Um dos anciões, aquele com a barba enrolada como pergaminhos, remexeu-se na cadeira de madeira, fazendo-a ranger em protesto. Ele apontou um dedo nodoso na minha direção.

    — Mas Aruan… — A voz dele tremeu de indignação. — A presença deles é uma afronta aos costumes. Eles são forasteiros. Espectros da Superfície. Não têm o direito de ouvir os segredos do solo.

    Chega.

    A palavra de Aruan não foi gritada. Foi solta como uma pedra pesada no centro da mesa.
    Ele olhou de soslaio para o ancião. Um olhar calmo, mas com a pressão de um vulcão adormecido. O velho engoliu em seco, recuando.

    — Eles se mostraram capazes de ouvir com respeito. De sangrar por nós. E de aprender. — Aruan voltou os olhos para a mesa. — Além do mais… a perspectiva de quem vem de fora pode ver rachaduras que nós ignoramos. Será benéfico para eles compreenderem o que está em jogo.

    Ele fez um gesto com a mão aberta para a representante de Marezza.
    — Prossiga, Mirassol. O chão é seu.

    Mirassol assentiu com uma gentileza calculada. Ela estalou os dedos.
    Um de seus guardas se aproximou, passos ritmados, e colocou um grande tubo de couro curtido sobre a mesa. Ela puxou a tampa e desenrolou o mapa com cuidado.
    Era uma obra de arte cartográfica: pele de animal tratada, tinta à base de minérios. Revelava as regiões de Marezza e Kura’ru em detalhes impressionantes — rios azuis, florestas verdes, áreas de cultivo e as linhas fronteiriças vermelhas.

    — Senhores Conselheiros. — começou ela, a voz firme e clara como água de nascente. — O Tratado de Dez Anos garantiu a paz, mas não a estabilidade. Marezza cresceu… e Kura’ru também. Estamos engordando dentro de uma jaula pequena demais. Alcançamos o limite do que esse papel nos permite.

    Os conselheiros se remexeram. Alguns cruzaram os braços, defensivos. Outros se inclinaram para a frente, gananciosos.

    Mirassol continuou, o dedo traçando uma linha azul no mapa:

    — A Fronteira do Norte, próxima ao Rio Gallen, tem sofrido com secas severas. Os fluxos que antes alimentavam as aldeias pesqueiras de Marezza estão sendo descaradamente desviados para sustentar as novas plantações de trigo ao sul de Kura’ru.

    — Nossas plantações só existem porque nossos jovens construíram aqueles canais com as próprias mãos e picaretas! — retrucou um dos anciões, batendo o punho na mesa. — O trigo alimenta a todos!

    — E nossos jovens estão morrendo de fome e sede para que esses canais existam! — replicou Mirassol. Ela não elevou a voz, mas a intensidade aumentou. — A água é sangue nesta camada, Conselheiro. Não estou aqui para acusar. Estou aqui para propor uma transfusão.

    O silêncio se abateu novamente. Pesado.

    Ela é boa nisso, pensei, observando o modo como ela se posicionava. Elegante, confiante, sem jamais parecer agressiva, mas nunca recuando. Mirassol negociava como se estivesse dançando numa ponte feita de vidro sobre um abismo. E ela não tropeçava.

    — Marezza está disposta a ceder rotas comerciais exclusivas para Kura’ru em troca de um novo acordo sobre os direitos de vazão do Rio Gallen. — Ela desenrolou um segundo pedaço de mapa, menor, cheio de rotas vermelhas. — Essas rotas incluem três entrepostos de especiarias raras e acesso privilegiado e sem taxas às caravanas das tribos nômades do Leste.

    Um murmúrio sôfrego atravessou os conselheiros. Especiarias valiam ouro aqui embaixo.

    — E em relação ao comércio marítimo? — perguntou um conselheiro de cabelos prateados, a voz grave e interessada. — Marezza expandiu seus portos fluviais recentemente. Há rumores de que firmaram acordos com os mercadores da Névoa Negra.

    Mirassol sorriu. O sorriso da vitória.

    — Sim. E parte desses lucros pode beneficiar Kura’ru. — Ela girou o mapa e apontou para um ponto costeiro. — Podemos estabelecer um armazém conjunto. Zona Franca. Sem taxas, sem espionagem, com um conselho misto de supervisão. Lucro dividido.

    — E o que impedirá Marezza de quebrar o acordo e fechar as comportas como no passado? — questionou a conselheira idosa, os olhos semicerrados como fendas, tentando desvendar a alma de Mirassol.

    — Nada. — disse Mirassol, brutalmente honesta. — Exceto o que estamos fazendo agora: sentando à mesa como iguais, não como inimigos esperando a próxima guerra. A história pesa, Senhora, mas o futuro exige novas fundações. Queremos dividir a responsabilidade. Não monopolizar o controle.

    Uma pausa longa.
    Era como se cada palavra fosse uma gota de óleo jogada em um mar inflamável. Eu sentia o olhar de Cedric ao meu lado; ele estava tenso, a mão roçando a adaga, pronto para o caos.

    Zeyra-Kaê, a Sacerdotisa de cabelos prateados, até então silenciosa como uma estátua, abriu os olhos lentamente. A cor âmbar deles parecia brilhar com um calor contido.

    — O que vocês propõem… é ousado. — disse ela, a voz suave preenchendo a sala. — Mas… necessário. A estagnação é a morte.

    — E quanto à Tribo do Sol Branco?

    A pergunta veio de um dos anciões do fundo.
    Foi como jogar gelo na fervura. O ritmo da conversa quebrou.
    Todos se entreolharam. O medo ancestral passou pelos olhos deles.

    Aruan entrelaçou os dedos e os levou ao queixo, pensativo, a cicatriz no rosto se contraindo.

    Mirassol parou. Ela respirou fundo.
    A expressão diplomática deu lugar a um sorriso de canto. Um sorriso de quem segura o ás de espadas.

    — Sobre isso… Tenho uma proposta irrecusável.

    Mirassol se levantou completamente. A postura dela cresceu.
    Ela olhou para cada um na mesa.

    — Quero formar uma comitiva conjunta. Kura’ru e Marezza. Para uma expedição diplomática até a Vila do Sol Branco… Já se passaram mais de trezentos anos desde a última vez que alguém ousou pisar naquele solo sagrado e voltou vivo.

    Um silêncio sepulcral caiu sobre a sala.
    Era blasfêmia. Era suicídio.

    A anciã das rugas profundas franziu o cenho com tanta força que parecia sentir dor física. Ela bateu a mão na mesa.

    — Você perdeu o juízo, garota?! — A voz dela era seca, ríspida. — O motivo do isolamento é mais do que claro! Há trezentos anos, a Guerra pelo Corpo da Divindade Caída naquela região nos deixou cicatrizes que a terra ainda não curou!
    Ela apontou um dedo trêmulo para o Norte.
    — Aquele território é proibido por decreto divino e medo mortal! Não se trata apenas de tabu político — é uma ferida aberta no mundo! Eles matam quem se aproxima!

    Os outros conselheiros murmuraram concordância, o pânico crescendo.

    Mirassol, ao invés de se abalar ou recuar, pareceu ainda mais animada. Seus olhos azuis brilharam de uma forma quase travessa, como se estivesse prestes a contar a melhor piada do mundo.

    — Mas isso foi no passado, Nobre Anciã. O medo nos cegou.

    Ela se virou.
    Com um gesto teatral e elegante, ela apontou a mão aberta para o homem ao seu lado.
    Para Yuri Marezza.
    O garoto arrogante, de cabelo branco e cara de poucos amigos, que estava sentado de braços cruzados, parecendo entediado com a discussão.

    — Porque… — continuou Mirassol, a voz vibrando de triunfo. — Graças ao meu “querido” irmão, que por um acaso do destino acabou conhecendo alguém muito especial durante uma patrulha na fronteira proibida…

    Ela fez uma pausa dramática.

    — Ele conheceu a Princesa do Palácio Selenita. A herdeira direta da Tribo do Sol Branco.

    A sala prendeu a respiração.
    Yuri bufou, revirando os olhos, as orelhas ficando vermelhas.

    — E acontece… — Mirassol segurou o riso. — Que a Princesa se apaixonou perdidamente por ele quando a comitiva dela passou escondida pela margem do rio. Foi amor à primeira vista. Ou maldição, não sei.

    Ela colocou as mãos na mesa, inclinando-se para os anciões chocados.

    — E a própria Princesa enviou, secretamente, um convite oficial. Para que fôssemos lá. Não como invasores.
    — Mas como convidados de honra… para um Casamento.

    O salão inteiro congelou.
    Queixos caíram.
    Olhos se arregalaram em choque absoluto.

    Eu olhei para Yuri.
    O moleque arrogante que tentou me congelar na cachoeira… tinha conquistado a herdeira da tribo mais perigosa e isolada do mundo?

    Cedric, ao meu lado, sussurrou o que todos pensavam:
    — Nem fodendo…

    Aruan reencostou-se na cadeira de madeira maciça, a estrutura rangendo sob seu peso. Ele levou a mão ao queixo, os olhos escuros calculando riscos e benefícios.

    — Isso é muita surpresa… — murmurou ele, a voz grave ecoando no silêncio do conselho. — O que acha disso, Lysanthir?

    Todos os olhares se voltaram para mim. Eu era o forasteiro, o elemento neutro na equação.
    Olhei para ele, cético, mas pragmático.

    — É uma proposta irrecusável. — Minha voz saiu firme. — Falando o óbvio: há trezentos anos ninguém entra no território do Sol Branco e vive para contar. Se eles abriram a porta, mesmo que por uma fresta romântica… é uma chance em um milhão. Ignorar isso seria estupidez estratégica.

    Aruan inclinou-se um pouco à frente, cruzando os dedos sobre a mesa de sangue seco e encarando Mirassol.

    — …Mesmo sendo inconveniente demais, e perigoso demais… você está certo. É a melhor chance que teremos de nos reconectar com eles antes que os recursos acabem.

    Outro ancião, o mais velho de todos, com o rosto marcado por tatuagens tribais tão desbotadas que pareciam sombras na pele, murmurou, incrédulo:

    — A última vez que um ser do Sol Branco apareceu foi na assinatura do Tratado, há dez anos… Nem mesmo ouvimos suas vozes desde então. Eles são fantasmas. Isso… Isso é inacreditável.

    Mirassol assentiu, mantendo o sorriso gentil e confiante de uma jogadora de pôquer que sabe que tem o Royal Flush.

    — Por sorte, o destino — e os hormônios — jogaram a nosso favor. Meu irmão acabou se apaixonando pela Princesa.

    Ao lado dela, Yuri afundou na cadeira. O rosto dele, geralmente pálido de raiva, agora estava num tom de vermelho que competia com as paredes do palácio. Ele cobriu os olhos com a mão, murmurando maldições, a arrogância totalmente desmantelada pela vergonha amorosa.

    — E, graças a essa união improvável… — continuou Mirassol, ignorando o colapso do irmão. — …surgiu uma janela de esperança. É claro que há riscos, mas também é uma oportunidade de ouro. Então, Aruan-Kaê… — Ela virou-se para ele com respeito, mas também com uma pressão sutil. — O que acha? Podemos prosseguir com essa missão conjunta?

    Aruan fechou os olhos por alguns segundos. A sala prendeu a respiração.
    Então, com um leve sorriso enigmático no canto dos lábios, ele abriu os olhos e virou o olhar diretamente para mim e para Cedric.

    — Vocês dois irão com ela. — disse ele. — Poderiam fazer esse favor à Tribo Kura’ru?

    Cedric olhou para mim, claramente confuso, piscando. Ele tentava entender se aquilo era uma ordem militar, um pedido de amigo ou uma sentença de morte.
    Eu, por outro lado, senti algo diferente. Algo mais profundo.
    Um chamado do destino.

    Não hesitei.
    Com um movimento rápido, coloquei a mão na nuca de Cedric e forcei a cabeça dele para baixo, numa reverência brusca. Fiz o mesmo, curvando-me com respeito.

    — Mas é claro, Aruan. — respondi. — Seria uma honra.


    Uma missão diplomática de Nível S para dois forasteiros sem clã seria algo inadmissível para os anciãos conservadores. De fato, eu via o desconforto nos olhos deles.
    Mas Aruan era alguém muito inteligente. Ele sabia o que estava fazendo.

    E eu sabia o porquê.
    O motivo oculto era uma descoberta que fiz há uns meses, fuçando nos pergaminhos mofados da biblioteca proibida de Kura’ru.

    Havia um registro.
    Há cerca de mais de 500 anos, uma humana “caiu dos céus”.
    A descrição era precisa demais para ser coincidência: pele branca como leite, cabelos negros como a noite e olhos de ametista.
    Pela descrição, com certeza era alguém do Clã da Escuridão. Talvez uma ancestral distante.
    Alguém que chegou aqui, no fundo do mundo… e não morreu.
    Pelo que os registros diziam, essa mulher não ficou em Kura’ru. Ela seguiu para o Norte. Ela foi até a Tribo do Sol Branco… e foi recebida com hospitalidade.

    Se eles aceitaram um “Um humano da Superfície” no passado… talvez aceitassem a nós agora. Aruan estava apostando na minha linhagem, não na minha espada.


    Após mais algumas conversas banais e acordos selados com vinho de raiz, a reunião foi encerrada.
    Finalmente, saímos do Palácio.

    A noite em Kura’ru tinha caído.
    E era um espetáculo que fazia qualquer festival de Asgard parecer um enterro.

    A lua gigante e pálida dominava o céu, mas a luz que banhava a vila vinha de baixo.
    Tudo estava decorado. Lanternas de papel e vidro vulcânico flutuavam, presas por fios invisíveis, emitindo um brilho alaranjado e quente. O cheiro de carne assada e incenso doce era inebriante.

    As pessoas — guerreiros, anciãos, crianças — andavam pelas ruas com suas melhores roupas cerimoniais.

    Os moradores usavam túnicas leves, de um tecido fino e sedoso como pele de fruta madura, tingidas em cores terrosas e vibrantes. O tecido parecia capturar a luz das lanternas, criando um efeito de ondulação conforme se moviam.
    As túnicas eram presas na cintura por faixas largas de couro tingido, marcadas com símbolos antigos em relevo — círculos solares, garras de bestas, crescentes lunares. Se você passasse a ponta dos dedos, sentiria a história pulsando ali, áspera e quente.

    Nas mulheres, o estilo era fluido, belo e solto, com tecidos que deixavam os ombros à mostra, celebrando o calor da noite. Seus cabelos, longos e negros ou loiros, eram presos em penteados complexos, sustentados por enfeites de madeira pintada de vermelho-sangue e ossos polidos.
    Para os homens, o traje era mais confortável e rígido, pronto para a dança ou para a luta, com calças largas e coletes abertos.

    O som de tambores começou a ecoar, vindo da praça central. Um ritmo lento, profundo, como o batimento cardíaco da terra.

    Cedric olhou ao redor, maravilhado, a boca levemente aberta.
    — Caramba… — sussurrou ele.

    Eu respirei fundo o ar perfumado.
    A política tinha acabado. A missão suicida estava marcada.
    Mas, por esta noite…

    Este era o começo do Festival da Lua Vermelha.

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