Índice de Capítulo

    A pena riscou o pergaminho sozinha.

    O escrivão piscou, confuso, o coração disparado sem motivo aparente. A mão direita não obedecia. As palavras surgiam ordenadas demais, rápidas demais. Ele tentou soltar a pena.

    Não conseguiu.

    — N-não… — a voz saiu fraca, como se o ar tivesse de atravessar algo antes de alcançar a garganta.

    O escritório estava em silêncio. Estantes alinhadas. Selos reais. A janela aberta deixava entrar a luz pálida da manhã. Tudo normal.

    Exceto ele.

    Dentro da própria mente, o mundo era outro.

    Correntes de energia cinzenta atravessavam o vazio, presas aos pulsos, tornozelos e ao peito do verdadeiro dono do corpo. O escrivão, ou o que restava dele ali, arfava, sentindo algo que não deveria sentir. Uma pressão sem peso, dor sem nervos.

    As correntes tremiam.

    Não se partiram.
    Mas ele percebeu que estavam… mais frouxas.

    — Ele está enfraquecendo — ele disse, a voz ecoando naquele plano vazio. — Eu… eu sinto.

    A presença respondeu com algo próximo de um riso sonoro.

    “Mas que Interpretação otimista.”

    O escrivão cerrou os dentes. Forçou-se contra as amarras. Por um instante, um único instante, uma das correntes cedeu o suficiente para permitir movimento. Ele sentiu os dedos. O pulso.

    No mundo físico, a pena caiu.

    O corpo do escrivão se curvou sobre a mesa, puxando ar com força. Tinta escorreu pelo pergaminho, borrando um selo real.

    Enquanto o corpo do escrivão parecia ter espasmos, dentro da sua mente o dono original puxava as correntes com todas as forças.

    — EU NÃO SOU SEU! — ele gritou, agora com voz real naquele mundo. — VOCÊ NÃO PODE ME APAGAR!

    “E quem disse que não posso? você só está vivo por um mero capricho meu”.

    O Andarilho afastou-se.

    Não por misericórdia.

    Mas por necessidade.

    O plano mental se distorceu, como uma superfície sendo pressionada por algo do outro lado. As correntes vibraram, depois se esticaram novamente, mais firmes. Mais frias.

    “Você confunde resistência com identidade. vou lhe mostrar a diferença”.

    O escrivão sentiu algo ser arrancado. Não uma memória específica mas a importância dela. O peso emocional. O motivo pelo qual ela existia.

    Ele gritou.

    No escritório, o corpo apenas estremeceu.

    A presença retornou com dificuldade, recompondo-se como algo que não deveria caber ali. O controle foi retomado aos poucos, como mãos reassumindo um instrumento desafinado.

    O escrivão inspirou fundo.

    Endireitou-se.

    Pegou a pena.

    — Voce, vai… falhar — ele tentou dizer, mas a frase morreu antes de nascer.

    “Todos dizem isso.”

    A mão voltou a escrever. Precisa. Mecânica.

    Dentro da mente, o escrivão foi puxado de volta ao vazio, as correntes agora mais apertadas, mas não como antes. Ele percebeu. O Andarilho também.

    Silêncio.

    No escritório, nada indicava luta alguma. Apenas mais um documento sendo finalizado.

    Mas algo havia mudado.

    O Andarilho sentiu o custo do ataque recente. A incursão na outra mente. A energia gasta por conta da ancoragem imperfeita.

    Ele permaneceu imóvel por longos segundos, reorganizando tudo o que havia conseguido. Avaliando danos. O ataque fora um erro necessário. Serena não era o alvo ideal, mas fora o acesso mais disponível, e com maior chance de ter informações uteis.

    E as informações estavam lá.

    Fragmentadas e imperfeitas mas presentes.

    Mas a incursão recente cobrou um preço.

    A mente da mulher. Serena, fora… resistente. Não pela força, mas pela complexidade emocional. Memórias ancoradas em outras pessoas criavam ecos. Reverberações inúteis que apenas atrapalhavam. Ainda assim, a informação fora extraída..

    Thamir.
    Ian.
    E seus vínculos.

    Curioso como criaturas tão efêmeras insistiam em se definir pelos outros.

    O controle do escrivão oscilou novamente por segundos, segundos demais dessa vez. Se outro observador estivesse atento, poderia ter percebido. Felizmente, humanos ignoravam quando alguém agia fora do padrão por um curto período.

    O Andarilho sentiu a estrutura da ancoragem puxar, exigindo ajuste. Ele voltou sua atenção para além do corpo emprestado, além das paredes do escritório, além da própria cidade. Até um grupo de bestas coiotes que estavam sendo mortas pelos guardas, mas o que os guardas não perceberam era que a energia roxa que saia das bestas começou a fluir em uma direção. Carregando fragmentos de uma energia que não obedecia às regras locais.

    A energia disponível ainda era insuficiente para romper a sua prisão por completo. Forçar a fuga agora significaria desperdício. Mas ele agora tinha energia o suficiente para estabilizar a ancoragem no escrivão.

    O foco voltou às memórias extraídas.

    Thamir era problemático demais. Forte e apensar de um pouco previsível, um pilar. Possuía uma resistência mental problemática.
    Elenys era um ponto de tensão, não de ruptura. Vulnerável mas apenas isso.

    Ian, por outro lado…

    Ian era instável. Em teoria era o alvo perfeito, uma maquina de matar instável emocionalmente, mas por algum motivo nenhum dos ataques mentais funcionava.

    — Que inconveniente.. — O escrivão falou colocando a pena sobre a mesa.

    Não por fraqueza, mas por vínculo.

    E todo vínculo verdadeiro era uma vulnerabilidade disfarçada de força.

    Foi então que o nome se destacou.

    Lysvallis.

    Fria.
    Calculada.
    Estratégica.
    Uma mente treinada sempre é mais difícil de cair em uma manipulação direta.

    Isso seria perigoso.

    Mas ataques perigosos sempre traziam os melhores resultados.

    Ela não era apenas próxima de Ian.
    Ela orbitava decisões. Influenciava trajetórias. Ajustava riscos.

    Removê-la não era o objetivo.

    Bastava deslocá-la.

    Uma dúvida plantada. Um movimento antecipado. Uma escolha errada no momento certo.

    O Andarilho sentiu algo próximo de satisfação, não prazer, mas alinhamento. Como engrenagens finalmente encaixando em sua mente.

    Ian reagiria.
    Thamir tentaria conter.
    A unidade de Ordo se moveria.
    Danurem e Aedin fariam o que sempre fizeram: responder com força.

    E enquanto todos olhassem para o Guardião, para a lenda, para o conflito visível… Ele ganharia tempo.

    O Andarilho retomou a pena.

    Havia decretos a serem escritos.
    Rotas a serem ajustadas.
    Pequenas decisões burocráticas capazes de mover cidades inteiras sem que ninguém percebesse.

    Lysvallis ainda não sabia. Mas em breve ela estaria no centro do tabuleiro.


    Lysvallis estava de pé junto à janela quando Ian e Aisha entraram no quarto.

    A luz fria da manhã atravessava o vidro espesso e se espalhava pelo aposento de pedra clara, refletindo nos símbolos e runas entalhadas por Ian. Ela mantinha as mãos apoiadas na janela, postura impecável, mas rígida demais.

    Ian percebeu na hora.

    — Você se deixou afetar — ele disse, sem rodeios.

    Lysvallis não se virou de imediato.

    — Começamos bem — respondeu, fria. — Veio me repreender logo cedo, Guardião?

    — Não vim fazer um ataque, apenas oferecer um conselho.

    Ela expirou pelo nariz. Devagar. Calculado.

    — Continue.

    Ian caminhou alguns passos pelo quarto e se sentou em uma das poltronas. O ar ao redor dele vibrou por um instante, um tremor quase imperceptível, mas Aisha e Lys já estavam acostumadas a identificar. Ele respirou fundo enquanto a vibração do ambiente acalmava.

    — No reencontro com Aedin — disse Ian — você o provocou. De propósito.
    — Ele mereceu.
    — Concordo. Mas não era o momento.

    Lysvallis finalmente se virou. Os olhos azuis com aquele leve brilho roxo estavam atentos, afiados… mas havia algo ali. Um resquício de irritação mal digerida.

    — Uma Rainha não troca ofensas gratuitas — Ian continuou como se nada tivesse ocorrido, mesmo com a mana ao seu redor voltando a tremer. — Especialmente diante de um rei impulsivo que recusou o envio de reforços, ou ofereceu uma recepção adequada a uma comitiva real a sua capital, comitiva essa que veio para oferecer ajuda cercada pelos aliados desse rei. Ele deixou claro que não somos bem-vindos.

    Silêncio.

    Aisha mudou o peso de uma perna para a outra, visivelmente desconfortável.

    — E eu nem vou falar sobre o duelo de Aisha com Eldrik — ele acrescentou — você esqueceu..

    Isso doeu mais do que a primeira acusação.

    — Eu não esqueci — ela rebateu, rápido demais.

    — Então o que foi aquilo?

    Ian sustentou o olhar.

    — Você pensou em Eldrik antes de calcular o risco?

    O ar vibrou de novo. Mais forte. Uma rachadura fina surgiu na moldura de pedra da janela. Ian fechou os olhos por meio segundo, forçando a mana a recuar.

    Lysvallis percebeu.

    Quando ele abriu os olhos, estavam frios. Vazios. Como se toda emoção tivesse sido removida à força.

    O olhar frio e Ian a atingiu com mais força do que qualquer crítica.

    — Eu sei — ela disse, por fim. A voz baixa. Controlada. — Eu.. errei.

    Ela se afastou da janela e caminhou até a mesa central, pousando a mão sobre o tampo de pedra.

    — Cervalhion não é Altheria — continuou. — O cheiro, o clima político, Aedin… Eldrik. Tudo aqui puxa memórias que eu não deveria permitir que influenciassem decisões.

    Ian inclinou levemente a cabeça.

    — Uau… — murmurou. — Eu sabia que você reconheceria o erro. Só não achei que seria tão rápido.

    Ela o encarou.

    — Ian.

    — Não, sério. Reconhecer isso assim já te coloca à frente de metade dos governantes que eu conheci.

    — Você pode ficar quieto um pouco e me deixar falar? — disse Lys, cruzando os braços.

    Ele ergueu as mãos em rendição.

    — Não estou falando como governante — corrigiu. — Estou falando como alguém que falhou por um instante. Eu—

    Batidas firmes interromperam a frase.

    Um guarda de Altheria parou à entrada, fazendo a saudação ritual.

    — Guardião. Rainha Lysvallis. A Guarda Naira acaba de chegar. Ela solicita audiência imediata com o Guardião… e com as Matriarcas.

    Os dois trocaram um olhar rápido.

    — Naira? — Ian franziu o cenho.

    — Isso é inesperado — Lysvallis disse, já retomando o tom neutro.

    O guarda hesitou um segundo antes de completar:

    — Ela disse que a informação não pode esperar.

    Silêncio.

    — Então não vamos fazê-la esperar — disse ela, erguendo o queixo, enquanto tomava a frente na caminhada

    Ela caminhou em direção à porta, cada passo medido.

    Ian a acompanhou, percebendo a mudança de postura em Lys. Arrancando dele um pequeno pensamento, “Essa mulher realmente é diferente”

    Completamente alheia ao pensamento de Ian, Lysvallis caminhava a frente com as palavras de Ian ressoando em sua mente e uma constatação se consolidando em sua mente.

    Cervalhion havia testado seus limites e desrespeitado a sua comitiva.

    E agora, alguém precisaria lembrá-los exatamente de quem ela era.

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