Capítulo 14
A luz do sol da manhã banhava o convés do Semente do Caos em ouro líquido, transformando o sal seco em minúsculos diamantes. Madoc, o navegador, ocupava seu posto ao lado do leme, seu corpo esguio e poderoso – herança de sua linhagem de tubarão-branco – movendo-se com uma economia de movimento que contrastava com a postura tensa de Nix. Seus olhos obsidiana, profundos e impenetráveis como a Fossa das Lamentações, varriam o horizonte, depois o mapa desenrolado sobre um baú, depois os instrumentos de navegação: um astrolábio prateado e um sextante de bronze que parecia ter navegado mares esquecidos. A luz revelava o leve tom azul-petróleo de sua pele, e as fendas discretas das guelras em seu pescoço abriam e fechavam com sua respiração calma, ritmada como a maré.
— A corrente quente do Mar de Coral — explicou Madoc, sua voz um ronco suave que parecia vibrar no osso do kraken do leme. Seu dedo indicador, com uma membrana quase imperceptível entre as juntas, traçou uma linha sinuosa no pergaminho. — Ela se curva aqui, como uma serpente adormecida, antes de colidir com a corrente fria das Profundezas de Spades. Se a cavalgarmos corretamente, Capitã, será como domar um hipocampo alado – ganharemos dois dias preciosos. Mas se errarmos o ângulo… — Ele fez um gesto fluido com a mão, uma aleta poderosa apenas sugerida, indicando o navio sendo engolido pelo vazio azul. — … seremos arrastados para a Deriva do Esquecimento. Hearts se tornará um sonho distante.
Nix mordeu o lábio inferior, tentando transpor as linhas abstratas do mapa para a vastidão indomável diante dela. A frustração era um nó na garganta. — Como… como eu sinto isso, Madoc? A corrente? O Semente… ele emite algum som? Uma vibração diferente?
Madoc virou-se totalmente para ela, um leve arco de interesse nas sobrancelhas escuras. — Ele te ouve, Nixoria — disse, baixando a voz, usando seu nome pela primeira vez desde a tempestade. O som fez um calafrio percorrer sua espinha, não totalmente desagradável. — Mas você precisa aprender a ouvi-lo de volta. Não é um som, não exatamente. É… um pressentimento nas tábuas sob seus pés. Uma sintonia. — Ele colocou a palma da mão larga e quente contra o mastro principal. Um leve tremor percorreu a madeira, uma resposta. — Feche os olhos. Esqueça o pergaminho. Sinta o balanço do navio. O ritmo da sua respiração contra o mar. A pressão do leme nas suas mãos. Ele está falando. Sempre fala.
Nix hesitou, lançando um olhar rápido pelo convés. Vênus estava a bombordo, esfregando vigorosamente o convés manchado de alcatrão com areia úmida. Seus ombros musculosos sob a camisa leve estavam tensos, mas seus olhos vermelhos, não perdiam nada. Hugo, o prisioneiro, estava sentado num caixote perto da coberta, ainda pálido, as asas imobilizadas por talas e bandagens sob uma túnica larga emprestada por Vênus. Seus olhos azul-celeste, no entanto, estavam fixos em Madoc com uma intensidade que beirava o febril, uma suspeita incansável. Panacéia, mais adiante, remendava uma rede de pesca com dedos ágeis, suas asas translúcidas dobradas como um xale prateado sob a luz. Seu olhar, porém, era perceptor.
Respirando fundo, Nix fechou os olhos. O mundo exterior dissolveu-se no calor do sol em seu rosto, no cheiro salgado e vivo do mar, no ronco profundo e constante que vinha das entranhas do navio – o coração do Semente. Concentrou-se nas palmas das mãos no leme liso e pulsante. Sentiu a madeira viva, quente, respondendo ao seu toque. Sentiu o balanço suave e previsível, uma valsa diferente da cacofonia da tempestade. Era… uma cadência. Um coração gigante batendo em sintonia com o oceano.
— Ele está… calmo — murmurou Nix, surpresa. — Satisfeito? Não… confiante. Como depois de uma boa luta vencida.
Abaixo de seus pés, o Semente emitiu um gemido baixo, profundo, quase um ronronar de aprovação. Uma onda de calor, de reconhecimento, percorreu o leme e subiu pelos braços de Nix.
— Exatamente — Madoc sussurrou, e desta vez, um fio de aprovação genuína, quase calorosa, tingiu sua voz normalmente impenetrável. Seus olhos obsidiana estudaram o rosto concentrado de Nix: a leve franzida entre as sobrancelhas, a ponta da língua aparecendo no canto dos lábios enquanto ela mergulhava na sensação, a determinação crua moldando seus traços juvenis. Havia uma coragem ali, uma resiliência que lhe aquecia o peito de uma forma estranha e desconfortável. Ela era tão jovem, tão visivelmente sobrecarregada pelo peso da capitania e da recompensa sobre sua cabeça, mas não se dobrava. Lutava. Aprendia. E ele, Madoc, o eterno nômade que evitava amarras como o diabo da água salgada, estava ali, querendo ensiná-la. Querendo vê-la triunfar. O sentimento era novo, vertiginoso, como uma correnteza inesperada puxando-o para águas desconhecidas e perigosamente profundas. Ele desviou o olhar subitamente, sentindo um calor estranho subir por seu pescoço, abaixo das guelras que se abriram um pouco mais.
— Agora — continuou ele, forçando a voz a uma neutralidade profissional que soou falsa em seus próprios ouvidos, — abra os olhos. Olhe para o horizonte, não para o mapa. Veja a textura da água lá longe. Mais escura, mais lisa, como óleo derramado sob o sol? É a língua da corrente quente. É para lá que ele quer ir. O Semente te diz. O mapa… o mapa apenas confirma o que você já sentiu aqui. — Ele tocou levemente o próprio peito, acima do coração.
Nix abriu os olhos, ofegante. Uma centelha de compreensão, pura e vibrante, iluminou seus olhos turquesa por trás das lentes.
— Eu… eu vejo! — Ela apontou, um sopro de excitação rouco escapando-lhe. — Lá! É diferente! Como seda sobre aço!
Foi nesse momento de pequena vitória, de conexão frágil mas eletrizante com o navio vivo, que Hugo decidiu atacar. Empurrando-se dolorosamente do caixote com o braço são, ele mancou até onde Madoc estava, bloqueando deliberadamente a luz do sol com seu corpo ainda frágil.
— Ei, tubarão — a voz de Hugo era rouca, ainda fraca, mas carregada de uma provocação afiada. Seus olhos azuis, frios como gelo de glaciar, escavamavam o rosto impassível de Madoc. — Me tira uma dúvida. Seu rosto… me é familiar. Estranhamente familiar. Como se tivéssemos compartilhado uma cela úmida em Spades, ou uma mesa de jogo suja em algum porto do Sul. — Ele inclinou-se um pouco, o cheiro de ervas medicinais e sangue seco emanando dele. — Trabalhamos para os mesmos patrões, alguma vez? Os que pagam em ouro… ou em silêncio?
Madoc ergueu a cabeça do astrolábio com uma lentidão calculada. Seus olhos negros, profundos e frios como as trincheiras abissais, encontraram os de Hugo. Um sorriso se desenhou em seus lábios, perfeito, polido, tão falso quanto uma pérola de vidro. Era um sorriso que não aquecia os olhos, apenas os tornava mais impenetráveis.
— Memórias interessantes você tem, passarinho — respondeu Madoc, a voz suave como seda molhada, mas com uma lâmina de gelo embutida. — A dor nas asas, o sol forte… ou talvez o medo de nunca mais cortar os céus. Coisas assim nublam a mente, criam fantasmas. — Ele deu um passo largo para o lado, contornando Hugo com uma facilidade desdenhosa que fez o jovem assassino perder o equilíbrio por um instante. Madoc voltou-se para Nix, que observava a troca com os olhos estreitados por trás dos óculos, a desconfiança renovada como uma chama sob as brasas. — Capitã, não se distraia. Ajuste o leme três graus a estibordo. Siga a língua escura. Sinta o Semente ansiando por ela.
Nix agarrou o leme com força, lançando um último olhar penetrante para Madoc. A provocação de Hugo era um farol apontando para as sombras que cercavam o navegador. O que ele escondia nas profundezas de seu olhar obsidiana? Por que alguém tão habilidoso, um predador nato disfarçado de homem-peixe, escolheria seu navio caótico e marcado? Mas a ordem era clara, e a oportunidade de sentir o navio obedecendo ao seu comando, guiado por sua intuição recém-descoberta, era uma tentação irresistível. Ela obedeceu, girando o leme com suavidade. O Semente respondeu com um gemido profundo e satisfeito, sua proa ajustando-se com elegância na direção da corrente quente.
Hugo ficou parado, observando as costas largas de Madoc, uma máscara de frustração e confusão nítida em seu rosto retinto. Ele jurava conhecer aquela estrutura óssea, aquela frieza calculista. Algo nas maçãs do rosto salientes, na linha da mandíbula inflexível. Mas Madoc era uma fortaleza. Hugo soltou um grunhido baixo e voltou a mancar para seu caixote, a dor nas asas latejando em protesto. Seus olhos, no entanto, encontraram os de Vênus, que parara de esfregar o convés. Ela o encarava com uma sobrancelha arqueada, um misto de reprovação e… algo mais? Interesse? Em seus olhos dourados, uma pergunta silenciosa pairou. Hugo respondeu com um sorriso pequeno, torto, desafiador. Vênus revirou os olhos com força, um leve rubor subindo em suas bochechas altas, e voltou a esfregar a mancha de alcatrão como se fosse o rosto de Madoc.
A tarde desenrolou-se com Madoc guiando Nix através de uma imersão intensiva na linguagem do mar e do navio. Ele mostrou-lhe como ler as nuvens – os cirros finos como cabelos de anjo que anunciavam ventos fortes, os cúmulos inchados como bolas de algodão que podiam trazer chuva ou dissipar-se em promessas vazias. Ensinou-a a identificar as primeiras estrelas-guia mesmo sob o céu azul, usando o sextante com uma precisão que parecia mágica, seus dedos com membranas tocando o metal frio com familiaridade íntima. Explicou, com paciência que surpreendia até a ele mesmo, como o Semente espelhava suas emoções – como a ansiedade dela travava o leme, como a determinação clara inflava as velas como se sopradas por um deus favorável.
— Ele é você, Capitã — Madoc disse em um momento de calmaria, enquanto Nix traçava uma rota sinuosa entre recifes traiçoeiros no mapa. Ele estava próximo demais, apontando um detalhe minúsculo, seu braço quase roçando o dela. Nix sentiu o calor emanando dele, um calor úmido e profundo, diferente do sol, selvagem como o oceano abissal. E o cheiro… sal marinho intenso, sim, mas também algo musgoso, antigo, como corais das profundezas. Ela estremeceu involuntariamente. Suas orelhas felinas – pontudas, cobertas por uma penugem castanha macia – surgiram instantaneamente por cima de seus cabelos curtos desalinhados, girando como pequenos radares na direção dele. Sua cauda, fina e com a ponta afilada como uma agulha, escapou por baixo da barra da calça e bateu um ritmo nervoso contra sua perna.
— Nixoria! — A voz aguda de Panacéia cortou o ar como uma faca, vinda do seu canto. A fada anciã não levantou os olhos da rede, mas sua voz era uma advertência afiada. — O sol está alto. Talvez queira ajustar seu… colarinho. Antes que certos olhares se fixem onde não devem.
Nix corou furiosamente, um rubor que subiu das clavículas até as pontas das orelhas, que se achataram contra o crânio antes de desaparecerem. Sua cauda recolheu-se num movimento rápido e envergonhado. Ela evitou o olhar de Madoc, concentrando-se ferozmente no pergaminho, sentindo o coração bater forte contra as costelas. Madoc observou a rápida transformação com uma expressão indecifrável. Havia um brilho de fascinação nos olhos obsidiana, uma curiosidade que ia além do estranho. Era… vulnerável. Ferozmente única. Ele teve que conter um impulso estúpido de sorrir, não de gozação, mas de uma estranha ternura que apertou seu peito. Afastou-se um passo, dando-lhe espaço físico, mas não mental.
— O… o colarinho está perfeitamente ajustado, Panacéia — murmurou Nix, a voz rouca de constrangimento.
Madoc retomou a lição sobre as correntes de ressaca, mas sua atenção estava dividida. Enquanto explicava os ventos alísios e suas armadilhas, seus olhos eram atraídos repetidamente para o perfil concentrado de Nix. Para a franja rebelde que insistia em cair sobre a lente do óculo, para a língua que voltava a aparecer enquanto ela calculava uma distância com a língua entre os dentes, para a linha decidida de seu queixo quando ela finalmente acertava uma marcação complexa. Era uma força da natureza em miniatura, um vendaval aprendendo a ser conduzido. E Madoc, o solitário, o mulherengo de porto que colecionava sorrisos como conchas vazias, sentia-se estranhamente… ancorado. Ancorado e profundamente perdido. Porque aquela atração não era apenas pelo corpo ágil ou pelos olhos turquesa que lembravam águas tropicais. Era pela garota inteira. Pela sua coragem teimosa, sua inteligência rápida, sua luta feroz. Era admirativa. Era perigoso. Profundamente perigoso. Cada olhar que ele lhe dirigia era uma pequena traição a um juramento mais sombrio.
Ao pôr do sol, quando o céu se incendiou em tons de âmbar, púrpura e rosa-sangue, tingindo as velas do Semente em brasas, a tripulação reuniu-se para um jantar frugal: peixe seco reidratado e bolachas que desafiavam os dentes, preparado por Vênus com pragmatismo, não com amor. Sentaram-se em círculo no convés limpo, o cansaço do dia pesando, mas também um frágil senso de comunidade forjado no fogo da tempestade e na calmaria que se seguira.
Hugo, alimentado por Vênus com gestos que alternavam entre a relutância e um cuidado meticuloso que não admitia recusa, não tirava os olhos de Madoc. O fogo da lamparina a óleo dançava em seus olhos azul-celeste.
— Então, navegador das profundezas… — começou Hugo, engolindo um pedaço de bolacha com dificuldade. — Essa história de águas turvas… você nasceu nelas? Ou só se esconde nelas?
Madoc sorriu, seus dentes – discretamente mais afiados que o normal – brilhando à luz fraca. — Águas turvas são o meu habitat natural, passarinho. Tudo fica mais interessante quando a verdade está encoberta. Como um tesouro no lodo. — Ele bebeu um gole de água de um odre, seus olhos negros fixos em Hugo como dois poços sem fundo. — Mas minha vida é tão monótona quanto um dia sem vento. Nada que mereça ocupar seus pensamentos, já tão… agitados.
Vênus, sentada ao lado de Nix, soltou um bufado desdenhoso. — Monótona como a lâmina que você esconde nas costas, talvez.
— Vênus — advertiu Panacéia, suavemente, mas seus próprios olhos violeta estudavam Madoc com a intensidade de quem examina um espécime raro e potencialmente venenoso.
Nix permaneceu em silêncio. Observava Madoc, depois Hugo, depois as chamas dançantes da lamparina. Sentia as peças se movendo, mas o quebra-cabeça permanecia indecifrável. O Semente balançava suavemente sob eles, seu ronco constante um mantra reconfortante. Ela colocou a mão no convés, sentindo a madeira quente e viva. Ele estava calmo. Satisfeito? Ou apenas observando?
Mais tarde, sob um manto de estrelas tão brilhantes que pareciam furos no véu da noite, Nix ficou sozinha na amurada de bombordo, olhando para a imensidão fosforescente. Madoc aproximou-se silenciosamente, sua presença anunciada apenas pelo cheiro característico de mar profundo e pelo calor que emanava dele.
— Você navegou bem hoje, Nixoria — disse ele, sua voz mais suave no escuro, como a espuma nas pedras à noite. — O Semente responde a você. Ele confia no seu comando.
Nix virou-se lentamente para encará-lo. A luz das estrelas refletia em suas lentes, escondendo seus olhos turquesa, mas não a linha firme de seus lábios. — E você, Madoc? Confia em mim? Ou só confia que o Semente sabe escolher uma capitã?
A pergunta pairou no ar, pesada como âncora. Madoc ficou em silêncio por um longo momento, olhando para ela. Viu a garota sob o peso do título, a vulnerabilidade mascarada pela coragem, a dúvida que alimentava a desconfiança. Sentiu o puxão estranho e forte no peito, a atração que lutava contra a sombra do seu juramento. O frio da Adaga do Esquecimento, escondida sob sua roupa, parecia queimar contra sua pele.
— Eu confio… — ele começou, a voz um pouco rouca, como se as palavras lutassem para sair, “… no instinto deste navio. E ele te escolheu. Isso… é um começo. — Não era a verdade completa. Era um fio de esperança, uma ponte frágil sobre o abismo que ele mesmo cavara.
Nix segurou seu olhar. Nos olhos obsidiana, por uma fração de segundo, ela pensou ver algo além da impenetrabilidade – um conflito, um lampejo da mesma atração que a confundia. Mas foi rápido demais. Ela acenou com a cabeça, uma vez, curta. — Bom. — Voltou a olhar para as estrelas, o coração batendo mais rápido. — Amanhã, quero aprender sobre essas correntes subterrâneas. As que os mapas oficiais escondem.
Madoc sorriu, um sorriso verdadeiro desta vez, pequeno e contido, mas que iluminou brevemente seus olhos, transformando-os em obsidiana polida sob a luz das estrelas. — Como quiser, Capitã.
Ele ficou ao lado dela em silêncio, observando as mesmas constelações infinitas, sentindo o calor do convés sob os pés e o turbilhão muito mais confuso dentro de seu próprio peito. O mar era vasto, o caminho incerto. E o coração de um tubarão, ele estava descobrindo, podia ser um oceano mais traiçoeiro e desconhecido do que qualquer um que já navegara. Enquanto isso, das sombras profundas perto do mastro, os olhos azul-celeste de Hugo permaneciam fixos neles, brilhando com uma suspeita incansável e um ódio que começava a ser temperado por uma perigosa curiosidade. A viagem para Hearts continuava, e as correntes emocionais sob o convés do Semente do Caos eram agora mais poderosas e complexas do que qualquer corrente oceânica.
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