Capítulo 55 - Interrogatório
O zumbido fraco do motor e o som metálico das engrenagens engatadas foram os únicos sons que quebraram o silêncio quase completo enquanto o elevador descia. A luz artificial suave e difusa dentro do compartimento lançava um brilho pálido sobre as paredes de metal cor de chumbo.
À medida que o elevador se aproximava de seu destino, meu coração acelerava no peito. O clima frio e o ar rarefeito exacerbavam a claustrofobia e a ansiedade.
Mikael estava em silêncio ao meu lado, com seus olhos vermelhos como grudados no painel de controle.
Ele me olhou e notou minha situação, então disse:
— Parece que alguém está com o frio nos pés. Não se preocupe, não vai ser tão ruim quanto pensa.
Um sorriso brincalhão se formou em seus lábios, revelando uma covinha em sua bochecha direita.
Pensei em como ele sempre conseguia manter a calma, mesmo em situações perigosas. Era como se Mikael tivesse um escudo invisível que o protegia do medo e da ânsia.
— É só frio. — respondi, tentando disfarçar meu nervosismo.
Mikael assentiu e voltou sua atenção para o painel de controle. Meu olhar percorreu as paredes do elevador, observando as imperfeições do metal e as marcas de desgaste. De repente, senti uma onda de tontura e tive de me apoiar na parede para não cair.
— Você está bem? — perguntou Mikael
— Sim, tô de boa… — Respirei fundo. — Só bateu uma tontura agora.
— É normal se sentir assim. A descida rápida pode causar tontura e náusea devido à mudança de pressão. Além disso, o subsolo tem um clima específico. A temperatura mais baixa é uma medida de segurança para ajudar a conter a energia do Mephistos aprisionado.
Ele fez uma pausa, como se estivesse pensando no que dizer em seguida.
— Sabe, quando vim pela primeira vez, tive a mesma sensação. É como se o ar estivesse mais denso, mais pesado. É fácil se sentir claustrofóbico aqui embaixo, mas você logo se acostuma.
Olhei para ele, meus olhos fixos em seu rosto.
— Espero que sim. Só que esse negócio de usar o frio para conter a energia deles… não seria mais fácil simplesmente congelar todos?
Mikael franziu a testa, seus olhos se estreitando em uma expressão pensativa.
— Não é tão fácil assim. Pense na energia negativa como um fluido. Ela flui suavemente em condições normais de temperatura. Por outro lado, ela se solidifica e fica presa quando congelada. A noção de Mephistos é comparável. O frio intenso os torna imóveis, prendendo a alma dentro de seus corpos.
— Saquei. Isso quer dizer que a temperatura diminuirá quanto mais fundo formos.
— É isso. A baixa temperatura age como um sedativo para a energia dos Mephistos, reduzindo sua capacidade de se materializar e se rebelar. Só que, se tudo der errado, o mundo seria novamente ameaçado e algo pior que um desastre natural aconteceria.
O elevador parou com um leve estremecimento. Um silvo pneumático sinalizou a abertura das portas, revelando um longo e opressivo corredor banhado pelo brilho doentio das luzes do teto.
— Vamos seguir em frente.
O ar estava denso e estagnado, cheirando a um misto repugnante de ferrugem e mofo.
O corredor se estendia diante de nós, alinhado em ambos os lados por fileiras de celas que se assemelhavam à boca escancarada de alguma fera adormecida. Cada cela pulsava com um brilho vermelho fraco, oferecendo um vislumbre desconcertante das silhuetas monstruosas aprisionadas em seu interior.
Percebi um vislumbre de movimento em uma das celas enquanto caminhávamos. Um contorno horrendo se moveu, parecendo um tanto humano, mas deformado em uma estranha paródia. Em seguida, dois olhos amarelos se acenderam, brilhando no escuro como brasas malignas. Espessa e sufocante, uma inundação de energia negativa bruta me dominou, uma representação física da raiva e aversão daquele monstro.
Grunhidos baixos e sussurros guturais emanavam das outras celas, um coro de intenções malévolas que me fez sentir arrepios na espinha.
— Evite ficar olhando por muito tempo. — advertiu ele. — Essas coisas podem entrar na sua mente.
— Sério?
— Se você permitir que o medo domine a sua mente, ele encontrará um caminho para entrar, assumir o controle da sua consciência e contaminá-la.
Engoli o seco e desviei o olhar dos olhos amarelos que me encaravam. Meu coração estava acelerado no peito, mas me forcei a manter a cabeça erguida e a regular a respiração.
— Aqui, alguns Mephistos são restos de seus antigos eus. A energia negativa corrompeu suas formas humanas, o que os transformou em monstros irracionais.
— E pensar que eu também já estive aqui.
— Você é considerado uma exceção. — ele disse, seus olhos se fixando em mim por um breve momento. — Uma exceção que conseguiu resistir à influência escondida aí dentro. Você não se rendeu à maldade, por isso, conseguiu escapar.
Senti-me em conflito depois de ouvir as palavras de Mikael. Por um lado, eu estava orgulhoso de mim mesmo por ter sobrevivido a esse evento horrível. Por outro, senti uma intensa melancolia pelas almas falecidas que vagavam pelas celas, aprisionadas em um estado de sofrimento sem fim.
Ao chegarmos próximos de uma cela específica, uma mulher, acompanhada por dois guardas, estava nos esperando. Sua presença era inesperada, e um misto de curiosidade e apreensão tomou conta de mim
Seu cabelo castanho-claro estava preso em um rabo de cavalo prático e elegante. Uma camisa branca perfeitamente desenhada se ajustava à sua forma sob a calça sob medida, enfatizando sutilmente seus contornos. A gravata preta dava um toque de sobriedade ao seu traje.
Um sobretudo aberto sobre os ombros permitia que ele se movesse livremente e sem inibições quando ela acenou com a mão em um gesto de saudação.
— Oi, oi, Mikael! — sua voz ecoou com um timbre alegre e contagiante.
Seu rosto estava escondido por uma máscara preta, um contraste gritante com a vibração de seus olhos.
Esses olhos, como poças de esmeralda derretida que espreitavam por baixo da máscara, brilhavam com um calor que irradiava entusiasmo.
Mesmo com a barreira obscurecendo suas feições, a alegria genuína em seu sorriso era inegável quando seus olhares se encontravam. Ela enrugou os cantos de seus olhos, aprofundando o tom esmeralda e adicionando um brilho divertido.
Ao se aproximarem, a mulher estendeu a mão enluvada, convidando-o para um aperto de mão caloroso.
— Que bom te ver. Estou ansiosa para começarmos.
— Espero que esteja bem, Emilly. Sua última missão pareceu ser um pé no saco.
Enquanto conversavam entre si, notei a insígnia presente no seu peito.
Aquela insígnia, com um círculo dourado, lançava um brilho encantador em torno de um tomo antigo com páginas douradas e uma capa de couro marrom. O tomo era ladeado por duas espadas cruzadas com lâminas prateadas e empunhaduras de ouro, cada uma rodeada por uma coroa de folhas verdes entrelaçadas.
— Olá para você também, Krynt.
A voz dela suave e melodiosa me tirou de meus pensamentos. Virei-me para ela, seus olhos verdes brilhavam com genuína curiosidade.
— Uh… e aí. — respondi, ainda um pouco surpreso por ter sido reconhecido.
A máscara, agora logo abaixo de seu nariz, permitiu que eu visse seus lábios se curvarem em um sorriso tímido.
— Prazer em conhecê-lo, de novo. Eu sou Emilly, da classe de Pesquisadores.
Apertei sua mão com firmeza e senti uma energia vibrante emanando dela. Havia algo intrigante nela, uma mistura de inteligência, força e determinação que me fascinou instantaneamente.
— A propósito, fui eu quem fez o seu relatório.
Seus olhos percorreram meu rosto, como se ele estivesse me avaliando.
— Você é uma pessoa interessante para as minhas pesquisas, já que conseguiu o que muitos outros não conseguiram. — disse ela, com um tom de admiração em sua voz. — Isso é algo para se comemorar, também.
Fiquei sem palavras e um pouco assustado. Não sabia o que dizer ou como responder a um elogio tão inesperado.
— Não precisa ficar nervoso. É só que… você é diferente.
“Diferente?”, perguntei-me. “Em que sentido?”
Seus olhos ainda me fitavam com uma intensidade que me deixava desconfortável.
— Espero que possamos conversar mais sobre isso em breve.
Emilly se virou para os guardas, com seus olhos transmitindo uma autoridade inquestionável.
— Abram.
Os guardas se detiveram por um tempo, com expressões tensas e incertas. Mas o olhar severo de Emilly os obrigou a obedecer imediatamente. As chaves tilintaram na fechadura e a porta da cela se abriu, ameaçadoramente.
Uma única lâmpada acendeu-se dentro da cela, lançando um brilho pálido e doentio sobre seu ocupante.
No centro da sala, uma figura solitária estava caída em uma cadeira frágil. Um garoto, com não mais de doze anos, com a cabeça baixa e uma postura de desânimo. Seu cabelo emaranhado pendia como uma cortina, obscurecendo seu rosto.
Sua postura dizia muito – uma queda derrotada que sugeria um espírito há muito desgastado pela escuridão opressiva.
— Você pode entrar. — avisou Emilly.
Emilly deu um passo para trás, permitindo minha entrada com um aceno de mão.
Mikael apertou levemente meu ombro, transmitindo uma mistura de confiança e apreensão.
— Vai dar certo, Krynt. Acredite, você é a pessoa em que ele mais confia. Afinal de contas, fizemos o possível para que ele se abrisse e fornecesse as informações necessárias.
Um sorriso indiferente surgiu em seus lábios, mas não chegou aos seus olhos.
— Até porque juntar Nicholas e Mikael para interrogá-lo é pedir pra dar errado.
Emilly levou as pontas dos dedos à boca, reprimindo uma risada sarcástica que tentava escapar.
— Bem, pelo menos um de vocês tem que ser capaz de fazer o trabalho. — disse ela, lançando-me um olhar esperançoso. — Por precaução, quero que você use isso.
Ela tirou do bolso um fone de ouvido sem fio. Era um modelo intra-auricular, de design ergonômico e com microfone embutido.
Enquanto eu hesitantemente aceitava o fone de ouvido, Emilly se inclinou para frente e gentilmente o colocou em meu ouvido. Um clique sinalizou um ajuste seguro e então uma voz ganhou vida – uma voz que reconheci instantaneamente.
— Está conseguindo me ouvir bem?
Assustado, gaguejei uma resposta.
— S-sim, perfeitamente, vice.
— Ótimo. Você está conectado à nossa rede segura. Dessa forma, podemos nos comunicar discretamente. Por meio desse canal, eu lhe darei as instruções necessárias para o que precisa ser feito. — explicou ela. — Vá em frente, chame ele.
Assenti, engolindo com dificuldade, enquanto dava um passo em direção à porta aberta da cela. O ar lá dentro era viciado e pesado, e o único som era o zumbido fraco das luzes fluorescentes no teto. Meu coração batia forte no peito quando dei mais um passo, e depois outro, até ficar em frente ao garoto.
Ele não olhou para cima, sua cabeça ainda curvada como um peso que não conseguia levantar. Cabelos escuros, como uma cortina emaranhada, obscureciam suas feições, deixando apenas o contorno de um rosto envolto em sombras.
— E aí. — eu disse, minha voz era um sussurro rouco.
O silêncio se prolongou, espesso e sufocante. Eu podia sentir o olhar de Emilly queimando minhas costas, tal como uma pressão silenciosa da vice-líder me impulsionando para frente.
— Ben. — repeti, desta vez um pouco mais alto, forçando alguma convicção na palavra trêmula. — Sou eu, Krynt. O cara que, uh, quase deu um soco em você naquela… bagunça toda.
A última parte saiu murmurada, uma tentativa tímida de humor para aliviar o clima. Cocei acanhadamente a nuca, lembrando-me ainda do momento. Mas o menino permaneceu uma estátua, imóvel e silencioso.
A frustração me corroeu, porém, eu a empurrei para baixo. Isso não era sobre mim.
— Qual é, cara. Olhe para mim.
Lentamente, a princípio quase imperceptivelmente, a cabeça de Benjamin começou a se levantar. Era como observar uma flor murcha estendendo-se em direção ao sol, um movimento doloroso carregado por um peso invisível.
Quando nossos olhos se encontraram, um abismo de angústia se abriu entre nós. A centelha de desafio havia desaparecido, deixando uma paisagem árida onde o otimismo antes prosperava.
De seus lábios ressequidos, uma única palavra escapou, um sussurro desolado que mal podia ser ouvido acima do som estéril das lâmpadas.
— Quero morrer…

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