinh… digo, guerreiros.
Seruus apenas assentiu com a cabeça, calmo como uma pedra de rio.
Nos separamos logo depois. Eu segui com o General do Oeste, mergulhando ainda mais fundo no coração verde e vermelho da floresta.
O silêncio entre nós durou alguns minutos. Não era constrangedor, apenas denso. Até que ele, em tom calmo e reflexivo, quebrou o ar sereno:
— Já faz dois anos que você está aqui, Lysanthir. — murmurou ele, olhando as raízes retorcidas que se projetavam do solo como veias de pedra viva. — O tempo passou rápido, né? Não sente vontade de voltar? Para o seu “céu”?
A pergunta era direta. E doía como uma lâmina afiada enfiada entre as costelas.
Fiquei em silêncio por um tempo, caminhando. O peso da resposta repousava no fundo da garganta, amargo.
— Se eu disser que não… estou mentindo. — falei enfim, com a voz baixa e rouca. — Deixei minha esposa lá em cima. E minha filha.
Parei por um instante, calculando o tempo perdido.
— Ela deve estar com uns oito anos agora… Perdi dois anos. Ela deve ter mudado tanto.
Olhei para o meu pulso esquerdo. Havia um bracelete de couro velho amarrado firme ali. No centro, incrustado de forma rústica, um cristal de luz opaco, com rachaduras finas. Ele não brilhava mais, mas ainda pulsava com uma memória tênue de mana. O último presente de Giovanna.
— Fui pai meio novo… — continuei, sorrindo triste para o cristal. — Mas… eu sei que elas estão bem. Eu sinto que estão. Guardo esse cristal desde então. É tudo que me restou delas aqui embaixo.
Seruus parou.
Ele se virou para mim, os olhos de esmeralda arregalados de surpresa genuína.
— Mulher e filha? — murmurou ele, pasmo. — Caraca… você parece tão novo. E tão… frio. Nunca imaginaria isso de você. Achei que fosse um lobo solitário.
— É, bom… — Dei de ombros, voltando a andar para esconder a emoção. — O mundo lá de cima força a gente a crescer mais cedo do que devia. A inocência é um luxo.
Ele ficou quieto por um momento, caminhando ao meu lado. O olhar dele, antes apenas curioso, assumiu uma sombra melancólica, pesada.
— Eu te entendo. — disse ele por fim, num tom baixo, quase sussurrado para as árvores. — Minha tribo original… foi completamente massacrada… antes de eu chegar em Kura’ru. Levaram tudo o que eu tinha. Família, nome, história.
Ele tocou o cabo da espada sibilante.
— A solidão é um idioma que a gente aprende rápido, não é?
O silêncio que se seguiu não era mais vazio. Era… solidário. Um silêncio que dizia: “Eu também sangro.”
Seguimos em frente, dois homens de mundos diferentes unidos pela perda, até que o som das folhas deu lugar ao suave e constante rugido da água.
O Rio Marezza estava próximo.
Seguimos em frente, guiados pelo som. O farfalhar seco das folhas vermelhas deu lugar, gradualmente, a um rugido suave e constante.
Chegamos à Cachoeira Marezza.
Era um oásis no inferno.
O rio despencava em queda livre sobre pedras negras vulcânicas, polidas e cobertas por um musgo bioluminescente que pulsava em verde-água. Na superfície calma da bacia, Lírios Azuis flutuavam como estrelas caídas e tranquilas, cintilando em contraste com a luz avermelhada que atravessava a névoa eterna do local.
A água era tão límpida, tão pura, que refletia o céu carmesim como um espelho líquido, criando a ilusão de que estávamos prestes a pisar no céu.
Seruus caminhou até a margem. Ele se abaixou com um cuidado reverente, seus dedos grossos colhendo os lírios pela haste com uma delicadeza que não combinava com um general de guerra. Parecia que cada flor tinha alma própria, e ele pedia permissão para tocá-la.
Eu apenas observei, de pé na retaguarda, absorvido pela beleza alienígena do lugar. Por um segundo, esqueci onde estava.
Até que—
CRAC.
Um estalo seco e cortante quebrou a harmonia.
Não era galho. Era o som da termodinâmica sendo violada. O som de gelo se formando onde não deveria existir.
Me virei por instinto.
ZUUN! ZUUN!
Duas lanças de gelo sólido passaram rente ao meu rosto.
Tão rápidas e precisas que cortaram o ar com um assobio agudo. Elas se fincaram no chão úmido, congelando a grama instantaneamente num raio de meio metro. O frio se espalhou como uma praga silenciosa, matando o musgo.
— O que estranhos fazem na propriedade sagrada dos Marezza? — Uma voz soou. Fria. Imponente. Arrogante.
Das sombras úmidas próximas à margem do rio, onde a névoa era mais densa, ele surgiu.
A primeira impressão era de estar encarando o abismo gelado de um oceano profundo.
Sua pele escura brilhava sob a névoa como a pele de um tubarão molhado. Os olhos, de um azul vívido, quase fluorescente, encaravam-me com uma calma gélida, dissecando minha existência em segundos.
Os cabelos, brancos como espuma de mar quebrando nas rochas, caíam com elegância estudada sobre um rosto marcado por piercings de prata e linhas tribais metálicas que pareciam circuitos.
Seu traje era fino, tecido com fibras azuis e detalhes dourados. Havia nobreza ali… mas uma nobreza afiada. Como uma lâmina cerimonial envolta em seda, feita para matar com estilo.
E Seruus?
Ele continuou colhendo os lírios.
De costas. Agachado. Como se nada tivesse acontecido. Como se aquele garoto não estivesse prestes a nos congelar vivos.
O garoto franziu a testa, ofendido pela indiferença. Ele ergueu a mão.
Novas lanças de gelo começaram a cristalizar no ar ao redor dele, flutuando como dentes de uma besta invisível.
Minha mão direita brilhou. Comecei a condensar fótons. Eu ia criar uma Espada de Luz e acabar com aquilo.
Mas antes que a magia fosse liberada…
PÁ!
Um borrão branco cruzou o ar.
Um chute voador, preciso e violento, acertou em cheio a lateral da cabeça do garoto.
O impacto foi cômico de tão brutal.
Ele foi lançado para o lado como um boneco de pano, girando no ar antes de despencar de cara na grama úmida e deslizar até a margem. As lanças de gelo se desfizeram em neve.
— O que você pensa que está fazendo, seu bastardo inconsequente?! — Uma voz feminina soou. Tinha uma doçura disfarçada, mas carregava veneno e autoridade em cada sílaba. — Quer começar uma guerra entre as tribos por capricho, é isso?!
A figura aterrissou diante de mim, ofegante, com as mãos na cintura.
Ela irradiava presença.
Pele morena clara, hidratada e bem tratada. Olhos azul-claros, tão intensos que pareciam feitos de cristal líquido ou água de nascente.
Seus cabelos, escuros e cortados num chanel elegante na altura dos ombros, balançavam suavemente com o vento da floresta. Vestia roupas brancas e prateadas, leves, que refletiam a luz da cachoeira como escamas. No lado da cabeça, uma flor branca — um lírio real — completava o visual.
Ela me encarou.
Direto nos olhos.
E meu corpo… travou. Havia uma força gravitacional nela.
— Me desculpe pelo meu irmão mais novo. — disse ela, endireitando a postura com firmeza, a sinceridade transbordando. — Ele quase não sai do Palácio das Águas. E… bom, como foi criado pelo nosso avô, herdou essa mentalidade podre de superioridade tribal. Ele morde antes de cheirar.
Eu permaneci em silêncio, a luz na minha mão se apagando devagar.
Ela sorriu de leve, um sorriso diplomático.
— Meu nome é Mirassol Marezza. — Ela curvou a cabeça, respeitosa. — E aquele pirralho comendo terra é o Yuri Marezza. Infelizmente, meu meio-irmão de sangue.
O tal Yuri, com o rosto marcado pela grama e os olhos fervendo de humilhação, levantava-se devagar, limpando a lama da roupa cara, tentando resgatar a dignidade esmagada.
— Estamos indo até Kura’ru. — continuou Mirassol, desviando o olhar na direção da cachoeira, evitando encarar minha pele pálida por muito tempo. — Paramos aqui apenas para reabastecer e…
Ela parou no meio da frase.
Os ombros dela enrijeceram. Os olhos arregalaram, fixando-se em algo atrás de mim.
— Seruus…? — murmurou ela. A voz saiu misturada com surpresa e incredulidade.
Seruus ainda estava agachado. Ele terminou de amarrar o buquê improvisado de lírios azuis com um cipó.
Ele se levantou lentamente, virando-se.
Ergueu os olhos de esmeralda, sem emoção, como se estivesse apenas despertando de um sono leve.
— Então são vocês que estão descendo o rio, é…? — respondeu ele com o tom relaxado de sempre, carregado de preguiça e uma pitada de deboche antigo. — Que coincidência, hein, Mirassol? O mundo é um ovo.
Ela hesitou por um instante. O rosto dela corou levemente, quase imperceptível sob a luz vermelha. Depois, ela sorriu de canto. Não era um sorriso diplomático. Era o tipo de expressão que carregava memórias antigas, histórias não ditas e noites passadas. Algo que pairava entre o carinho e a rivalidade.
— Mirassol… — A voz dele ficou grave, perdendo a preguiça. — Atacar um convidado pessoal de Aruan-Kaê dentro de território neutro… é quase uma declaração de guerra, Princesa.
Mirassol ficou visivelmente nervosa. A cor sumiu do rosto dela.
— Me desculpa… Por favor. Eu assumo a responsabilidade. Ele não sabia.
Seruus sustentou o olhar por um segundo torturante. Depois, deu de ombros.
— Vou relevar dessa vez. Por ser você. E porque os lírios estão bonitos hoje.
Mirassol soltou o ar que prendia. Ela olhou para mim novamente, agora com curiosidade aberta e estranheza. Minha pele branca eram anomalias para ela.
Pela primeira vez, vi de perto a elite da Tribo Marezza.
E, sinceramente, era estranho.
Não só porque os membros da Marezza raramente saíam de seus domínios aquáticos, mas porque havia uma presença peculiar neles. Uma calma fluida, uma pressão hidrostática que parecia vibrar de forma silenciosa sob a pele deles. Eles não eram como a terra firme de Kura’ru. Eles eram correnteza.
Havia se passado cerca de dez anos desde o Tratado de Paz entre as três grandes tribos. Uma paz frágil, escrita com sangue. O último líder da Marezza tinha morrido envenenado em circunstâncias misteriosas, e o atual chefe era um homem chamado Hyfrd Marezza.
Só o nome já parecia um feitiço travado na garganta. Nunca consegui pronunciá-lo sem parecer um idiota com a língua presa.
Mirassol fez um gesto para o irmão, ordenando silêncio com o olhar, e voltou-se para nós.
— Se nos permitem… seguiremos nosso caminho. Kura’ru nos espera.
Seruus apenas acenou com a mão, voltando a cheirar os lírios.
Mas eu sabia.
A paz estava por um fio. E aquele fio acabara de congelar.

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