Capítulo XXXI (31) - Bocarra de Guerra
— E então, como vai ser? — Cocei a cabeça, ao ver que Renyan se manteve imóvel, sem ceder a minha provocação.
Renyan fechou os olhos, e colocou a espada na frente da sua testa. Ele respirou fundo, e toda sua intenção assassina se esvaiu. Por um instante, parecia que o tempo havia congelado. Tudo se concentrou naquela lâmina que Renyan segurava.
A espada brilhou com intensidade. Não tive escolha, eu cobri meus olhos com o braço direito num reflexo rápido para evitar ser cegado pela luz ofuscante.
Uma intensa corrente de vento passou por mim, e levantou as folhas, galhos e até alguns troncos. Em seguida, escutei um pequeno estalo no ar, semelhante ao estrondo de um chicote.
Coloquei a minha mão esquerda nas minhas costas antes que o ataque de Renyan me atingisse.
Virei-me para Renyan, atrás de mim, com a espada em seus punhos. Ele empurrava a lâmina para frente com toda a força que tinha.
Ele não conseguiu me atingir.
Havia algo entre a lâmina e o meu corpo.
Uma língua.
Não uma língua humana.
Era bestial, de aparência esponjosa, grotesca, coberta por vermes brancos que rastejavam envolvidos por uma gosma espessa de tom acinzentado. Saía debaixo da manga esquerda do meu casaco, estendia-se por mais de um metro e estava firmemente enrolada ao redor da espada dele.
— Que tipo de monstro sem nome você é? — murmurou ele, e balançou os braços para tentar cortar a carne e soltar sua espada daquela língua estranha.
Meu sorriso zombeteiro foi a única resposta que ele obteve naquele momento. Girei meu braço direito e uma segunda língua saiu da outra manga.
Renyan saltou para trás e puxou a espada horizontalmente. No movimento, decepou vários dos vermes presos à carne pulsante, mas a gosma cinzenta impediu a lâmina de cortar ou ferir a língua.
Inclinei a cabeça, intrigado. Esperava que ele usasse aquela técnica para tentar ignorar a armadura do meu casaco e tentar atingir diretamente minha carne.
— Tinhas esperanças de um duelo mais grandioso… — Levei a mão ao queixo e o encarei com visível decepção. As línguas bestiais recuaram e desapareceram dentro das mangas do casaco.
Com a ativação do poder da carta da Rainha de Paus, eu estava mais curioso em obter algumas respostas, e testar teorias, do que realmente derrotar Renyan com todo o meu poder.
A ponta da espada de Renyan tremia em sua mão, ele a segurava com força. A observei com mais cuidado. Era uma espada Jian de lâmina longa, um tanto estreita. Meu adversário demonstrava um conhecimento mediano na arte da espada, seus ataques não eram ruins, porém ele ainda tinha muito a aprender para se tornar um espadachim de verdade.
— Vamos, me ataque logo! — Estendi a mão, e o convidei para o próximo ataque.
Seus olhos fixaram-se em mim, e ele começou a andar ao meu redor, em busca de alguma brecha.
— Está demorando demais… — Virei o meu corpo para trás, e o encarei.
— De onde vem esse sua besta terrível? — questionou ele, ainda sem demonstrar nenhuma intenção clara de um novo golpe.
— Besta terrível? — gargalhei com a descrição. — É assim que chama a bocarra de guerra? Quer vê-la debaixo do meu casaco?
Ele não me respondeu, manteve a aparência séria e determinada.
— Muito bem. Concedo-lhe essa graça como prova da minha boa vontade.
Desabotoei o casaco, e o deixei cair.
O casaco negro flutuou no ar, como se tivesse vida própria, e permaneceu flutuante atrás de mim. Lefkó saiu de um dos bolsos internos, sibilou confusa para mim, e entrou novamente para sua morada.
Por baixo do casaco, eu vestia apenas uma camisa acinzentada, sem mangas. Na minha aparência habitual, eu possuía uma estatura comum, e um corpo levemente atlético. Contudo, sob o efeito da Rainha de Paus, meu organismo havia se moldado para suportar o poder da carta. Minhas costas se alargaram, com dois grandes tumores que a cobriam por inteiro.
E Renyan pode ver a verdade.
Em ambos os meus ombros, haviam duas bocas sem dentes, dos quais, os vermes brancos escorriam e se retorciam.
— Você é um demônio! — bradou. — Da raça mais vil que existe! Cujo tesouro é a prova da própria ganância! Veio à nossa terra para desencaminhar os homens e trazer desgraça às mulheres!
Aproximei o dedo indicador esquerdo do ouvido e fiz círculos no ar.
— Uma ameba comeu o seu cérebro? Sou tão humano quanto você.
— Talvez já tenha sido — retrucou ele. — Mas as artes das trevas e os caminhos dos demônios corromperam sua mente e seu coração. Seu Dantian foi privado pelos deuses, que o castigaram com esse fim abominável.
Levei a mão ao nariz e respirei fundo.
— Eu apenas usei o poder de uma das cartas do Baralho Imperial número três. É só um dom herdado dos meus ancestrais.
Eu não deveria, mas toda aquela ladainha me irritava mais do que eu gostaria de admitir.
— Então você confessa! — apontou a espada para mim, agora com uma determinação renovada.
Revirei os olhos. Minha paciência estava por um fio.
— Acabe logo com isso, minha hora de dormir esta próxima.
— Morra agora! — Renyan avançou, a lâmina da espada brilhou assim como a adaga de Hai Zi no beco escuro uma semana antes.
Era a hora de testar a minha teoria.
Uma das bocas no meu ombro se abriu, e a língua saiu de dentro dela, pronta para bloquear o golpe. Um dos vermes foi cortado ao meio pela espada, mas a lâmina escorregou na gosma cinzenta, e deslizou sem causar danos.
— Como eu pensei… — murmurei sorridente.
Quando Jiahao me contou daquela técnica pela primeira vez, e da forma que a retratou como uma técnica de nível intermediário para os habitantes daquele mundo, porém ainda fraca, eu havia estranhado de início.
Era verdade, o “Toque Fantasma” era uma técnica fraca, porém era particularmente eficaz contra mim. Tudo indicava que ela ignorava por completo materiais inorgânicos ou já mortos, o que explicava por que meu casaco não oferecia resistência alguma. Era uma técnica ideal para perfurar armaduras, porém perdia eficiência ao atingir algo orgânico e vivo com um corpo mais resistente que a própria lâmina. Meu corpo humano, por si só, era frágil; toda a minha força residia nas cartas. Em outras palavras, eu era extremamente vulnerável àquela técnica.
Os habitantes de Daolong, porém, podiam contorná-la com relativa facilidade, ao recorrer a escudos de Qi ou a outras técnicas defensivas que eu ainda não conhecia. A língua não era resistente, assim como o meu próprio corpo. Contudo, a gosma que a revestia absorvia o impacto uniformemente, como uma geleia densa, dissipava a força do golpe e impedia que Renyan alcançasse a carne com sua lâmina.
Eu ainda queria testar mais a minha teoria, deixar Renyan desferir mais alguns golpes. Esse, na verdade, era o meu grande objetivo naquele mundo, aprender sobre eles, sobre as suas forças e fraquezas.
Porém, nossa luta foi interrompida.
Uma fumaça negra se ergueu por cima do meu ombro e, pouco a pouco, começou a ganhar forma. Dela emergiu a silhueta de um homem magro, pálido, sem rosto definido.
— Mestre das Marionetes… — murmurei, ao soltar um suspiro. Não esperava a visita dele naquele momento. — Que notícias trazes para mim?
O semblante de Renyan foi tomado pelo pavor ao ver a entidade espectral se materializar atrás de mim. Ele ficou boquiaberto, tentou balbuciar algo, mas as palavras morreram na garganta.
— Calado — interrompi, antes que retomasse aquele discurso interminável. — Se eu ouvir sua voz de novo, arranco a sua língua.
Os olhos dele se arregalaram. O medo deu lugar à surpresa, quase à incredulidade.
— Vou te pedir um favor — continuei, ao erguer a mão direita e fazer um sinal positivo. — Deixa eu conversar um minutinho com o Mestre das Marionetes. Depois a gente volta a duelar, pode ser?
— Seu demônio…
Para o nosso azar, Renyan decidiu insistir na ladainha. Ignorei completamente. Cheguei ao ponto de não lembrar mais nada do que ele disse em seguida, de tão saturado que eu estava.
Lancei um olhar às duas bocas em meus ombros. Depois, voltei a encarar Renyan, que seguia com seu monólogo fervoroso sobre como a justiça dos deuses cairia sobre mim.
— Vocês podem lutar com ele, por favor? — pedi, ao me dirigir às bocas.
Os tumores se desprenderam do meu corpo, e se juntaram numa massa estranha de carne, sangue, vermes e vários tentáculos avermelhados. Renyan mal teve tempo de processar o que era aquela coisa. Ela avançou contra ele num ataque frenético, mesmo atordoado pela visão da criatura, Renyan ainda conseguiu bloquear o primeiro golpe de um dos tentáculos com a espada.
Virei-me de costas para a luta, e questionei o mestre das marionetes.
— O que trazes para mim? — Levantei a mão, agarrei o casaco flutuante e o coloquei de volta.
— Sinto a presença da garota perto do porto, existem muitos atrás dela… Temo que não possa interferir sem manifestar minha presença. Se o senhor for agora, talvez consiga obter as respostas que deseja — falou o espectro. Cada palavra saía da sua boca com dificuldade, em um tom lento e devagar.
— Ela está sozinha? — indaguei, ao ter que dar dois passos para o lado para desviar de uma árvore que caía devido à luta de Renyan contra a bocarra de guerra.
— Sim, meu Senhor. Ela parece que roubou um dos barcos dos Hua Yuling, e agora navega a favor dos ventos para tentar chegar a terra firme.
— Mê dê cinco minutos, chego em breve.
Antes que eu pudesse partir, eu ainda tinha que resolver meu duelo com Renyan.
Isto é, se ainda houvesse um duelo.
Eu havia ficado de costas para toda a luta de Renyan, e o meu foco total na mensagem, me fez perder o ápice da batalha. Renyan estava caído no chão, com a criatura em cima dele, seu corpo inteiro manchado de sangue.
— Me explica uma coisa, como foi que tu perdeu um braço? — Cocei a bochecha ao me aproximar do seu corpo moribundo, sem entender a cena. — A bocarra de guerra não tem lâminas, nem dentes.
O braço esquerdo não existia mais, em seu lugar, um cotoco grotesco, no qual os vermes se retorciam ao devorar a carne.
— Seu desgraçado! Me mate logo! Ou você é tão desonrado para não dar ao seu oponente um duelo justo?
— Tu é muito incompetente, sabia? — Estendi a mão, e a criatura subiu pelo meu ombro, antes de desaparecer por debaixo do meu casaco.
Renyan usou um pouco das forças que tinha para tentar cuspir no meu rosto.
Só que o cuspe voou um pouco, e caiu sobre ele no chão.
Quase deixei escapar uma gargalhada.
Ajoelhei-me ao lado dele. Agora era a minha vez de contar uma história.
— Sabia que é tecnicamente impossível curar alguém cujo corpo foi devorado por larvas de fênix pálida? — disse, num tom casual.
— Só… me deixa morrer em paz… — a fúria na voz dele se dissolveu, e deu lugar a um cansaço profundo.
Suspirei.
— Me bateu uma preguiça. E antes de tudo, você já falou demais, agora é a minha vez.
Ele não respondeu. Apenas virou o rosto para o céu, fitando as estrelas enquanto lágrimas escorriam em silêncio.
— Onde eu estava mesmo? Ah, sim. Larvas de fênix pálida. Criaturas fascinantes. Imortais. Se você esmagar, queimar ou tentar destruí-las de qualquer forma, elas se regeneram em pouco tempo.
Inclinei a cabeça para ele, e tentei compreender o que ele passava por sua cabeça naquele momento.
— E agora você deve estar se perguntando como isso funciona, certo?
Esperei por um tempo por Renyan, mas ele continuou calado, continuava a contemplar as estrelas, enquanto lágrimas escorriam pelo rosto.
— Quer saber? — Me levantei. — Se você não tem interesse, eu também não vou explicar.
Dei as costas e comecei a me afastar.
— Não me deixe assim, para morrer nessa floresta úmida! Me mata logo! Eu não posso viver com essa desonra!
Parei.
— Verdade…
Abaixei-me, apanhei a espada dele caída na relva e voltei a me aproximar, o metal refletiu por um instante a luz das luas diretamente sobre os seus olhos. Coloquei a lâmina da espada logo acima da sua testa.
— Foi um desprazer conhecê-lo…
Com estas palavras, abaixei a espada, e tomei uma decisão que eu não jamais poderia medir como as consequências dela afetariam a minha jornada.

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