O plano de Echo ressoou na cabine do capitão do Semente do Caos como um gongo de perigo iminente. A iluminação turva das lâmpadas de óleo de baleia esculpia sombras profundas nos rostos tensos que o cercavam: Nix, de braços cruzados e olhos turquesa fixos no mapa desenrolado; Madoc, uma estátua de obsidiana ao leme, sua presença um campo gravitacional de silêncio; Panacéia, fumando pensativamente seu cachimbo de prata, a fumaça azul-turquesa formando serpentes inquietas; Vênus, uma mão instintivamente no punho da faca, seus olhos vermelhos varrendo o pergaminho como se esperasse ver emboscadas desenhadas nas linhas de contorno; e Hugo, encolhido num canto, as asas quebradas imobilizadas, observando tudo com olhos azuis febris.

    —O Berçário das Chamas,— Echo começou, sua voz, normalmente calorosa, carregada de uma solenidade que silenciava até o rangido habitual do navio vivo. Seu dedo, marcado por antigas queimaduras de forja, traçou uma rota sinuosa através de um emaranhado de linhas que representavam os túneis vulcânicos submersos e emergentes ao redor de Hearts. —É acessível apenas por uma rede ancestral, conhecida apenas pelos mais velhos dos Jïa. Túneis esculpidos pelo primeiro sopro do Deus Sol e mantidos em segredo por gerações.— Ele apontou para um ponto minúsculo, uma ilha insignificante cercada por símbolos de redemoinhos e jatos de vapor. —Aqui. A entrada fica oculta numa fenda ativa, mascarada pelos gêiseres e pelas correntes traiçoeiras. O Templo da Lua pode cercar a Tumba do Sol, mas não conhece estes caminhos. É nossa única esperança de levar os jovens aprendizes para a Cerimônia de Vinculação em segurança.—

    Nix inclinou-se sobre o mapa, seus óculos de lentes grossas ampliando os olhos intensos. O cheiro dele – especiarias quentes, pele sob o sol e um leve aroma metálico de sua armadura leve – invadia seu espaço. —Gêiseres furiosos e correntes traiçoeiras,— ela repetiu, a voz um sussurro áspero. —Não soa como um passeio pelo parque, Echo. O Semente é ágil, mas não é insensível. Um golpe direto…— Ela não precisou terminar. A imagem do casco vivo sendo rasgado por rocha superaquecida ou arrastado para o fundo por um redemoinho era vívida demais.

    —É perigoso,— Echo admitiu, seu olhar verde-jade encontrando o dela. Havia uma faísca de desafio ali, mas também uma imploração silenciosa. —Mas menos perigoso que tentar romper o cerco terrestre ou marítimo do Templo. O Berçário é a fortaleza natural. As próprias forças que o protegem nos esconderão. E lá dentro…— Ele fez uma pausa, olhando para além das paredes de madeira úmida, como se visse a cratera sagrada. —Lá dentro, o calor da terra viva, o pulsar dos ovos de Jia… é um lugar de poder puro. Os anciãos poderão realizar o ritual sem interferência. Elena e os outros merecem esse momento, Nix. Antes que…— Ele engoliu em seco, a sombra do cerco à Tumba do Sol pairando pesada.

    Madoc, até então uma silhueta silenciosa, falou. Sua voz era como pedras sendo arrastadas no fundo do mar, rouca e sem inflexão, mas carregando o peso de incontáveis tempestades navegadas. —Coordenadas.— Não era uma pergunta. Era uma exigência.

    Echo forneceu os números, uma série complexa baseada em alinhamentos estelares e marcos geotérmicos conhecidos apenas pelos Jïa. Madoc absorveu as informações, seus olhos negros como poços sem fundo fixos num ponto distante, calculando trajetórias, forças das correntes, pontos de ebulição. Seu rosto, uma máscara de concentração absoluta, não revelava se a tarefa era possível ou um suicídio coletivo.

    —E os anciãos?— Panacéia perguntou, baixando o cachimbo. Sua voz era suave, mas sua postura, ereta. —Eles aguentarão a jornada pelos túneis? E a travessia final?—

    —Os que vêm conosco são os mais robustos, os Guardiões do Berçário,— Echo explicou. —Conhecem cada pedra, cada fenda de vapor. Eles guiarão pelo caminho terrestre até a enseada secreta onde nos encontraremos. Nós os levaremos pelo mar, através da fenda ativa, até a praia negra dentro da cratera. O caminho é curto, mas intenso.— Ele olhou para Panacéia. —Sua presença, Dragoa, seria inestimável junto aos anciãos durante a travessia terrestre. Seu conhecimento das energias vitais… poderia detectar instabilidades que até mesmo os Guardiões poderiam não perceber.—

    Panacéia trocou um olhar rápido com Nix. Havia preocupação ali, mas também um reconhecimento do papel vital que poderia desempenhar. —Se a Capitã permitir,— ela assentiu, seu olhar vermelho-rubi fixo em Nix.

    Nix estudou o mapa mais uma vez, depois ergueu os olhos, varrendo o rosto de cada membro da sua tripulação. Vênus, pronta para a luta; Madoc, impenetrável mas imensamente capaz; Panacéia, sábia e poderosa; até Hugo, um fardo perigoso, mas cujo conhecimento de Érebo poderia ser útil. E Echo… seu rosto talhado em granito macio pela preocupação, seus olhos verdes implorando por confiança. O plano era louco. Audacioso. Suicida, talvez. Mas era a única luz no cerco de escuridão que ameaçava engolir os Jïa. E seu pai ainda estava lá, na Tumba do Sol, resistindo.

    —Está decidido,— Nix declarou, sua voz recuperando a firmeza de comando, apesar do nó de ansiedade em seu estômago. —Preparamos o Semente. Madoc, você tem as coordenadas. Trace o curso. Vênus, verifique todo o armamento, mesmo que não pareça útil contra rocha fervente. Panacéia, prepare seus artefatos de cura e detecção. Você acompanhará os anciãos.— Ela olhou para Hugo. O homem-corvo encolheu-se ainda mais. —Você fica sob vigilância constante. Um passo em falso, um sussurro suspeito, e Madoc cumprirá a promessa dele sobre o fundo do mar. Está claro?—

    Hugo acenou rapidamente, um brilho de medo genuíno em seus olhos azuis. —Claro, Capitã. Sem passos em falso. Só… flutuando.—

    —Bom.— Nix enrolou o mapa com um gesto decisivo. —Levem seus postos. Partimos com a maré noturna. Que o Caos nos seja favorável.—

    A viagem a bordo do Semente do Caos transformou-se numa sinfonia de tensão crescente. O navio vivo, uma extensão sensível do próprio Devaneio, parecia captar o perigo iminente com uma agonia palpável. Seus rangidos habituais tornaram-se gemidos profundos, como ossos velhos sendo torcidos sob pressão. As cordas de tendão estalavam com nervosismo, e o convés pulsava sob seus pés com um ritmo irregular e febril. Cada jato de vapor distante, cada tremor sísmico quase imperceptível que ecoava através das águas escuras, fazia o casco vibrar com um pavor ancestral. Era como se o próprio Semente tentasse avisá-los, implorar para que voltassem.

    Nix e Echo eram os epicentros de uma tempestade silenciosa. O plano exigia proximidade constante – horas intermináveis trancados na cabine do capitão, debruçados sobre mapas mais detalhados fornecidos pelos anciãos Jïa, discutindo cada curva potencial, cada fenda suspeita, cada variação na atividade geotérmica. O espaço confinado tornava-se um cadinho de emoções reprimidas.

    Nix sentia a presença dele como um campo magnético. Quando ele se inclinava sobre a mesa, seu braço roçando o dela enquanto apontava para uma passagem estreita, o calor irradiava de seu corpo, um contraste com o ar frio e úmido da cabine. Ela notava a textura de sua pele, mais áspera agora por causa das semanas de luta e fuga, as cicatrizes leves nas costas da mão que segurava a pena, a veia pulsando em seu pescoço quando ele se concentrava. O cheiro dele – uma mistura complexa de suor masculino, couro encerado, as especiarias exóticas que os Jïa usavam em seus rituais, e algo inerentemente Echo, terroso e quente – enchia seus pulmões, perturbando sua concentração. Uma noite, enquanto ele ajustava a lente de seus óculos que haviam escorregado no nariz, seus dedos tocaram levemente sua têmpora. O contato, breve como o bater de asas de um beija-flor, enviou um choque elétrico pelo corpo dela. Ela prendeu a respiração, seus olhos encontrando os dele por um instante que se esticou em eternidade. Ele retirou a mão como se tivesse tocado em brasa, um rubor subindo por seu rosto sob a barba incipiente. Nenhum deles disse nada. O ar entre eles ficou carregado, espesso com o não dito.

    Echo, por sua vez, era consumido por uma fascinação renovada que beirava a dor. A determinação feroz de Nix, tão familiar desde a infância nas cavernas libertas de Spades, agora era temperada pela liderança, pela responsabilidade esmagadora que ela carregava sobre os ombros magros. Ele via a vulnerabilidade que ela escondia do mundo – a sombra nos olhos quando mencionavam o cerco, o tremor quase imperceptível em suas mãos após uma noite sem sono, a curva solitária de seu pescoço quando ela olhava para o mar, perdida em pensamentos sombrios. Sob a luz fraca das lâmpadas de óleo, enquanto ela traçava rotas alternativas com uma concentração feroz, ele se pegava hipnotizado pela linha de sua mandíbula, pela forma como seus lábios se moviam silenciosamente enquanto calculava riscos, pela franja rebelde de cabelo azul-petróleo que insistia em cair sobre seu olho. Era uma beleza áspera, indomável, tão diferente das mulheres Jïa que conhecia. Era a tempestade personificada, e ele sempre fora atraído pelo centro do furacão.

    Uma noite, sob um céu obscurecido por uma névoa espessa de cinzas vulcânicas que Hearts exalava como um suspiro doente, o debate esquentou. Echo insistia numa passagem mais direta, prometida por um ancião como —o caminho do dragão adormecido—. Nix, confiando na intuição do Semente e nos cálculos sombrios de Madoc, defendia um desvio mais longo, evitando uma concentração de marcas de gêiseres explosivos no mapa.

    —Echo, é suicídio!— Nix argumentou, batendo o punho fechado na mesa. O pergaminho saltou. —O ‘dragão adormecido’ pode estar apenas cochilando! Um jato naquele ponto nos frita vivos antes que Madoc possa piscar!—

    —O desvio nos custa horas preciosas, Nix!— Echo retrucou, seus olhos verdes faiscando. —Horas que os anciãos e os jovens estarão expostos na costa! O Templo tem patrulhas! Se forem avistados…— Ele não precisou terminar. A imagem dos jovens aprendizes, como Elena, caídos sob a lâmina fria do Templo, pairou entre eles.

    Eles estavam frente a frente, separados apenas pela largura da mesa. O ar estava carregado de fumaça de óleo, tensão e o cheiro úmido do mar poluído. Nix sentiu o calor da raiva – e de algo mais – subindo em seu rosto. —Eu não arriscarei meu navio e minha tripulação num palpite de ‘caminho do dragão’!—

    —E eu não arriscarei o futuro do meu povo numa cautela excessiva!— Echo avançou, apoiando as mãos na mesa, inclinando-se sobre ela. Seu rosto estava a centímetros do dela.

    O silêncio que se seguiu foi explosivo. O rangido do Semente pareceu cessar. O mundo se reduziu ao espaço entre eles, ao calor emanando de seus corpos, ao brilho intenso de seus olhos travados em combate. Nix sentiu o hálito quente de Echo em seus lábios. Viu a veia pulsando em sua têmpora, a determinação em seus olhos, mas também uma faísca de algo selvagem, desafiador, que a atraía como um abismo.

    Foi então que seus dedos se encontraram. Não um toque intencional, mas um deslize acidental enquanto ambos tentavam apontar para o mesmo ponto crítico no mapa ao mesmo tempo. A pele dele, áspera e quente, contra a dela, mais suave, mas marcada por cicatrizes de batalhas passadas. A corrente que percorreu Nix não foi de fogo; foi de gelo líquido e eletricidade pura, paralisante e incendiária. Ela estremeceu, uma reação visceral que a pegou de surpresa. Echo congelou, seus olhos arregalando-se ligeiramente, fixos no ponto onde suas mãos se tocavam. O desafio na atmosfera mudou instantaneamente, transformando-se numa tensão espessa, carnal, quase sufocante. O ar parecia vibrar com o silêncio não dito, com o desejo súbito e avassalador que brotou entre a raiva e a preocupação.

    Nino, empoleirado num suporte acima da mesa, assobiou baixinho, um som curioso e agudo que quebrou o feitiço. Echo puxou a mão como se tivesse sido queimado, um rubor intenso subindo de seu pescoço para as orelhas. Nix recuou um passo, sentindo seu próprio rosto em chamas, o coração batendo como um tambor de guerra contra suas costelas. Ela ajustou os óculos com uma mão trêmula, evitando seu olhar.

    —O… o desvio,— Echo engasgou, a voz rouca, desviando os olhos para o mapa como se fosse a coisa mais fascinante do mundo. —Talvez… talvez tenha razão. O risco… é alto demais.

    Nix apenas assentiu, incapaz de falar. A corrente de fogo onde suas mãos se tocaram ainda pulsava em sua pele, um lembrete ardente da linha tênue que separava a aliança da paixão, a sobrevivência da rendição. Eles passaram a noite traçando o desvio mais longo, evitando o olhar um do outro, cada toque acidental no pergaminho enviando novos choques silenciosos pelo ar denso da cabine. A intimidade forjada pela urgência transformara-se em algo perigoso, delicioso e profundamente perturbador.

    Enquanto isso, do convés escuro, sob o céu enevoado de cinzas, Madoc observava. Sua expressão era uma máscara esculpida em obsidiana – impenetrável, fria, eterna. Mas por trás daquela fachada, uma tempestade silenciosa rugia. Seus olhos negros, tão escuros que pareciam absorver a fraca luz das estrelas ocultas, seguiam Nix com uma intensidade que beirava a dor física. Ele a via entrar e sair da cabine, seu rosto iluminado por lampejos de determinação, preocupação e, mais recentemente, uma inquietação que não existia antes. Ele via os olhares que ela trocava com Echo – rápidos, intensos, carregados de uma história complexa e de uma atração que agora fervilhava perigosamente perto da superfície. Ele via os sorrisos privados, raros e cansados, mas genuínos, que ela dirigia ao líder Jïa, sorrisos que nunca se voltavam para ele. Via o espaço entre eles diminuir, não apenas fisicamente na cabine apertada, mas emocionalmente, criando um vínculo que excluía todos os outros.

    O peso do mandato de Lafaiete era uma âncora de gelo afundando em seu peito. Matar Nix. Apagar a Filha do Caos. Era o preço de sua redenção, sua passagem de volta à única “ordem” que ele conhecera, mesmo que fosse uma ordem perversa. Era a fuga do exílio eterno, do desprezo do Devaneio, do fantasma constante de sua desobediência passada. A Adaga do Esquecimento, escondida num compartimento secreto sob sua cama modesta, pulsava com um frio sibilante, um lembrete constante do pacto. Era uma solução limpa, final. O único caminho para frente que lhe restava.

    Mas cada dia a bordo do Semente do Caos era um martírio. Cada ato de coragem desesperada de Nix – enfrentando tempestades, desafiando generais, protegendo sua tripulação com a ferocidade de uma leoa – cavava mais fundo o abismo em seu coração congelado. Ele a admirava. Não apenas sua habilidade, mas sua resiliência indomável, sua lealdade feroz, sua recusa em se curvar mesmo quando o mundo conspirava para esmagá-la. E havia outra coisa, uma emoção mais primitiva e perturbadora que ele lutava para nomear: desejo. Um desejo bruto e inesperado pela sua força, pela sua vulnerabilidade oculta, pelo fogo que ardia dentro dela e que ele, filho da sombra e da ordem imposta, nunca poderia possuir. A ideia de apagar sua existência, de reduzir toda aquela vitalidade incandescente a um vazio absoluto, tornava-se cada vez mais monstruosa, mais intolerável. Era como prometer destruir o próprio sol. Especialmente quando via o olhar dela pousar em Echo – um olhar carregado de uma ternura, uma confiança, uma possibilidade de amor que nunca, nem por um instante, se voltara para a escuridão que ele personificava. Ver a luz nela destinada a outro era o corte mais profundo de todos. A adaga que ele carregava para ela começava a sentir-se cada vez mais pesada, destinada a cravar-se em seu próprio coração.

    Hugo, o homem-corvo com as asas quebradas, era um espectador atento, uma sombra que se movia nas franjas da vida do navio. Sua obsessão inicial por Madoc – o Exilado, a lenda que desafiara Lafaiete – arrefecera, substituída por um fascínio crescente por Vênus. A guerreira de olhos vermelhos era um enigma fascinante, um contraste gritante com tudo o que ele conhecera em Érebo.

    Ele a observava durante os turnos de vigia, sua postura imóvel como uma estátua de âmbar, seus olhos vermelhos varrendo o horizonte com uma intensidade predatória. Via-a treinar com suas facas, os movimentos um fluido mortal de graça e precisão, uma dança onde a morte era a parceira. Via sua lealdade inabalável para com Nix, uma devoção que ia além do dever, tocando o terreno do sagrado. Via a forma como, às vezes, quando pensava que ninguém a observava, uma fadiga profunda, uma sombra de dor antiga, cruzava seu rosto anguloso antes de ser rapidamente apagada pela máscara da vigilância.

    Ele começou a provocá-la, não com a crueldade vazia de antes, mas com uma curiosidade afiada, tentando arrancar uma reação além do desprezo gelado ou da hostilidade aberta.

    —Vigia fantasmas ou espera por piratas, Vênus?— ele perguntou uma noite, arrastando-se até o parapeito onde ela estava encostada, observando as estrelas ocultas pela névoa de cinzas. —Ou só gosta do cheiro de enxofre?—

    Ela nem se virou. —Gosto do silêncio. Algo que sua presença invariavelmente quebra, Corvo.

    —Ah, mas um corvo no silêncio é um presságio, não?— ele retrucou, um sorriso torto brincando em seus lábios. —Talvez eu esteja aqui para avisar sobre perigo.— Ele olhou intencionalmente para as sombras do convés.

    —O único perigo aqui é você,— ela respondeu, sua voz plana como uma lâmina. —E eu lido com perigos.

    Outra vez, ele a encontrou ajudando Panacéia a preparar uma infusão calmante para os jovens Jïa, que estavam particularmente agitados com a aproximação da travessia perigosa. Vênus manipulava os frágeis frascos de vidro com uma surpreendente delicadeza, seus dedos normalmente tão letais movendo-se com cuidado.

    —Dragoa e Destruidora,— Hugo comentou, encostado na porta. —Uma combinação improvável. Nunca imaginei ver mãos que empunham facas de matar acariciando ervas como bebês.

    Vênus ergueu os olhos, um brilho perigoso neles. —Tudo pode ser uma arma, Corvo. Até o cuidado.— Ela colocou uma folha seca no almofariz com um gesto deliberado. —O que você sabe sobre cuidar de algo que não seja sua própria pele?

    Hugo sentiu a cutucada, mas surpreendeu-se ao não sentir raiva. Em vez disso, viu uma abertura. —Em Érebo, cuidado é fraqueza. É um convite para ser esfaqueado pelas costas.— Ele olhou para as mãos dela, tão competentes em ambas as tarefas. —Mas aqui… é diferente.

    Vênus pestanejou, surpresa pela falta de sarcasmo em sua voz. Ela estudou-o por um momento, realmente olhou para ele, talvez pela primeira vez. Viu a inteligência aguçada por trás da bravata, a observação constante, a mente calculista que não desligava. E viu, mais profundamente, a vulnerabilidade sob a crosta de ódio e medo. Era como olhar para um espelho distorcido, refletindo uma versão perdida de si mesma antes de encontrar Nix e um propósito. Viu a forma como ele observava Panacéia interagir com os jovens Jïa – uma cena de rara ternura, a dragoa sábia contando histórias, suas mãos gestualizando suavemente, um sorriso raro iluminando seu rosto severo. Hugo observava com uma expressão estranha, uma mistura de fascínio e de uma tristeza profunda, quase de luto, como se visse algo que sabia estar para sempre fora de seu alcance.

    —Garras afiadas servem pra caçar, Corvo,— Vênus disse, sua voz mais suave do que pretendia, voltando a triturar as ervas. O som do pilão ecoou na cabine silenciosa. —Não pra destruir o próprio ninho. Ou o ninho dos outros.

    As palavras caíram como pedras num lago escuro. Hugo ficou em silêncio, não com raiva, mas com um choque contemplativo. Ele olhou para as próprias mãos – as mãos que haviam seguido ordens cegas, que haviam infligido dor, que haviam sido instrumentos de caos e morte sob a bandeira de Lafaiete. Ele as virou, examinando as palmas como se as visse pela primeira vez, como se buscasse nelas a resposta para uma pergunta que nunca soubera fazer. O que ele poderia construir? O que poderia proteger? Ou estava condenado a apenas rasgar e destruir?

    Ele não respondeu. Apenas ficou parado, o peso da observação de Vênus e da imagem de Panacéia como uma figura quase maternal esmagando-o. Um laço frágil, tecido não de confiança, mas de uma compreensão silenciosa e mutuamente reconhecida da escuridão que cada um carregava e das diferentes formas como a enfrentavam, começava a se formar naquele espaço confinado, flutuando sobre as águas perigosas que levavam ao Berçário das Chamas. Enquanto o Semente do Caos avançava, cada rangido parecia ecoar as tensões não resolvidas a bordo – o desejo perigoso, o amor condenado, a lealdade em conflito e o frágil germinar de algo novo e indefinível na escuridão.

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