A Ilha Fúria não era um lugar. Era uma ferida aberta no flanco do mundo, um pesadelo geológico pulsante. O ar tremia constantemente, saturado por um calor que não vinha do sol, mas da própria terra rachada sob os pés. Cada respiração era uma agressão, carregada do cheiro sulfúrico pungente de ovos podres, tão denso que parecia tingir a língua e grudar na garganta. Um vapor úmido e abrasador emanava de fendas na rocha negra, queimando a pele exposta como um ferro brando. Ao longe, no interior da ilha, gêiseres monumentais explodiam sem aviso, rugindo como titãs enfurecidos. Jatos de água escaldante e vapor eram lançados a dezenas de metros no ar, para depois caírem em chuva ácida que sibilava ao atingir o solo fumegante. O estrondo dessas erupções ecoava entre os penhascos negros, um trovão contínuo e aprisionado que martelava os tímpanos.

    O Semente do Caos, navio robusto que enfrentara mares revoltos e tempestades mágicas, parecia um brinquedo frágil diante daquele cenário infernal. Encontrara refúgio precário na única enseada relativamente calma, uma fenda estreita e profunda esculpida entre muralhas imponentes de rocha vulcânica negra e brilhante. Mesmo ali, longe do tumulto aberto, a água borbulhava com calor insuportável, exalando vapor que embaçava o convés e fazia a madeira do casco estalar sob o estresse térmico. O ar era opressivo, pesado, difícil de respirar.

    Os anciãos Jïa desembarcaram com solenidade quebradiça. Seus passos eram lentos e medidos sobre a plataforma instável estendida até a rocha escorregadia. Vestiam túnicas cerimoniais outrora ricamente bordadas, agora desbotadas e remendadas, testemunhas mudas de um exílio longo e penoso. Seus rostos eram mapas de sofrimento profundamente gravados, mas também de uma determinação inquebrantável, a última centelha de um povo à beira da extinção. Panacéia desceu com eles, sua asa translúcida de libélula tremulando no ar quente e turbulento, um delicado contraste com a brutalidade do ambiente. Seus olhos multifacetados, normalmente cheios de uma luz curiosa, estavam escurecidos por uma preocupação profunda.

    — Não gosto disso — sussurrou ela para Nix, sua voz quase perdida no rugido distante de um gêiser. Seus dedos minúsculos se apertaram na borda do casaco de Nix. — O Berçário… fica no coração desta loucura. Além de campos de fumarolas ativas, onde o chão pode ceder sob os pés a qualquer instante. O ar lá dentro é venenoso, capaz de derrubar um touro em minutos. E eles… — Ela lançou um olhar carregado de apreensão para os anciãos, que se apoiavam pesadamente em cajados de madeira nodosa, suas respirações ofegantes visíveis no ar quente. — Eles são sábios, sim, mas seus corpos são frágeis como vidro soprado. A magia do ritual para destruir o cálice é poderosa, mas instável. Talvez… talvez eu possa ajudar. Usar minha própria magia para tentar estabilizar o fluxo, proteger contra interferências que o Templo possa tentar lançar à distância. Cada vantagem conta.

    Nix fitou a fada, seus olhos turquesa refletindo o céu ensanguentado e as colunas de vapor. A responsabilidade pesava sobre seus ombros como uma armadura invisível. Tocou levemente o ombro minúsculo de Panacéia, um gesto de confiança raro.

    — Proteja-os, Panacéia — ordenou, sua voz grave e firme, cortando o ruído ambiente. — O cálice precisa ser destruído. Custe o que custar. É a única chance deles… a única chance de todos nós.

    Panacéia endireitou os ombros minúsculos, uma centelha de determinação substituindo a sombra em seus olhos.

    — Destruiremos essa abominação — declarou, sua voz ganhando uma força surpreendente. Com um último olhar intenso para o navio, para Nix, para os rostos assustados dos jovens Jïa no convés, ela se virou. Seguiu os anciãos que já iniciavam a subida penosa por uma trilha rochosa e íngreme, que desaparecia rapidamente na névoa sulfurosa amarelada que pairava como um véu de morte sobre a ilha.

    A bordo do Semente do Caos, os jovens Jïa aglomeravam-se no convés, um grupo compacto de esperança e medo entrelaçados. Incluíam crianças de rostos sujos e olhos arregalados, adolescentes com expressões tensas e adultos jovens cujas mãos se apertavam em busca de conforto. Elena estava entre eles, sua postura um pouco mais rígida, seus olhos escuros buscando a trilha onde os anciãos haviam desaparecido, como se pudesse acompanhá-los com a força do pensamento. O sol real – não a imitação pálida e constante de Hearts – começava seu declínio no horizonte oeste. Tingia o céu de laranjas furiosas e púrpuras profundas, cores violentas que pareciam sangrar sobre os tons cinzentos, verdes e negros dominantes do submundo. Era uma beleza cruel, um espetáculo fúnebre.

    Madoc permanecia à parte, encostado no parapeito da proa, de costas para o grupo e para o convés. Observava aquele pôr do sol infernal, seu perfil severo recortado contra o céu em chamas. Nenhuma emoção transparecia em seu rosto de traços nítidos, mas os músculos de seu maxilar estavam tensos. Em seu cinto, pesando como uma sentença, repousava a Adaga do Esquecimento. A lâmina era curta, sinistra, forjada em um metal negro tão profundo que parecia sugar a luz ao seu redor. Não era apenas uma arma; era um instrumento de aniquilação final, um símbolo de seu juramento mais sombrio a Érebo. Seus dedos longos repousavam sobre seu cabo frio, um gesto quase inconsciente, mas carregado de significado.

    Nas profundezas do navio, longe do espetáculo celestial e da ansiedade do convés, reinava uma umidade quente e opressora. O porão era um mundo à parte, iluminado apenas pela luz trêmula e amarelada de uma lamparina de óleo pendurada em um gancho enferrujado. O ar era pesado, misturando o cheiro de mofo, sal, madeira úmida e o odor metálico persistente do sangue. Hugo estava algemado com grossas correntes de ferro a um canhão antigo e enferrujado, suas costas encostadas na fria superfície de metal. Sentado no chão de tábuas ásperas e irregulares, ele era a imagem da derrota. A dor física era uma presença constante, latejante nas bases de suas asas. As asas em si, outrora majestosas e cheias de penas cor de carvão, eram agora um espetáculo lastimável. As longas penas primárias estavam quebradas e desalinhadas, algumas faltando completamente. As estruturas ósseas, frágeis como vidro, haviam sofrido múltiplas fraturas no violento arremesso durante a tempestade que quase os destruíra. Estavam amarradas com ataduras improvisadas e sujas, mas a deformação era visível, uma lembrança brutal de sua vulnerabilidade. Mas a dor que o consumia por dentro, que lhe entorpecia os sentidos, era mais profunda: a dor da traição imputada, da desconfiança de quem ele mais temia perder.

    Vênus estava diante dele. Seus braços estavam cruzados com firmeza sobre o peito, tentando projetar uma fachada de controle, de ira justa. Mas sua postura rígida não conseguia esconder a tempestade em seus olhos vermelhos. A tristeza lá estava, profunda e dilacerante, misturada a uma raiva que tremia em suas mãos cerradas.

    — Por quê, Hugo? — Sua voz saiu rouca, quebrada, como se tivesse engolido estilhaços de vidro. — Depois de tudo o que passamos… depois de eu começar a… — Ela engasgou, incapaz de forçar a palavra confiar a sair de sua garganta. O silêncio que se seguiu foi mais eloquente que qualquer acusação.

    Hugo ergueu o rosto, seus olhos castanhos profundos encontrando os dela. A impotência e a frustração queimavam dentro dele, mais intensas que o calor do porão.

    — Eu não fiz, Vênus — insistiu, cada palavra carregada de uma fúria contida que fazia sua voz tremer. Ele levantou as mãos algemadas, as correntes tilintando com um som metálico e sombrio. — Juro por tudo que ainda resta de sagrado neste mundo podre! Juro pelos ossos de qualquer deus que você quiser invocar! Por que raios eu sabotaria o próprio navio que é minha única tábua de salvação? Se afundássemos aqui, neste inferno, quem você acha que seria o primeiro a ser cortado em pedacinhos pelos Jïa ou por Madoc? Eu não sou suicida!

    — Então quem? — Vênus explodiu, finalmente. Sua voz ecoou como um tiro no espaço confinado, e as lágrimas que ela vinha segurando romperam o dique, furiosas e quentes, escorrendo por seu rosto pálido. — Quem mais sabia exatamente onde estavam guardadas as velas sobressalentes? Quem teve acesso irrestrito ao depósito? Quem, Hugo? Quem se beneficiaria de nos atrasar ou de nos ver destruídos neste fim de mundo? — Ela deu um passo à frente, sua sombra se projetando sobre ele na luz trêmula. — Quem se beneficiaria de você levar a culpa?

    Hugo encarou suas próprias mãos algemadas, a pele marcada pelas correntes. A lógica implacável de Vênus era um punhal girando em sua mente. A acusação era perfeita, encaixando-se como uma luva. E então, como um relâmpago cortando a escuridão, veio a memória. O mercado de Hearts, aquela manhã. Madoc, seu olhar frio e calculista enquanto falava sobre Lafaiete, o Senhor de Érebo. O ódio puro e glacial que irradiara de Madoc ao ver Echo e Nix juntos, uma fúria que Hugo sentira como uma lâmina de gelo contra a pele. A peça final se encaixou com um estalo audível em sua mente.

    — Madoc — ele sussurrou, o horror abrindo caminho em sua expressão, seus olhos arregalando-se. — Foi Madoc.

    Vênus estacou como se tivesse levado um golpe físico.

    — Não — negou automaticamente, instintivamente, mas sua voz falhou, saindo fraca e sem convicção. — Ele… ele é leal à Nix. Ele a protegeu… sempre… — As palavras morreram em sua garganta. A imagem do rosto impassível de Madoc, de seus olhos obsidianas imperscrutáveis, surgiu em sua mente, e uma dúvida venenosa começou a roer sua certeza.

    — Leal a ninguém! — Hugo cortou, sua voz subindo em tom e intensidade, impulsionada pela urgência da revelação. — Ele é um Exilado de Érebo! Lafaiete ofereceu a ele o que mais deseja: o perdão, o retorno! O único preço exigido é a cabeça da Nix! Ele está aqui para matá-la, Vênus! E ele cortou a vela para nos atrasar, para criar caos… talvez para que o Templo nos alcançasse mais facilmente, e ele pudesse fazer o trabalho sujo no meio da confusão da batalha! Talvez para desviar as suspeitas, para que eu, o forasteiro, o traidor em potencial, levasse a culpa!

    Vênus ficou paralisada. O chão parecia ceder sob seus pés. Hugo… Madoc… A traição parecia uma hidra, crescendo novas cabeças a cada instante. Seu mundo, construído sobre alianças precárias e confiança duramente conquistada, desmoronava ao seu redor. Seu olhar, antes fixo com intensidade assassina em Hugo, perdeu o foco. Vagou, desorientado, passando por ele. Fixou-se na pequena vigia redonda e embaçada atrás de Hugo, que oferecia uma janela estreita para o mar aberto além da relativa segurança da enseada.

    Seus olhos vermelhos arregalaram-se como pratos, a cor drenando completamente de seu rosto, deixando-o cinza como a morte.

    — Não… — escapou de seus lábios, um sussurro carregado de um horror tão absoluto que fez o sangue de Hugo gelar instantaneamente. Era um tom que ele nunca ouvira nela antes, nem nos piores momentos.

    Hugo virou-se com dificuldade, as correntes restringindo seus movimentos, e forçou o pescoço para ver o que ela via.

    No horizonte, iluminadas pelo sol poente que tingia as ondas de sangue, surgiam silhuetas. Dezenas delas. Formavam uma linha negra e ameaçadora que cortava a linha do mar. Velas negras como a noite mais profunda, cada uma marcada com o crescente prateado inconfundível do Templo da Lua. E à frente dessa frota sinistra, menores, mais ágeis, cortando as ondas com velocidade assassina, os esguios navios-espião de Spades. Suas velas não eram negras, mas de um vermelho escarlate profundo, como sangue coagulado sob a luz moribunda. A armada deles. Encontrados. O pesadelo tornado realidade.

    — Spades… — Hugo engasgou, o nome saindo como um rogo.

    Vênus não hesitou. O instinto de guerreira, de protetora, suplantou instantaneamente o choque e o desespero pessoal. Ela se transformou.

    — ATAQUE! — O grito saiu de seus pulmões com toda a força de um rugido de leoa, uma onda sonora poderosa que encheu o porão abafado e reverberou nas paredes de madeira. — NAVIO À VISTA! TÊMPOLO E SPADES! — Seus olhos vermelhos brilharam com fogo de batalha. Ela se virou como um redemoinho, deixando Hugo algemado ao canhão, e disparou em direção à escada estreita que levava ao convés. Seu coração batia como um tambor de pânico, mas seus pés eram firmes. A luta pela sobrevivência começara.

    No pequeno camarote de Nix, trancado contra o mundo exterior e seus perigos iminentes, um universo diferente desmoronava. Um universo de toque, sabor e promessas não ditas. Echo a empurrara contra a porta de madeira maciça, seus corpos colados, eliminando qualquer espaço entre eles. Seus lábios encontraram os dela não com ternura, mas com uma fome acumulada por anos de silêncio, de olhares contidos, de desejos sufocados. Era um beijo desesperado, mergulhado em um mar de desejo ardente, medo do futuro incerto e uma tristeza profunda e ancestral que parecia emanar de seus ossos. Nix correspondera com igual intensidade, seus dedos enterrando-se em seus cabelos escuros e encaracolados, seu corpo arqueando naturalmente contra a força do dele. As roupas eram meros obstáculos, barreiras irritantes a serem removidas com mãos ávidas. O mundo exterior – o perigo da ilha, a missão suicida, a frota que se aproximava sem que soubessem – evaporou. Dissolveu-se em um turbilhão de pele quente sob as palmas das mãos, de respiração ofegante misturada, do sabor salgado e familiar dele em sua língua. Era o clímax de toda a tensão elétrica que sempre existira entre eles, de todo o desejo nunca expresso em palavras, mas gritado em cada olhar trocado nas sombras do navio.

    — Echo… — Nix suspirou contra seus lábios, o nome saindo como um gemido. Seus dedos deslizaram sob a túnica simples dele, encontrando as costas musculosas, a pele quente e suada. Cada músculo tenso sob seus dedos era uma confirmação de sua presença, de sua realidade.

    Ele a beijou novamente, profundamente, possessivamente, como se quisesse consumi-la, fundi-la a si mesmo. Suas mãos percorreram suas curvas com uma familiaridade ansiosa, explorando, reivindicando.

    — Eu te amo, Nixoria — ele sussurrou, sua voz rouca, rasgada pela paixão e por uma dor que ela não conseguia decifrar naquele momento de êxtase. Seu hálito quente acariciou sua pele. — Desde o primeiro momento em que vi você enfrentar o mundo com aquele sorriso desafiador. Desde sempre. Você é minha tempestade, meu caos… meu tudo. — Seus lábios abandonaram os dela, traçando um caminho de fogo ao longo de sua linha da mandíbula, descendo para o pescoço, onde seu pulso acelerado batia contra seus lábios como um coração capturado.

    Foi nesse instante, nesse santuário de calor e promessas, que o grito dilacerante de Vênus atravessou a espessura da porta e as paredes do navio, ecoando como um badalar de sino fúnebre dentro do pequeno espaço:

    — ATAQUE!

    Nix congelou. O desejo, o calor, o êxtase foram varridos instantaneamente por uma onda gelada de adrenalina pura, o instinto ancestral do comando despertando com violência. Seus músculos contraíram-se, os sentidos se aguçando para além das paredes.

    — O quê…? — começou ela, já se virando, seus instintos de capitã superando tudo mais. Seu corpo se desprendeu do de Echo, suas mãos buscando o punhal que sempre carregava no cinto, seus olhos turquesa focando na porta, na ameaça externa. Suas costas, vulneráveis, voltaram-se completamente para ele.

    Foi o que ele esperara. O que ele planejara. O momento de máxima distração, de máxima confiança.

    — Perdoe-me — Echo sussurrou, o som quase inaudível, carregado de uma dor infinita. O amor que iluminava seus olhos verdes como a floresta primaveril foi extinto num piscar, substituído por uma resolução terrível, fria e absoluta como o gelo eterno. — Pela minha família.

    O movimento foi fluido, rápido, letal. Treinado em mil emboscadas nas ruas sombrias de Spades. Não foi o punhal cerimonial que ele ostentava, mas uma lâmina menor, mais fina, mortalmente eficiente – a arma de um assassino, oculta, sempre pronta. Ele a desembainhou de um coldre sob a túnica num movimento quase imperceptível e, com toda a força de seu corpo e de seu desespero, cravou-a nas costas de Nix, bem abaixo da omoplata esquerda. A ponta fina e afiada mirou com precisão assassina o caminho para seu coração.

    Nix arquejou. Um som gutural, rouco, de puro choque e agonia dilacerante escapou de seus lábios, ainda inchados pelo beijo. Ela sentiu a lâmina fria perfurar sua pele, rasgar músculo, romper tecidos, atingir algo profundo e vital. Uma dor branca e cegante explodiu em seu peito, irradiando para todo o corpo. A força abandonou suas pernas instantaneamente. Ela caiu primeiro de joelhos, um baque surdo contra o chão de madeira, depois tombou de lado, como um boneco de pano. Seus olhos turquesa, arregalados de incredulidade, fixaram-se em Echo. Não havia raiva imediata, apenas uma dor dilacerante, uma incompreensão absoluta e, no fundo, um amor traído que brilhava como um farol em meio ao desastre. O sangue, vermelho-vivo e quente, começou a jorrar da ferida, escorrendo rápido por baixo de seu corpo, formando uma poça escura e crescente que se espalhava sobre as tábuas do chão, absorvendo a luz fraca da lamparina do camarote.

    Echo olhou para ela, seu rosto uma máscara de sofrimento indescritível, mas seus olhos verdes permaneciam duros, impenetráveis como jade polido. Uma única lágrima solitária escapou e rolou por sua face, traindo a frieza da ação.

    — Era necessário — ele disse, sua voz trêmula, mas a firmeza subjacente era inegável. Ele engoliu em seco, lutando contra o tremor que ameaçava tomar seu corpo. — O Templo… eles têm minha irmã. Minha irmãzinha, Nix. Elena… — O nome saiu como um gemido. — Eles a torturariam. Fariam coisas… coisas que nem consigo imaginar. Matariam todos os jovens Jïa diante de mim. A destruição do cálice… era uma farsa. Uma isca. Eles queriam que você o trouxesse até aqui. Para eles. Para que eu… — Ele não conseguiu terminar, fechando os olhos por um breve instante, como se buscasse forças. Quando os abriu novamente, a decisão estava cimentada. — Eu te amei, Nix. Com todo o meu ser. Mas meu sangue… minha família… vem primeiro.

    Ele puxou a adaga com um movimento rápido. O som úmido e horrível da lâmina saindo da carne fez Nix estremecer. Echo limpou a lâmina ensanguentada rapidamente na borda de sua própria túnica, sem olhar para o sangue. Seu rosto estava pálido, mas determinado. Ele se virou, seu corpo bloqueando momentaneamente a visão de Nix agonizante, e dirigiu-se à porta. Para sair. Para se entregar à frota que se aproximava. Para salvar Elena e os outros, custasse o que custasse, mesmo que sua alma estivesse condenada para sempre.

    A porta se abriu antes que sua mão tocasse a maçaneta.

    Madoc estava lá.

    Seus olhos obsidianas, frios e imperscrutáveis como sempre, varreram o pequeno camarote. Absorveram a cena em um piscar de olhos: Nix caída, ensanguentada, tremendo, a vida escorrendo dela junto com o sangue que formava uma poça escura no chão. Echo de pé, a adaga ensanguentada ainda em sua mão, seu rosto marcado pela dor e pela decisão fatal. A compreensão foi imediata, absoluta e catastrófica. Não houve necessidade de palavras, de explicações. O conhecimento do crime, da traição final, atingiu Madoc como um golpe físico no plexo solar. E então, algo dentro dele, algo profundamente enterrado, cuidadosamente controlado por anos, explodiu.

    O amor que ele nutria por Nix – proibido, impossível, nunca declarado, mas tão real quanto o sangue que agora manchava o chão – transformou-se instantaneamente. Não em dor, não em lamento, mas em uma fúria negra e assassina. Uma fúria mais profunda que o oceano mais abissal, mais fria que o vácuo do espaço, mais implacável que o tempo. Era a aniquilação personificada.

    Sem um som, sem um grito de alerta, sem a mínima hesitação, Madoc se moveu. Não foi um ataque impulsivo; foi a execução perfeita de um predador. A Adaga do Esquecimento, a arma que carregara como uma maldição, o instrumento destinado a apagar Nix da existência como seu ato final de falsa lealdade a Érebo, apareceu em sua mão como se tivesse materializado das sombras. Não foi uma estocada frenética; foi um movimento fluido, econômico, letal. Um único arco de morte, rápido como o pensamento. A lâmina negra, que parecia absorver a fraca luz do camarote, cintilou como uma estrela negra por uma fração de segundo antes de cravar-se profundamente no peito de Echo, bem acima do coração, com força suficiente para atravessar osso.

    Echo arfou. Um som rouco, surpreso, escapou de seus lábios. Seus olhos verdes arregalaram-se, não com raiva, mas com uma surpresa profunda e, estranhamente, com uma triste aceitação. Ele olhou para Madoc, depois para o cabo da adaga negra que emergia de seu peito. Não houve ódio em seu olhar, apenas uma compreensão sombria e resignada.

    — Ah… — ele sussurrou, um fio de sangue escuro escorrendo do canto de sua boca. — Você… também… a amava…

    Então, o poder único da Adaga do Esquecimento despertou. Não foi uma morte comum. Não houve jorro de sangue, contração final ou último suspiro. Começando pelo ponto exato onde a lâmina negra estava cravada, o corpo de Echo começou a se desfazer. Não em pedaços, não em líquidos, mas em finas partículas de cinza negra, semelhante à fuligem de papel queimado soprada por uma brisa suave. Era um processo silencioso e assustadoramente rápido. A própria adaga, cumprido seu propósito único, dissolveu-se junto, consumida pelas mesmas energias aniquiladoras que liberava. As cinzas não caíam; flutuavam por um instante, como levitando, antes de começarem a descer. Em menos de dez segundos, onde Echo estivera de pé, restou apenas um pequeno monte de cinzas negras e finas, espalhando-se sobre as tábuas do chão. Um leve cheiro de ozônio, metálico e limpo, pairou no ar, um contraste grotesco com o cheiro de sangue e morte que dominava o camarote. Não havia corpo. Não havia arma. Apenas cinzas e o vazio.

    Madoc não olhou para o monte de cinzas. Não olhou para o local onde Echo estivera. Seus olhos obsidianas, agora incandescentes com uma dor primitiva, estavam fixos apenas em Nix. Ele cruzou os dois passos que os separavam e caiu de joelhos ao seu lado no chão ensanguentado. Suas mãos, normalmente tão firmes e controladas, tremiam visivelmente enquanto ele as estendia.

    — Nix… — O nome saiu de sua garganta como um rasgo, rouco, irreconhecível, carregado de uma angústia tão profunda que parecia vir das entranhas da terra. Era a voz de um homem vendo seu único ponto de luz se apagar. Ele a envolveu com cuidado em seus braços, puxando seu corpo trêmulo e ensanguentado contra seu peito, ignorando completamente o sangue quente que manchava sua roupa escura e grudava em sua pele. — Segure… por favor… segure firme… — Suas palavras eram um sussurro desesperado, uma oração impossível dirigida aos deuses que ele sempre desprezara.

    Nix tentou focar os olhos nele. A dor era imensa, uma escuridão fria que puxava seus membros para baixo, mas uma centelha de consciência ainda lutava. Seus olhos turquesa, já turvos e sem foco, encontraram os obsidianas de Madoc. Um leve, trêmulo sorriso tocou seus lábios pálidos, manchados de vermelho.

    — Madoc… — ela sussurrou, sua voz um fio de som, quase inaudível. — Você… veio… — Uma violenta onda de tosse sacudiu seu corpo frágil, arrancando-lhe mais sangue que escorreu por seu queixo. Ela ergueu uma mão trêmula, com um esforço sobre-humano, e tocou seu rosto áspero, sentindo a textura da pele, a linha da mandíbula tensa. O frio mortal de seus dedos foi uma faca no coração de Madoc. — Sempre… soube… que você… não era… só… sombra… — Cada palavra era um suspiro rouco, um triunfo contra a escuridão que avançava.

    Ele apertou-a com mais força contra si, como se pudesse infundir sua própria vida nela através do contato. Enterrou o rosto em seus cabelos desgrenhados, inalando seu cheiro único – mar, vento e algo indescritivelmente *ela* – misturado ao ferro do sangue. Sentiu a leveza terrível que tomava seu corpo, o tremor diminuindo, a vida escapando como areia entre seus dedos. O mundo exterior – os gritos agudos de pânico dos jovens Jïa no convés, o rugido distante e depois o estrondo ensurdecedor dos primeiros canhões da frota de Spades abrindo fogo, o grito de comando de Vênus, o estilhaçar de madeira – desapareceu. Para Madoc, naquele momento, não existia nada além do peso de Nix em seus braços e do vazio infinito que se abria diante dele.

    — Eu te amo, Nixoria — a confissão saiu de seus lábios como uma lâmina voltada para dentro, dilacerando-o por completo. As palavras eram proibidas, um pecado contra seu juramento, contra sua natureza, mas eram a única verdade que restava. — Contra todas as ordens. Contra todo o meu treinamento. Contra todo o meu ser. Eu te amo. — Uma única lágrima, quente e pesada, algo que ele julgara impossível, escapou de seu olho obsidiana e caiu em seu rosto pálido, misturando-se ao sangue.

    Nix olhou para ele. Seus olhos turquesa, já perdendo o brilho, iluminaram-se por um último instante fugaz. Não era alegria, mas uma compreensão profunda, uma aceitação total, uma paz estranha que suplantou a dor e a traição. Um conhecimento final que transcendia palavras.

    — Minha… sombra… brava… — ela sussurrou, e o leve sorriso em seus lábios fixou-se, congelado no tempo. Então, a luz em seus olhos turquesa, aquela centelha indomável que desafiava mares e deuses, apagou-se. Sua mão, que repousava em seu rosto, caiu, inerte, pesada como pedra. Seu corpo, outrora tão cheio de energia tempestuosa, ficou pesado e plácido em seus braços.

    Nixoria. A Filha do Caos. A tempestade que acalmara mares furiosos e desafiara impérios. O furacão que trouxera esperança aos desesperançados. Estava morta.

    Madoc a segurou, imóvel, como uma estátua talhada em dor e perda. Seus braços permaneceram firmes em torno dela, seu rosto ainda enterrado em seus cabelos. O navio rangia e estremecia sob o impacto do primeiro projétil de canhão que atingira a água perto do casco, erguendo uma coluna monumental de vapor branco e espuma. Os gritos de batalha e pânico aumentavam, formando uma sinfonia de horror. Mas para Madoc, o silêncio era absoluto. A tempestade que ele amara, que ele jurara destruir e depois jurara proteger com sua própria vida, se acalmara para sempre. E o mundo, sem seu caos vibrante, sem sua luz feroz, seria apenas um lugar mais escuro, mais frio e infinitamente mais vazio. O inferno apenas começava, mas para ele, já havia consumido tudo que importava. O rugido do próximo impacto de canhão, mais perto, sacudindo o convés, foi apenas um eco distante no vasto deserto de sua perda.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota