Havia noites em Virellium que não pertenciam ao tempo.Não podiam ser medidas por relógios nem sentidas na pele como frio ou calor. Eram noites que não começavam nem terminavam — apenas surgiam, como pensamentos esquecidos à beira do sono. Era uma dessas que cobria a cidade quando Cael abriu os olhos.Estava deitado, mas não dormia. Não sonhava. Seu corpo ainda, os olhos fixos no teto, esperando algo. Leor e Senna dormiam nos quartos adjacentes, embalados por cansaços diferentes. Cael, porém, não conseguia repousar. O silêncio era mais fundo do que o habitual. Não era ausência de som, mas ausência de sentido. Como se até o ruído do mundo tivesse perdido sua razão de ser.Foi então que a música começou.No início, confundiu-se com o sopro do vento entre as telhas, ou com o chiado natural dos velhos edifícios respirando em seus ossos. Mas a repetição o traiu. Havia padrão. Havia pausa. Havia um compasso invisível que se repetia com regularidade incorreta — notas que subiam, tremiam e caíam antes de alcançar onde deveriam. Uma melodia mal completa. Uma música que parecia buscar algo.Ele se levantou. Vestiu o sobretudo, prendeu a pena negra ao lado da lapela e desceu as escadas com os passos contidos. Ninguém o ouviu sair. A porta da hospedaria pareceu abrir sozinha.Virellium estava coberta de névoa densa, como um pensamento que não se formou por inteiro. E dentro dela, a música. Não vinda de um ponto fixo, mas de toda parte. Era um som que não tocava os ouvidos, mas as lembranças. Cael caminhava por impulso, guiado não pelo caminho, mas por algo no som que falava diretamente a uma parte antiga dele mesmo — uma parte que talvez não fosse só sua.Dobrou uma rua e não a reconheceu.Outra. Mais uma.Até que percebeu que a cidade mudava ao seu redor. Os prédios, sempre antigos, agora estavam inclinados. As janelas pareciam olhos semicerrados. As placas não tinham letras, apenas sombras de frases que já estiveram ali. Havia um vazio nas calçadas. Nenhuma alma viva. Nenhum sussurro. Apenas a melodia.E então a rua acabou.Diante dele, como se surgida do nada, havia uma clareira. Um pátio circular de terra batida cercado por muros de pedra cobertos por musgos que pareciam formar símbolos antigos. No centro, uma única árvore.Não era grande, mas era vasta. Seu tronco era largo, retorcido, e seus galhos subiam como dedos ossudos apontando para deuses mortos. Não tinha folhas. Não tinha frutos. E ainda assim… parecia viva. Mais viva do que qualquer coisa que Cael já havia visto.E dela vinha a música.Cael não soube como soube disso. Não havia instrumentos. Não havia vento. Mas o som estava nela. Nas curvas do tronco. Nas rachaduras da casca. Cada veia de madeira vibrava com notas que quase se completavam. Quase.Ele se aproximou.Ao chegar perto, viu algo.Palavras.Nomes.Estavam entalhados no tronco, em espiral. Começavam na base e subiam, contornando a árvore como serpentes de linguagem. Cada nome parecia escrito com fogo e tempo. Alguns estavam quase apagados. Outros reluziam com luz interna.Cael ajoelhou-se para ver melhor.Syra Thornwald. Evlen Thornwald. Arlorn Thornwald. L. Thornwald. Caelum Thornwald. C. Thornwald.Os dedos tremeram. Ele os passou sobre o próximo nome:Cael Thornwald.Estava fresco. Gravado há pouco. Com traços familiares. Era sua própria letra. Mas ele não se lembrava de tê-lo escrito.Acima, uma frase gravada em letra curva:“Aquele que tenta lembrar.”E ao lado, uma outra inscrição, quase apagada:“Essa versão não é a primeira.”Ele recuou, lentamente.Olhou para cima.Mais nomes.Mais Thornwalds.Mais esquecimentos disfarçados de genealogia.— Que lugar é esse? — sussurrou.A árvore respondeu com uma nota aguda, desafinada.E então… silêncio.Por um instante, tudo parou.A música. O ar. Até a névoa.E então, uma voz.Fina, interior, indistinta.“Você já esteve aqui antes.”“Você já escreveu aqui antes.”Cael não se mexeu.A voz vinha de dentro da árvore. Não dos galhos. Não da terra.Das palavras.— Quem são eles? — murmurou. — Essas… outras versões?“Aqueles que vieram antes de você. Aqueles que fracassaram. Aqueles que ainda sussurram dentro da sua pena.”Ele se sentou no chão. A frente da árvore parecia uma página virada. Como se ele estivesse diante do fim de um livro, sem saber como chegou até ali.E então, no centro da espiral, viu algo novo.Um espaço em branco.Sem nome. Sem inscrição.E sobre ele… um brilho tênue.Como se uma nova história estivesse para começar. Ou uma velha para terminar.Cael tirou a pena negra do bolso.Ela tremia.Como se reconhecesse o lugar.Ele a ergueu, aproximando-se do espaço vazio no tronco.Mas antes que escrevesse algo, ouviu passos.Virou-se.Senna.Vestida com o manto leve da noite, sem sapatos, olhos vermelhos de sono.— Você sumiu — disse ela.— Eu segui a música — respondeu Cael. — Trouxe-me aqui.Senna olhou a árvore. Franziu o cenho.— O que é isso?— Nossa raiz.Ela se aproximou. Tocou o tronco. Recuou imediatamente.— Está quente.— Ela canta. Ou lamenta. Não sei.— Esses nomes…Ela leu alguns em voz alta.E então, parou diante do dele.— Cael Thornwald.Ele não reagiu.Ela sussurrou:— Estava aqui antes de você chegar, não é?Ele assentiu.Senna ajoelhou-se ao lado dele.— Você acha que é uma linhagem?— Não. Acho que são tentativas.Ela não entendeu.Ele explicou:— Não sou o primeiro Cael Thornwald. Sou só o próximo. Talvez o último. Talvez mais um fracasso. Talvez…— A versão que acerta?Ele a olhou. Sorriu. Triste.— Ou a versão que lembra demais.Silêncio.A árvore voltou a tocar.A música havia mudado.Agora… havia uma nova nota.Uma que Cael reconhecia.Era ele.Como se sua presença tivesse completado um compasso que a árvore esperava há séculos.— Você acha que ela quer que você escreva?— Talvez. Talvez seja isso que todos os outros fizeram.— E deu certo?— Ainda estamos aqui, não estamos?Senna segurou sua mão.— Então não escreva ainda.— Por quê?— Porque talvez essa seja sua última chance de não ser mais um nome.Ele hesitou.Olhou a pena.Guardou-a.A árvore não reclamou.Pelo contrário. A música ficou… leve.Como um agradecimento.Voltaram antes do sol nascer.Na hospedaria, ninguém notou sua ausência.Mas Cael sabia que havia mudado algo.Na parede de seu quarto, ao lado da cama, surgira uma frase. Tinta ainda fresca. Como orvalho de verdade.“O nome permanece. A versão… muda.”E abaixo dela, uma assinatura:C. Thornwald.Mas não a dele.Era mais antiga.Muito mais.Cael sorriu, pela primeira vez em dias.Porque agora entendia.Era só mais um ciclo.Mas isso não o tornava menos importante.Era o compasso que faltava.Ou… a pausa que viria antes do fim.

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