[Ele não está mentalmente bem, então vá sem pressa.]

    Encontrei uma única cadeira encostada na parede, com seu tecido desgastado contrastando com as paredes brancas e imaculadas. Coloquei a uma distância confortável na frente de Benjamin. 

    Pensei comigo mesmo que não seria bom apertá-lo mais do que ele provavelmente já estava se sentindo.

    — Vamos lá… — falei, sentando na cadeira. — Isso pode parecer assustador, mas prometo que ninguém tá aqui para machucá-lo. Só queremos conversar, pode ser?

    Benjamin se encolheu como uma flor murchando à luz da sala. Seus olhos se recusavam a olhar para os meus, absortos em um mundo interno inacessível.

    [Espere. Ele não vai responder nenhuma pergunta desse jeito.]

    A cada minuto que passava, a sensação de impotência aumentava.

    — Eu… — Me engasguei, o pedido de desculpas era uma pílula amarga em minha língua. — Olhe, naquele dia, eu te deixei sozinho. Não pensei direito, simplesmente entrei na casa da Amy. Foi uma puta burrice da minha parte, porque pensei que seria uma coisa rápida. E então, quando voltei, você não estava no mesmo lugar.

    As palavras saíram hesitantes, como se estivessem tropeçando em seus próprios pés. Havia muito mais que eu queria dizer, um turbilhão de emoções que se debatiam dentro de mim, procurando uma maneira de se expressar.

    — Não consegui cumprir minha promessa em te proteger. Falhei contigo e, por isso, me sinto um lixo.

    Meu olhar se desviou para o chão. Sentia-me envergonhado, com um aperto no peito que me deixou sem fôlego.

    — Sei lá, não sou bom nisso. Essa vida que levo não foi feita para mim. Não fui feito para isso. Mesmo que eu tente fazer o que é certo, parece que sempre dou um jeito de meter os pés pelas mãos.

    Dei de ombros, sem saber mais o que dizer. Era como se eu fosse um idiota, perdido e confuso.

    — Não sou alguém ideal. — Cocei a nuca nervosamente. — Você merecia alguém que tivesse tudo sob controle, que soubesse o que fazer em todas as situações. Alguém que não te deixaria na mão.

    Bati o pé no chão várias vezes, tentando liberar um pouco da energia tensa que estava se acumulando dentro de mim. Eu estava tão chateado que queria chutar alguma coisa.

    A verdade era que o estilo de vida de herói nunca foi minha praia. Eu estava mais interessado em pizza e anime nas noites de sexta-feira do que em salvar o mundo. Mas as coisas mudaram. De repente, eu tinha poderes e obrigações absurdas.

    — De qualquer forma, ninguém é ideal, né? Todos cometem erros, o que importa é que você tente. E é exatamente isso que quero fazer. Mesmo que eu não possa mudar o passado, posso tentar ser melhor no futuro.

    Benjamin olhou para mim. Um sorriso genuíno surgiu em meu rosto. Não era a resposta definitiva que eu estava esperando, mas era um começo. Era uma chance.

    Observei cada detalhe de seu rosto abatido. Olheiras profundas, rugas prematuras, lábios rachados e secos. Tudo ao seu redor clamava por resgate, por uma iluminação que devolvesse seu espírito ao caminho da vida.

    [Tá indo bem. Continue assim.]

    Foi como se um peso tivesse sido retirado de meu peito. Um suspiro de alívio escapou de meus lábios.

    — Eu tô com medo. — disse ele.

    — Medo? — repeti, a pergunta ecoando minha própria surpresa. — De quê?

    Seus olhos se desviaram dos meus, buscando refúgio em algum ponto distante da sala.

    — Desde a coisa em que me tornei quando matei meus pais e comi um pedaço de minha mãe…

    As palavras ficaram suspensas no ar, carregando um peso terrível. A imagem do que ele havia descrito era muito vívida, muito grotesca para ser real. 

    Por mais que eu já soubesse, um calafrio percorreu minha espinha.

    — Tenho medo de mim mesmo. — concluiu ele, com a voz fraca e trêmula.

    Um silêncio se instalou na sala. As palavras dele ressoaram em minha mente, martelando em meu crânio como um tambor fúnebre. Eu não sabia o que dizer, como consolá-lo, como aliviar o sofrimento que ele carregava nos ombros.

    — Eu não sou um monstro. Não quero ser um monstro.

    Lágrimas brotaram em seus olhos, rolando por suas bochechas pálidas como riachos de tristeza. 

    — Eu não sei quem eu sou. Não quero ferir as pessoas que amo, me tornar algo que não quero ser. — Ele soluçou, com a voz embargada pela angústia. — Quero ser livre.

    Ele sentiu um tremor no corpo ao mesmo tempo em que seus ombros se curvaram sob o peso da culpa e do arrependimento.

    — Não consigo controlar isso. E se eu perder o controle e machucar alguém de novo?

    A fragilidade e a angústia se chocaram nos olhos de Benjamin, gerando um tornado de emoções que ameaçou levá-lo ao limite. 

    Ele olhava para mim, procurando um vislumbre de esperança em meio à escuridão esmagadora.

    Uma percepção perturbadora me ocorreu. Estávamos ligados por uma simetria apavorante. Minhas mãos também foram manchadas com sangue de inocentes durante um período comparável de dominação horrível. A vergonha, uma serpente familiar, enrolou-se em meu estômago, fortalecendo-se a cada respiração forçada de Benjamin.

    [Não se deixe abalar, você está no caminho. Faça as perguntas sobre o Mephisto.]

    Com base na orientação da vice-líder, respirei fundo, forçando um rosto calmo.

    — Aquele cara que estava contigo, ou melhor, aquele Mephisto. Por acaso cê tem alguma ligação?

    — Ele me obrigou a fazer essas coisas. Ele está dentro da minha cabeça, porque sem…

    Sua voz foi interrompida abruptamente, um súbito aperto na garganta sufocando suas palavras. Seus olhos se arregalaram de terror e suas mãos agarraram o pescoço em uma tentativa desesperada de respirar.

    — Ele quer fazer… — Engasgou-se, as palavras se perderam em sua luta pela respiração. — … algo comigo. M-mundo Carmesim… ele disse.

    Coloquei minha mão em seu ombro, tentando transmitir algum tipo de conforto. 

    — Com calma, cara. Fale mais.

    Ele agarrou os meus braços, com os dedos cravados em minha pele enquanto tentava desesperadamente recuperar o fôlego.

    — Entidade… — Seus olhos se fecharam e seu corpo começou a tremer. — Vai me usar… pra entidade.

    — Como assim te usar?

    — L-libertar… M-me transformar.

    As pálpebras de Benjamin se abriram, mas o calor que antes residia em seu olhar havia desaparecido. Em seu lugar, um vazio arrepiante cintilou, um vazio desprovido de reconhecimento. Sua pele, antes corada pelo esforço, agora se assemelhava a mármore polido, frio e sem vida.

    Uma única e arrepiante palavra escapou de seus lábios, um rangido gutural que raspou contra o silêncio da sala como um prego enferrujado na pedra. 

    — Mephisto… — disse, com uma voz que não era dele. — Eu obedeço.

    Ele virou a cabeça lentamente, um movimento horripilantemente deliberado, com os olhos fixos nos meus com uma intensidade que me roubou o fôlego.

    — Humanos também devem obedecer. Crer. Ceder. Se Render. Ele precisa do que você tem.

    Segurou meu braço com mais força, com os dedos cravados no músculo com uma força que não correspondia à sua, trazendo o pânico, me arranhando a garganta.

    — O Mundo Carmesim… Tudo vai se afogar na escuridão, banhado pela maré carmesim que manchará esse lugar. Um banquete para a fome eterna.

    O fone de ouvido vibrava com um som estático, como o zumbido irritante de uma televisão fora do ar, bloqueando qualquer som, qualquer palavra que pudesse vir do vice-líder. 

    — Não há como escapar. Todos sucumbirão à escuridão que reside em seus corações. O universo inteiro será engolido pelo caos e pela destruição.

    Um sorriso grotesco apareceu em seu rosto. 

    Ele não era mais Benjamin. Ele era um receptáculo, um fantoche. Eu sabia, com uma certeza aterrorizante, que o que quer que ele exigisse, não seria apenas carne e ossos.

    O ar estava repleto de energia negativa, carregado pelas palavras ásperas e a premonição que pairava no ar.

    A porta da sala se abriu. Mikael e Emilly passaram pela fresta. Ele o agarrou pelo braço, enquanto ela, com a mão esquerda descoberta, pressionou contra a base de seu crânio.

    — Durma. 

    O mundo ao seu redor se dissolveu em um turbilhão de cores e sons, girando e se distorcendo em um borrão. O que controlava Benjamin, perdeu o controle, esvaindo-se como água entre os dedos. E no centro de tudo isso, a criança jazia inconsciente, um corpo frágil e vulnerável.

    — Tá tudo bem contigo? — Mikael perguntou, olhando para mim. — Aquilo pareceu sério.

    Meus braços tinham marcas vermelhas por conta da pressão que Benjamin havia exercido com seus dedos, porém, respondi:

    — Sim… tô de boa. 

    Emilly se aproximou ao meu lado. Estendeu a mão enluvada, roçando-a suavemente em meus cabelos.

    — Parabéns! Você conseguiu tirar informações importantes dele, isso é ótimo!

    Um rubor aqueceu meu rosto. 

    — Valeu. Foi difícil.

    Ela assentiu, seus olhos brilhando com admiração. 

    — Eu vi, mas você se saiu muito bem. 

    Suas palavras me encheram de orgulho, e por um momento, esqueci da dor. Eu havia cumprido meu dever, e a aprovação de Emilly era mais valiosa do que qualquer recompensa.

    — Não imaginei que isso fosse acontecer. — disse Mikael, esfregando os dedos na bochecha. — Pra começo de conversa, ele não poderia possuir seu corpo nesse lugar. Pensei que sua influência estivesse reduzida no corpo desse menino, mas eu subestimei demais.

    Mikael deu um passo para trás e se virou em direção à saída. Sem dizer nada, ele fez sinal para que Emilly e eu o acompanhássemos. 

    — Benjamin falou sobre o Mundo Carmesim. O que aconteceria se isso acontecesse mesmo? — perguntei.

    Ele deu de ombros evasivamente, com a mandíbula cerrada. 

    — Não saberemos até que isso aconteça. — disse, com uma entonação de receio em sua voz. — Mas uma coisa é certa, não seria bonito.

    — E a criança? — Ela perguntou, seus olhos passando entre Mikael e eu. — Krynt serviu ao seu propósito. Deixá-lo aqui apenas cria outra ameaça.

    Um pesado silêncio desceu sobre nós. Mikael permaneceu estóico por um longo momento, com a testa franzida em profunda contemplação. 

    — Seus pais foram mortos em Hill City. Ele tem algum parente conhecido em outras cidades?

    Ela balançou a cabeça. 

    — Nenhum vínculo familiar identificado.

    — Então nós o transferimos para uma base diferente.

    — E-espera…

    Uma nota de protesto aguçou sua voz. 

    — Mikael, isso é uma loucura! Levar Benjamin para outra base vai… — Se deteve para processar a informação. — Qual é o seu verdadeiro objetivo aqui?

    Ele encontrou o olhar dela, o seu próprio inflexível. 

    — Você sabe.

    A resposta não ofereceu nenhum conforto, apenas ampliou a sensação de preocupação que se agarrou à Emilly como uma mortalha, uma premonição do que aconteceria.

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