capítulo 17
A penumbra eterna de Hearts envolvia o porto cavernoso numa névoa úmida e verde-azulada. A luz que se filtrava pelas fendas altas do teto basáltico era uma coisa pálida e doente, tingida pela fosforescência fantasmagórica dos líquens que cobriam as paredes como uma segunda pele. O ar mantinha aquele peso úmido e frio característico, impregnado do cheiro profundo de pedra molhada, sal marinho envelhecido e peixe seco pendurado em cordas. Mas hoje, sobrepondo-se a essa base mineral, flutuava uma sinfonia de aromas tentadores: o picante acre de especiarias exóticas empilhadas em sacos de juta; o convite caloroso de pão fresco assado em fornos de pedra escavados nas laterais da caverna; o dulçor quase indecente de frutas tropicais desconhecidas, suas cascas brilhantes e cores vibrantes gritando contra o cinza dominante. O Mercado de Hearts não era um lugar, era um organismo. Pulsava no ventre de uma galeria natural colossal, um intestino de rocha viva onde centenas, talvez milhares, de barracas de lona resistente, couro curtido no fumo e até osso de kraken trabalhado se aglomeravam como cogumelos após uma chuva invisível. O som era um rugido constante – vozes em dezenas de dialetos, o rangido de carrinhos de mão sobre pedra irregular, o tilintar de moedas e o estalo de tecido ao vento. Era caos organizado, vitalidade feroz e, sob a superfície, o perigo constante de uma faca nas costas ou de um bolso mais leve.
Nix liderava o pequeno grupo com a postura descontraída mas alerta de quem conhece o valor da dissimulação em terras estranhas. Seus passos eram firmes no chão irregular, evitando poças de água salobra e detritos com a graça instintiva de um felino. Echo caminhava a seu lado direito, uma presença sólida e reconfortante. Nino, o pequeno Jia, estava empoleirado em seu ombro como um gato esculpido em jade e safira, os olhos dourados e inteligentes varrendo o tumulto com curiosidade avassaladora. A proximidade entre Nix e Echo era palpável, uma corrente elétrica no ar úmido. Seus braços roçavam com frequência deliberada ao desviarem de um carregador apressado que empurrava um carrinho transbordante de barris de arenque salgado; as costas das mãos quase se tocavam quando Echo apontou para uma barraca pendurada como um ninho de aranha numa fenda mais alta, especializada em cordas de tendão de serpente marinha. O calor radiante do corpo dele era um antídoto bem-vindo ao frio persistente que emanava das paredes de pedra.
— Precisamos de velas novas — declarou Nix, sua voz projetando-se com clareza sobre o burburinho. Seus olhos turquesa, ampliados pelos óculos, percorriam as barracas de lona que exibiam tecidos de todas as densidades e cores. — As nossas estão mais remendo que tecido depois da última tempestade. E provisões. Água potável, comida que dure, e os suprimentos médicos que Panacéia pediu.
Ela sentiu o peso do olhar de Echo sobre seu perfil. Não era apenas atenção profissional; era um escrutínio mais profundo, um interesse que fazia seu estômago dar um leve salto.
— Essa ali — disse ele, seu dedo indicador tocando levemente seu antebraço. O contato, breve mas intencional, enviou um calafrio pela espinha de Nix. — Old Man Garret. Tem os melhores tecidos à prova d’água de Hearts. Tratados com seiva de árvore-caverna. E é confiável. — Seus dedos permaneceram um instante a mais do que o necessário, um ponto de calor na sua pele fria.
Enquanto Nix e Echo mergulhavam nas negociações com o velho comerciante de olhos astutos como pedras polidas, o resto do grupo se dispersava. Madoc, com uma lista de ferramentas e peças de reposição, desapareceu na multidão como uma sombra. Panacéia flutuou em direção a uma barraca que exalava o cheiro acre e reconfortante de ervas medicinais secas. Vênus, porém, permanecera no Semente do Caos, sua missão clara: vigiar Hugo.
No convés do navio vivo, que rangia suavemente contra o cais de pedra úmida, o ambiente era de vigilância contida. Hugo estava algemado a um suporte próximo ao mastro principal, as asas quebradas imobilizadas sob uma capa surrada que Panacéia providenciara. Seu rosto estava pálido, marcado pela dor e pela fadiga, mas seus olhos azuis-celeste permaneciam alertas, escrutinando o movimento no cais e o mercado distante. Vênus mantinha uma distância profissional, encostada no parapeito, mas sua mão repousava com familiaridade no punho da faca enfiada no cinto. Sua postura, embora vigilante, era menos rígida que nos primeiros dias.
— Parece que até piratas têm que fazer compras — comentou Hugo, seu tom ainda carregando um fio de desafio, mas sem a ferocidade cortante de antes. Ele mancava levemente ao ajustar a posição, a perna ferida na luta anterior ainda o incomodava.
Vênus não desviou os olhos vermelhos da multidão que se movia como um rio turbulento ao longo do cais.
— Não somos piratas — respondeu, automaticamente. — Somos sobreviventes. Como você, aparentemente. — Havia um toque de curiosidade genuína em sua voz, uma nuance que não existira antes.
Hugo soltou um riso curto e amargo, um som rouco que se perdeu no ar úmido.
— Sobrevivente? Talvez. Ou só um idiota que caiu no convés errado. — Ele olhou para ela, um fio de sinceridade crua naquele olhar azul. — Acho que ainda não agradeci devidamente por… por ter cuidado de mim esse tempo todo. Obrigado, dragoa.
Vênus arqueou uma sobrancelha perfeita, genuinamente surpresa pelo uso do nome que ela mesma dera e pela gratidão inesperada.
— Eu faria isso por qualquer pessoa ferida a bordo — disse ela, seu tom ainda prático, mas um pouco menos afiado. — E… eu gosto de conversar com você. — A admissão saiu antes que pudesse pensar, quase um elogio disfarçado.
Um silêncio pesado, mas diferente, desceu entre eles. Não era a desconfiança hostil de antes, nem a trégua tensa. Era algo novo: um reconhecimento mútuo de humanidade sob as cicatrizes e os votos sombrios. O ar úmido pareceu carregar menos peso.
Em outra ala do mercado, onde as barracas vendiam ferramentas de navegação e peças de metal resistente à corrosão, Madoc terminava sua compra. Sacolas pesadas penduradas em seus ombros largos, ele se virou – e congelou. Seu olhar obsidiana, sempre impenetrável, fixou-se num vão entre duas barracas de tecido. Lá, sob a luz esverdeada de um líquen maior, estavam Nix e Echo. Echo sussurrava algo no ouvido de Nix, seus lábios quase tocando a curva de sua orelha. Nix baixou a cabeça, mas não a tempo de esconder o rubor claro que subiu às suas maçãs ou o sorriso tímido, fugaz, que iluminou seus lábios antes de ser engolido por uma expressão mais contida. Uma dor aguda, familiar e venenosa, apertou o peito de Madoc com tanta força que ele perdeu o fôlego. Lafaiete. O perdão. A cabeça de Nix. As palavras giraram em sua mente como lâminas. Ele se virou bruscamente, quase colidindo com dois transeuntes carregando rolos de tecido grosso e escuro – exatamente o material para as novas velas. Sem um pedido de desculpas, ele empurrou-os para o lado com um ombro e correu em direção ao navio, sua respiração pesada e descompassada ecoando em seus próprios ouvidos acima do barulho do mercado. Milhares de pensamentos colidiam: Ele tem que matá-la. Então por que se sente assim? Nos últimos dois anos, enquanto ela construía o navio, teve poucas chances… por que agora? Ele se recusava a admitir a palavra que Hugo soltara. Não era amor. Era desejo. Puro, simples, mortal. Um obstáculo a ser eliminado, como qualquer outro.
Ao alcançar o convés do Semente, Madoc parou, tentando domar a respiração. Seu olhar caiu sobre Hugo, ainda algemado, e Vênus, que agora dormia profundamente, sua cabeça repousando inesperadamente no colo do jovem assassino. Hugo olhava para ela com uma expressão estranha – não de ameaça, mas de uma perplexidade quase terna.
— Precisa de ajuda com isso, navegador? — Hugo perguntou em voz baixa, seu tom desafiador, mas sem a agressividade de antes. Ele indicou as sacolas pesadas que Madoc carregava.
Madoc olhou para os jovens – o assassino ferido e a dragoa que o vigiava, agora adormecida em sua vulnerabilidade. Um gesto de confiança involuntário? Seus olhos negros se perderam por um instante, imaginando algo impossível, e a irritação brotou, sem motivo aparente.
— Consegue manter a boca fechada, passarinho? — A pergunta foi seca, cortante como a lâmina que ele carregava.
Hugo sustentou o olhar, sem medo.
— Consigo. — Houve um desafio ali, mas também uma pergunta não dita, um convite ao desabafo que Madoc nunca aceitaria.
Madoc se aproximou. Seu movimento foi brusco, eficiente. Ele pegou Vênus com cuidado surpreendente, apoiando sua cabeça contra seu ombro. O gesto não foi hostil, apenas resoluto. Uma trégua momentânea, selada pela necessidade de colocar Vênus em segurança. Ele a levou para baixo do convés, para o pequeno cubículo que ela dividia com Panacéia. Ao voltar, encontrou Hugo ainda observando-o, um ar de entendimento incômodo no olhar azul.
— Venha comigo, garoto — Madoc ordenou, sua voz mais baixa, rouca. Ele não esperou, virando-se e indo em direção à proa, longe dos ouvidos curiosos.
Hugo mancou atrás dele, as algemas restringindo seus movimentos. Na proa, o ar era mais frio, o barulho do mercado um murmúrio distante. Madoc encarou a escuridão da caverna-porto, seus ombros tensos.
— Você olha para ela como se fosse a última âncora num mar de tempestade — Hugo disse, sem rodeios, quebrando o silêncio. — E odeia o Jia por tocá-la. É óbvio.
Madoc se virou, seus olhos negros faiscando de raiva e negação.
— É ridículo. Ela é uma tarefa. Uma missão. Nada mais. — Sua voz era um rosnado baixo, mas faltava convicção.
Hugo deu um sorriso torto, dolorido.
— Tarefas não fazem um homem correr pelo mercado como se tivesse demônios no encalço. Nem fazem os olhos dele brilharem quando ela domina o leme numa tempestade. Você está enredado, tubarão. Mais do que eu nas cordas da dragoa.
Madoc cerrou os punhos, os nós dos dedos brancos. A verdade do que Hugo dizia era como uma adaga torcida na ferida que ele não admitia ter.
— Silêncio — ele ordenou, a voz carregada de uma ameaça que não se dirigia apenas a Hugo, mas à própria confusão dentro dele. — Suas asas quebradas não te deram sabedoria, só te fizeram tagarela. Lembre-se do seu lugar.
Hugo encolheu os ombros, mas não recuou. O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado das coisas não ditas que ambos entendiam demais.
Mais tarde, reunidos na cabine de comando do Semente do Caos, o ar estava carregado de expectativa e da tensão do não dito. A cabine, iluminada pelas lâmpadas de óleo de baleia que projetavam sombras dançantes, estava cheia: Nix, de pé ao lado da mesa central; Echo, com Nino agora adormecido num canto acolchoado; Madoc, imponente e silencioso como uma estátua negra perto do mapa; Panacéia, examinando seus frascos de ervas recém-adquiridas; Vênus, ainda um pouco sonolenta mas alerta; e Hugo, algemado a um suporte robusto perto da porta, mas ouvindo atentamente, seu rosto pálido mas focado.
— O Berçário das Chamas fica aqui — Echo explicou, seu dedo descansando sobre uma mancha minúscula num mapa desgastado e manchado de umidade. A Ilha Fúria, um ponto insignificante perdido num arquipélago marcado por símbolos de vulcões ativos. — Cercada por campos de gêiseres mortais e correntes traiçoeiras que mudam com o humor das marés. A única entrada segura é por um canal estreito aqui — ele traçou uma linha fina com a unha — navegável apenas na maré baixa específica e com ventos do nordeste. Um desvio de um grau, um minuto fora do tempo… — Ele não precisou terminar. Seu olhar encontrou o de Madoc, carregado de um respeito que beirava a súplica. — Precisamos de sua perícia, navegador. Como nunca antes.
Madoc estudou o mapa como um general estudaria um campo de batalha. Seus dedos longos e marcados traçaram rotas invisíveis, calcularam distâncias, avaliaram os símbolos de perigo.
— O caminho é mais estreito que a espada de um anjo da morte — ele declarou, sua voz grave ecoando na cabine silenciosa. — Um erro de cálculo, um sopro de vento errado, e o casco será rasgado pela rocha afiada ou cozido pelo vapor escaldante. — Ele ergueu os olhos obsidianos, fixando-se em Nix. — As velas novas são essenciais. Precisamos de resposta imediata, precisão absoluta. E vento favorável. Sem ele, seremos jogados contra os gêiseres como uma folha seca. A maré baixa é em três dias. É nossa única janela.
Nix assentiu, sua determinação como uma armadura visível.
— Panacéia, você tem tudo para os curativos dos jovens Jïa? E para Hugo? — A fada acenou, sacolas cheias de folhas secas, raízes e frascos de unguentos penduradas em seus ombros frágeis. — Vênus, verifique as armas, todas. Certifique-se de que estão secas e prontas. Madoc, faça os reparos finais nas velas e verifique todos os cabos. Hugo… — Ela olhou diretamente para o prisioneiro. Seus olhos turquesa não mostravam piedade, mas um pragmatismo claro. — … ajude onde puder. Sem asas, você é apenas mais um par de braços. Faça-se útil.
Hugo acenou com a cabeça, um brilho rápido – gratidão? desafio aceito? – cruzando seus olhos azuis antes de ser suplantado pela dor contida. Vênus observou-o, uma emoção complexa – talvez esperança, talvez cautela – cruzando seu rosto.
O dia terminou com o Semente do Caos carregado até as amuradas, reparado e tenso como uma corda de arco. As novas velas, um tecido negro e espesso como asa de morcego, brilhavam fracamente sob a fosforescência dos líquenes do porto. O ar dentro do navio vivo parecia carregado de estática, uma expectativa palpável misturada ao cheiro de madeira úmida, corda nova e especiarias. Enquanto a tripulação se dispersava para os últimos preparativos ou um descanso merecido, Nix ficou na proa, encostada no parapeito de osso de kraken polido pelo mar. Echo apareceu ao seu lado, silencioso como um espírito da floresta. A noite artificial de Hearts caía, as luzes verdes tornando-se mais intensas, tingindo tudo de um tom sobrenatural.
— Três dias — Echo murmurou, seu ombro sólido pressionando o dela. Nino dormia profundamente, enrolado como um pequeno dragão de jade em seu pescoço. — Lucas não brinca. Nem os gêiseres.
— Três dias são suficientes — Nix respondeu, sua voz um sussurro que se perdeu quase no ar úmido. Ela virou a cabeça para ele, os óculos refletindo as luzes verdes, ampliando seus olhos turquesa. — Se conseguirmos chegar ao Berçário, destruir o cálice antes que eles o usem…
— Quando conseguirmos — Echo corrigiu, seu olhar intenso, verde como a floresta profunda sob a lua cheia, prendendo o dela. Sua mão encontrou a dela onde ela repousava no osso frio do parapeito. Seus dedos se entrelaçaram, naturalmente, inevitavelmente, como se as linhas de suas mãos sempre tivessem se destinado a se encaixar. O calor do contato foi imediato, avassalador, um contraste violento com o frio da caverna. — Nix… depois disso… depois de salvar meu povo do que quer que estejam planejando com o cálice… quero falar sobre nós. Sobre o que sempre esteve… aqui. — Ele apertou sua mão, seu polegar traçando círculos lentos e hipnóticos no pulso sensível dela.
Nix sentiu o coração acelerar até parecer querer fugir do peito, um calor diferente do medo ou da adrenalina da tempestade espalhando-se por seu corpo, concentrando-se em seu baixo ventre. Ela se virou completamente para ele, seus rostos muito próximos na penumbra esverdeada. O cheiro dele – canela, terra úmida de floresta e pele quente – envolveu-a, mais intoxicante que qualquer vinho. — Echo… — O nome saiu como um suspiro preso. Seus olhos baixaram involuntariamente para seus lábios, firmes e convidativos.
O momento, frágil e carregado, foi brutalmente quebrado pelo grito áspero e intencional de Madoc, vindo da escada do convés principal:
— Capitã! Última inspeção das amarras! A maré está mudando!
Nix recuou um passo, como se tivesse levado um choque. O feitiço se quebrou, mas o desejo, intenso e não consumido, permaneceu pulsando no ar úmido entre eles, mais denso que a névoa. Echo soltou sua mão lentamente, os dedos se desenlaçando com relutância palpável. Um sorriso triste, mas carregado de promessas futuras, curvou seus lábios.
— Depois — ele sussurrou, a palavra pairando como fumaça de turquesa entre eles, uma promessa e uma dívida.
Madoc, parado no topo da escada, não fingia estar ocupado. Seus olhos obsidianos, frios e impenetráveis como as profundezas abissais, haviam capturado cada instante: as mãos entrelaçadas, os corpos próximos, o desejo não disfarçado que emanava do par como calor de uma fornalha. Algo escuro, frio e resoluto solidificou-se em seu olhar, extinguindo qualquer dúvida remanescente. Lafaiete não precisaria esperar muito mais. A tempestade que ele observara, desejara e que agora ameaçava consumi-lo, estava prestes a ser levada por outra pessoa. Ele apertou o punho até os ossos doerem, a lembrança da conversa com Hugo queimando como veneno. Seu dedo polegar tocou os próprios lábios, ásperos e frios. Ele também queria sentir o gosto daquela tempestade. Hugo estava errado. Não era amor. Era desejo. Puro, simples, mortal. E o desejo, para um assassino, era apenas mais um obstáculo a ser eliminado. A adaga do Esquecimento, escondida sob seu casaco, parecia pesar mais do que nunca, um segredo mortal pronto para ser usado. A Ilha Fúria não seria apenas o palco da salvação dos Jïa. Seria o palco do fim.
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