Capítulo 13
A tempestade engoliu o Semente do Caos em um abraço violento de vento e água. As ondas se erguiam como montanhas, ameaçando engolir o navio a cada baque. O rangido constante da madeira era agora um lamento agudo, um grito de dor do casco que Nix sentia vibrar em seus próprios ossos. Ela agarrava o timão, os nós dos dedos brancos, a cada fibra de seu ser focada em manter o curso. As lições de Panacéia e Astéria sobre a resistência do navio ecoavam em sua mente, mas a realidade era um monstro muito mais aterrorizante.
— para a direita, Capitã! — A voz de Madoc cortou o uivo do vento, surpreendentemente calma. Ele estava ao lado dela, os cabelos ensopados grudados ao rosto, mas os olhos fixos nas ondas, calculando cada movimento. — Trinta graus para estibordo! Agora!
Nix obedeceu, girando o timão com toda a força. O Semente do Caos respondeu, seu casco cortando a crista de uma onda gigantesca em vez de ser engolido por ela. O convés foi varrido por uma avalanche de água salgada, mas o navio se manteve.
— Assim! É o ritmo da onda! — Madoc gritava, gesticulando. — Respire com o navio, Capitã! Sinta-o!
Era uma aula de navegação brutal, dada em meio ao caos. Madoc se provava ser um navegador excepcional. Seus comandos eram precisos, sua voz firme, e sua presença, estranhamente tranquilizadora. Ele não era apenas bom; ele era mestre em seu ofício. Ele via as correntes, sentia a mudança do vento antes mesmo que o ar mudasse.
Uma correnteza forte, quase invisível na fúria da tempestade, pegou o Semente do Caos de repente, puxando-o com uma força inumana. O navio guinou bruscamente, o mastro rangendo em protesto. O impacto fez com que o corpo do assassino ainda amarrado ao mastro principal, chicoteasse com violência. Um som seco e horrível de estalo ecoou sobre o uivo do vento.
— AS ASAS DELE! — Vênus gritou, o rosto pálido.
Seu dedo trêmulo apontava o assassino cujo corpo pendia grotescamente das cordas que o prendiam ao mastro principal. A violenta guinada do Semente do Caos, arremessado por uma correnteza invisível mas brutal, fizera seu corpo chicotear contra as amarras. O resultado era horrível: suas magníficas asas escuras, antes uma sombra imponente, estavam torcidas em ângulos impossíveis. Penas arrancadas voavam no vento ensopado, e através das feridas, ossos finos e brancos se destacavam contra a carne ensanguentada. Hugo emitia um som gutural, um guincho sufocado que se perdia no uivo do vento, seus olhos amendoados arregalados de uma dor tão aguda que transcendia a inimizade.
Nix sentiu um nó de raiva fria no estômago ao ver o prisioneiro. Era um assassino do Templo da Lua, enviado para matá-la. “Ele é da ordem de Érebo,” ecoava em sua mente. Mas o que viu naquele instante não era um predador. Era um rapaz – ela notou agora, com um choque quase físico, que ele não parecia ter mais que seus próprios dezessete anos – retorcendo-se em agonia primitiva, traído por seu próprio corpo alado. A fúria persistia, sim, mas foi sobreposta por uma onda de náusea e uma empatia involuntária, visceral. O grito de Vênus, porém, não carregava dúvida. Carregava alarme puro.
Antes que Nix pudesse articular um pensamento, Vênus já se movia. A dragoa, normalmente tão contida e elegante agiu com uma velocidade feroz. A chuva açoitava seu rosto, seus cabelos castanhos escuros colados às têmporas, mas seus olhos vermelhos brilhavam com uma determinação inabalável. O instinto de proteção, mais forte que qualquer decreto de templo ou ordem de assassinato, a impulsionou. Ela lutou contra o convés inclinado, agarrando-se a amarras soltas, até chegar ao pé do mastro onde Hugo se contorcia.
— Qual o seu nome?! — Vênus gritou, mergulhando as mãos sob seu casaco encharcado.
Ela arrancou um pedaço longo da camisa de linho que usava por baixo, um tecido mais limpo, ignorando o frio que a atingiu. As garras nas pontas de seus dedos – normalmente discretas – estavam visivelmente estendidas, prontas para rasgar o tecido com precisão.
Hugo tentou focar nela através da névoa de dor. Seus lábios se moveram, formando um sibilo que se transformou em palavra:
— Hugo! — Foi um grito rouco, mais de desespero do que de apresentação.
O Semente rugiu novamente, uma fera acuada. Outro golpe violento, e um estalo seco, o som de corda arrebentando amplificado, ecoou sobre o vento. Uma das grossas amarras que sustentavam o pesado mastro principal, já tensionada ao limite, partiu-se. A ponta solta chicoteou o ar úmido com um assobio mortal, passando perigosamente perto de Panacéia, que recolhia as velas com todas as suas forças. O mastro, de repente desequilibrado, gemeu como um gigante moribundo e começou a inclinar-se perigosamente para bombordo. Se caísse, arrastaria velas, cordames e provavelmente metade do convés para as profundezas.
— Mastro! O mastro vai cair! — A voz de Panacéia, normalmente melodiosa e calma, era um fio de tensão pura, cortando o caos.
Seus olhos vermelhos, ampliados pelo pânico, fixaram-se na estrutura que ameaçava ruir. Suas mãos minúsculas, calejadas por décadas de trabalho com madeira, branquearam ao finalmente amarrar o tecido, correu para o outro lado tentando compensar a súbita mudança de peso do navio.
O caos atingiu um crescendo ensurdecedor. O navio parecia ter vida própria, um animal encurralado lutando contra a matilha de elementos. Nix e Madoc, entrelaçados no timão principal, lutavam para manter a proa contra as ondas monstruosas que agora pareciam mirá-las com fúria pessoal. A água invadia o convés em cascatas geladas. Hugo, preso e mutilado, olhou da corda solta que oscilava como uma serpente ameaçadora, para o rosto de Vênus, que agora pressionava o pedaço de linho contra a junta sangrenta de sua asa direita. Havia terror em seus olhos negros, mas também um lampejo de algo mais: uma recusa obstinada a ser apenas vítima, um resquício de orgulho ferido.
— Eu… eu ajudo! — a voz de Hugo surgiu, fraca, rouca pela dor e pelo esforço, mas inesperadamente clara no pequeno redemoinho de relativa calma que eles ocupavam ao pé do mastro. Era um oferecimento absurdo, vindo de um prisioneiro com as asas quebradas, mas carregava uma urgência desesperada. A sobrevivência, naquele instante, era um barco minúsculo onde todos estavam amontoados, inimigos ou não.
Nix, com os músculos dos braços ardendo de esforço, sentiu a oferta como um choque. Ela olhou para Hugo, realmente olhou. Não apenas para o assassino, mas para o adolescente aterrorizado e ferido, tentando se afirmar no meio do inferno. A desconfiança não desapareceu – era como uma segunda pele –, mas foi temperada por um pragmatismo feroz. Eles precisavam de todas as mãos, mesmo as manchadas. Especialmente se essas mãos pudessem salvar o mastro que os mantinha à tona.
— Madoc! Amarre a corda de volta! — Nix ordenou, a voz rouca mas carregando uma autoridade que cortou o barulho. — Hugo, segure o que puder! Vênus, cuide do garoto!
Madoc, o rosto de pedra molhada iluminado por um relâmpago, assentiu uma vez, rápido. Soltou o timão por um instante crucial, confiando totalmente no controle de Nix, e lançou-se em direção à corda solta que dançava perigosamente. Vênus, sem hesitar, ajustou seu corpo. Com uma força surpreendente para sua estatura, ela apoiou o torso de Hugo contra o seu próprio corpo fazendo peso para o navio, enquanto suas mãos, habilidosas e firmes, continuavam a pressionar o curativo improvisado na asa ferida. O contato foi íntimo, forçado, desconfortável. Ela sentiu o tremor constante que percorria o corpo dele, uma mistura de frio, dor e choque. Ele cheirava a sangue, a chuva salgada e a algo terroso, como penas molhadas.
— Não se mexa, passarinho! — Vênus rosnou, seu rosto próximo ao dele. O apelido saiu involuntariamente, uma mistura de desdém e uma estranha tentativa de controle. — Se você cair e me arrastar, juro que vou te usar como isca para peixe-pedra!
Hugo tentou um sorriso torto, um vislumbre do insolente que ele provavelmente era, mas foi interrompido por uma onda de dor quando seu corpo se contraiu involuntariamente.
— T-tentando… dragoa… — Ele conseguiu murmurar, seus dedos com unhas afiadas agarrando-se à madeira áspera do mastro com toda a força que lhe restava. Seu olhar encontrou o de Vênus. Havia dor, sim, mas também um desafio surpreendente. “Veja, eu sirvo para algo além de morrer ou matar.”
Madoc trabalhava como um demônio. Enquanto Hugo, com um gemido abafado, usava suas pernas e o lado são do corpo para empurrar contra o mastro, tentando aliviar a tensão na corda remanescente, Madoc lutou com a ponta solta. A corda era grossa, pesada e escorregadia com a água do mar. O vento a chicoteava. Ele enlaçou, puxou, usou o peso do próprio corpo como alavanca, seus músculos saltando sob a roupa encharcada. Panacéia, no leme auxiliar, fazia pequenos ajustes frenéticos, tentando alinhar o navio para reduzir a pressão sobre o mastro ferido. Nix, sozinha no timão principal, sentia cada gemido do navio como se fosse seu. O Semente do Caos era uma extensão dela naquele momento, uma fera ferida que ela precisava acalmar e guiar.
Foi uma dança frenética e perigosa, uma coreografia improvisada sob o holofote cintilante dos relâmpagos e o rugido constante do trovão. Inimigos, aliados, pirata, fada, dragoa e assassino, todos reduzidos a uma única função: sobreviver. Os minutos se arrastaram como horas. Vênus sentiu os músculos das costas queimarem, a pressão constante de Hugo contra ela, o calor do sangue dele permeando o tecido do curativo e manchando sua roupa. Seu nariz captava seu cheiro com uma intensidade perturbadora. Hugo, por sua vez, focava na dor lancinante das asas, no frio que o penetrava até os ossos, e na pressão surpreendentemente sólida do corpo de Vênus contra o seu. Era um contato que, em qualquer outra circunstância, seria uma violação ou uma provocação. Ali, era apenas um ponto de apoio precário no mundo desmoronando.
Finalmente, com um último esforço hercúleo, Madoc conseguiu passar a ponta solta por uma argola de ferro e puxá-la com um nó complexo e rápido. O mastro estremeceu, gemeu alto, mas parou sua inclinação fatal. Estava seguro. Por enquanto.
— Seguro! — Madoc gritou, ofegante, escorrendo água, os braços tremendo de esforço.
Um suspiro coletivo, quase inaudível, pareceu percorrer o pequeno grupo. A tensão no ar diminuiu um grau. A luta imediata pela sobrevivência do navio havia sido vencida. Mas a tempestade ainda rugia ao redor, e Hugo desmoronou contra Vênus, um peso morto de exaustão e dor, um gemido longo e trêmulo escapando de seus lábios.
— Hugo! — Vênus segurou-o, evitando que ele escorregasse para o convés inundado. Seu tom era menos áspero agora. — Madoc! Panacéia! Precisamos levá-lo para baixo! Agora!
Nix, ainda agarrada ao timão como uma âncora, viu a cena. Viu a preocupação genuína no rosto de Vênus, a exaustão de Madoc, a dor aguda de Hugo. O pragmatismo endureceu seu coração novamente, mas de uma forma diferente. Ele era um prisioneiro, sim. Mas era também um ativo ferido, e Vênus precisava de ajuda para cuidar dele. Além disso, ele havia ajudado.
— Madoc, Panacéia! — Nix chamou, sua voz projetando-se sobre o vento. — Levem-no para a enfermaria. Vênus, cuide dele. E… — Ela hesitou por uma fração de segundo, seus olhos encontrando os de Hugo, que estavam semicerrados, mas conscientes. — … vigie-o. De perto.
Horas depois, a fúria do mar começou a diminuir. A chuva cedeu, e o vento se acalmou para um resmungo distante. O Semente do Caos, embora castigado e com algumas peças soltas, havia sobrevivido.
Madoc, exausto mas com a mesma calma de sempre, refez a rota.
— Com a correnteza que pegamos, Capitã… chegaremos a Hearts em uma semana.
Uma semana. Sete dias no mar aberto, com uma tripulação recém-formada e um assassino prisioneiro e pouca comida.
A calmaria relativa que se seguiu às horas mais violentas da tempestade foi como entrar em uma catedral silenciosa após um motim. O vento sibilava, não mais uivava. A chuva era uma cortina fina e persistente, não um dilúvio. O Semente do Caos balançava com um gemido constante, mas era o gemido de um sobrevivente, não de um moribundo. A luz cinzenta do amanhecer lutava contra as nuvens baixas, revelando o convés devastado: cordas emaranhadas, lascas de madeira, equipamentos espalhados, tudo coberto por uma camada viscosa de sal e água do mar.
Na pequena enfermaria do navio, um cubículo apertado cheirando a ervas medicinais, óleo de baleia e agora a sangue e medo, Vênus trabalhava. Hugo estava deitado de bruços em uma maca estreita, as asas quebradas estendidas com cuidado sobre panos limpos, mas ainda em ângulos perturbadores. Ele estava consciente, mas pálido como o velame de uma vela, os olhos fechados, os dentes cravados no lábio inferior para não gritar. Suas roupas encharcadas haviam sido cortadas e removidas, revelando um torso magro mas musculoso, marcado por cicatrizes antigas que contavam histórias que Vênus não queria imaginar.
Panacéia estava ao lado, suas mãos de fada, pequenas e incrivelmente ágeis, passando a Vênus instrumentos de um estojo de primeiros socorros: pinças, tesouras, agulhas, linha de sutura e frascos de tinturas e unguentos que cheiravam fortemente a alecrim, camomila e algo mais acre e medicinal. A anciã observava Vênus com um olhar crítico, mas aprovador. Zander ensinara os rudimentos da cura à dragoa, mas ver a frieza prática e a compaixão instintiva surgirem sob pressão era diferente.
— Limpeza primeiro, querida — lembrou Panacéia, sua voz suave como um bálsamo no ar tenso. — A água do mar é traiçoeira. E cauterizaremos depois, se preciso. O risco de infecção nas fraturas expostas…
Vênus acenou com a cabeça, concentrada. Seu rosto estava sério, os olhos dourados fixos na terrível laceração na junta da asa direita de Hugo. Com mãos que tremiam ligeiramente apenas no início, mas que logo se firmaram, ela começou. Usando água doce preciosa (reservada para emergências) e panos limpos, ela lavou meticulosamente o sangue coagulado, a água salgada e os fragmentos minúsculos de madeira e pena que se alojavam na carne rasgada. Cada toque, por mais gentil que tentasse ser, fazia Hugo estremecer e emitir um gemido rouco e abafado. Ele enterrava o rosto no braço que não estava ferido.
— Dói… — ele murmurou, a voz rouca e quebrada, uma admissão de fraqueza que soava estranha vindo dele.
— É claro que dói, passarinho — Vênus respondeu, seu tom ainda prático, mas sem a aspereza de antes. Ela não olhou para seu rosto, focada na tarefa. — Mas vai ficar tudo bem eu prometo. Agora segure-se. Isto vai arder. — Ela mergulhou um pano em uma tintura âmbar e escura que cheirava fortemente a mirra e algo picante. — É para limpar profundamente. Se infectar, perderá a asa. Ou pior.
Antes que Hugo pudesse responder, ela aplicou o líquido na ferida aberta. Ele arqueou as costas como um gato eletrocutado, um grito estrangulado escapando-lhe da garganta. As garras de suas mãos fecharam-se com força nas bordas da maca, lascando a madeira.
— FILHA DA…! — ele começou a praguejar, os olhos arregalados de dor e raiva.
— Chiu! — Vênus cortou, sem levantar a voz, mas com uma autoridade que fez Hugo cerrar os maxilares, ofegante. — Grite o quanto quiser, mas não me chame de nomes enquanto estou tentando salvar essas asinhas bonitas. Ou você prefere que eu pare? — Ela ergueu a pinça que segurava, uma gota da tintura ardente pendurada na ponta.
Hugo olhou para ela, ofegante, suor misturado à água salgada escorrendo por sua têmpora. Havia raiva nos olhos azuis, mas também medo – medo da dor, medo da perda, medo da dragoa implacável. Ele sacudiu a cabeça negativamente, um movimento pequeno e derrotado.
— Então pare de resmungar e aguente — Vênus ordenou, voltando ao trabalho. Mas o próximo toque com a tintura, embora ainda doloroso, foi um pouco mais suave.
Panacéia observava o intercâmbio com um leve arco nas sobrancelhas prateadas. Havia uma dinâmica ali, uma faísca sob a dor e o dever. Ela passou a Vênus uma agulha curva e linha de sutura finíssima, tratada com uma solução anti-séptica.
— Sutura a carne, não a pena, querida. Camada por camada. E deixe espaço para drenagem.
Vênus assentiu, engolindo em seco. Suturar era diferente de limpar. Exigia precisão cirúrgica, paciência e estômago. Ela respirou fundo, concentrando-se. A primeira picada da agulha na carne viva fez Hugo estremecer violentamente, mas ele não gritou desta vez. Apenas soltou um longo, trêmulo suspiro.
— Por que…? — a voz dele surgiu baixa, rouca, enquanto Vênus trabalhava, suas mãos habilidosas (acostumadas a amassar pão e desfiar peixe, não a costurar carne humana) movendo-se com cuidado meticuloso. — … por que está fazendo isto? Eu vim para matar sua capitã.
Vênus não parou de trabalhar. A língua apareceu levemente no canto de sua boca, sinal de concentração extrema.
— Porque você é um idiota que se machucou no meu navio — ela respondeu, secamente. — E porque Panacéia me ensinou que se pode odiar o que uma pessoa faz, mas ainda assim cuidar de sua dor. Principalmente quando ela é tão óbvia e… estúpida. — Ela puxou a linha, apertando o nó com precisão. — Além disso, se você morrer de infecção aqui, vai feder o navio todo. E eu trabalho na cozinha.
Hugo soltou um som que poderia ter sido um riso abafado ou um gemido.
— Coração mole.
— Chama-se ter nariz, passarinho. E bom senso. — Ela fez outra sutura. — Agora fique quieto. Se eu furar um tendão por sua culpa, você nunca mais voa.
A ameaça, ou talvez a menção à possibilidade de nunca voar novamente, o silenciou. Ele observava o teto baixo da enfermaria, sua respiração ainda ofegante, mas mais controlada. A dor era uma constante latejante, mas a presença concentrada e implacavelmente prática de Vênus ao seu lado era um ponto de ancoragem estranho. Ele estudou seu perfil enquanto ela se inclinava sobre sua asa. O nariz arrebitado, a testa franzida em concentração, os longos cílios escuros. Ela era… intensa. Diferente de qualquer um no Templo da Lua.
O trabalho levou horas. Suturar as lacerações profundas, alinhar os ossos quebrados o melhor possível (não era uma tarefa para um navio em alto mar; uma imobilização adequada teria que esperar), aplicar unguentos calmantes e anti-inflamatórios, e finalmente enfaixar as asas com tiras de pano limpo e talas improvisadas com ripas finas de madeira que Panacéia providenciou com sua habilidade de carpinteira. Quando acabaram, Hugo estava exausto, banhado em suor frio, mas as dores agudas haviam dado lugar a uma dor surda e pesada, entorpecida pelas ervas. Ele estava limpo, enfaixado e, contra todas as expectativas, relativamente seguro.
Vênus recuou, esfregando as costas com uma mão. Havia sangue seco sob suas unhas e manchas escuras em seu avental. Ela parecia tão exausta quanto ele.
— Ele precisa descansar — disse Vênus para Panacéia, sua voz rouca pela primeira vez. — E beber água. Muita. E comer algo. — Ela olhou para Hugo. — Você consegue comer?
Hugo tentou um aceno fraco. — Se… se não for você cozinhando, talvez — ele murmurou, um vislumbre de sua insolência anterior retornando, agora desprovida de força real.
Vênus revirou os olhos, mas um canto de seus lábios se moveu, quase um sorriso. — Hilário. Eu cozinho melhor do que você mata, aparentemente. — Ela virou-se para buscar uma tigela de água. — Mas hoje você tem sorte. Temos um ensopado de ontem. Difícil estragar um ensopado requentado.
Enquanto Vênus saía momentaneamente em direção à pequena cozinha anexa, Panacéia aproximou-se da maca. Seus olhos violeta, cheios de uma sabedoria antiga e de uma ternura que não diminuía com a severidade, estudaram Hugo.
— Ela salvou suas asas, jovem — disse Panacéia, sua voz suave como seda envelhecida. — E possivelmente sua vida. O mar não perdoa os feridos, agradeça.
Hugo não respondeu. Ele fechou os olhos, o rosto contra o braço. As palavras da fada ecoaram no vazio deixado pela dor e pelo esgotamento. Gratidão? Por uma inimiga? Era um conceito estranho, perigoso. Mas o toque firme e competente de Vênus, sua voz áspera mas constante, sua presença inesperadamente sólida no meio do caos… essas eram sensações reais, tangíveis. Mais reais, naquele momento, do que os votos sombrios feitos ao Templo ou ao conselheiro. O cheiro de ervas e sangue, o gemido constante do navio, e o fantasma do toque dela em sua pele enquanto o segurava contra o mastro permaneceram com ele enquanto ele escorregava para um sono inquieto e cheio de dor. O inimigo tinha um rosto agora. E era um rosto que, contra toda lógica, não queria vê-lo morto. A confusão era uma dor diferente, mas tão penetrante quanto a das asas quebradas. O navio balançava, levando-o não apenas para Hearts, mas para águas totalmente desconhecidas.
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