Capítulo 62 - Ecos de Um Novo Dia
I wanna be loved by you, just you
Nobody else but you
Eram 5h20 da manhã. Emilly estava cantarolando na cozinha. A voz dela parecia arejada, mas o chiado recorrente da frigideira servia como um contrapeso. No entanto, até mesmo os estalos e assobios da percussão pareciam ceder e se suavizar na sua presença, formando uma leve trilha de apoio para o seu canto.
I wanna be loved by you, alone
Boop-boop-a-doop!
A promessa quente e levedada de pães e ovos recém-assados, um luxo que ela só se dava nas manhãs de missão, pairava pesadamente no ar.
Um visitante curioso do lado de fora da janela, a luz do sol iluminou brevemente a cascata dourada, lançando-a em uma auréola.
I wanna be loved by you
Ba-dee-dly-dee-dly-dee-dly-dum!
E um silêncio aconchegante desceu quando a última letra se desvaneceu, deixando um rastro de doçura. O som de uma colher tilintando suavemente em uma tigela de cerâmica era tudo o que se podia ouvir quando ela estava arrumando a mesa para o café da manhã.
— Prontinho.
Sua voz era um sussurro suave que saudava outra luz que estava começando a surgir. Um pouco mais tarde do que o esperado, Nicholas entrou na cozinha.
— Bom dia. — Ele disse.
Emilly virou-se para encará-lo com um sorriso tão radiante quanto os primeiros raios do sol.
— Bom dia! Chegou bem na hora. Olha o que eu fiz.
Era uma obra de arte com tons quentes e dourados que encontraram os olhos de Nicholas. Sobre a mesa havia uma folha de papel manteiga desenrolada que parecia uma tela de luz solar. Fatias de pão com ovos bem cozidos em cima pareciam ilhas ensolaradas empoleiradas acima delas. Havia duas xícaras de cerâmica ao lado desse lindo arranjo; eles estavam desgastados, mas suas superfícies ainda pareciam aconchegantes.
— Pão fresquinho e ovos perfeitamente fritos. — Emilly deu uma piscadela brincalhona. — Eu não queria que o café da manhã fosse tão… clichê. Mas se estiver, bem, pelo menos tentei fazer algo diferente.
— Para falar a verdade, isso vai muito além da torrada queimada e da bagunça mexida de Mikael. Você se superou.
Ela deu uma breve risada aliviada.
— Achei que precisávamos de algum combustível para a missão de hoje, então reuni todas as minhas proezas culinárias. Precisaremos de toda a energia que pudermos conseguir.
Emilly e Nicholas foram as primeiras escolhas de Darcy. Mesmo Mikael, um agente de enorme poder, não era tão astuto quanto precisava ser nessa missão. O crucial era a infiltração, não a força. Para essa operação, era necessária uma combinação de letalidade e pensamento estratégico, e eles haviam aperfeiçoado esse equilíbrio ao longo de anos de trabalho conjunto.
Nicholas se sentou na cadeira frágil em frente a ela. Segurou o pão e deu a primeira mordida.
— Hmm… — grunhiu, com a boca cheia. Ele engoliu o pedaço do pão que comeu, deixando os sabores dançarem em sua língua. Não eram as rações sem graça com as quais estavam acostumados, isso era certo.
— O que você achou? — perguntou Emilly, com os olhos brilhando de expectativa.
Nicholas fez uma expressão pensativa, franzindo a testa. Ele não era de expressar preferências pessoais, mas a confiança no olhar dela, a pergunta silenciosa pairando no ar, exigia uma resposta honesta.
— Eu tô… impressionado. É a primeira vez que te vi cozinhando, também.
O sorriso de Emilly, uma arma de charme praticado, suavizou os cantos de sua expressão normalmente cautelosa.
— E por ser a primeira vez eu precisava fazer algo bem gostoso. Primeiras impressões, sabe? Acho importante.
— Sim. Ficou bom. Você é boa nisso.
No entanto, o elogio parecia insuficiente. Essa sofisticação caseira inesperada, essa tentativa de normalidade em meio a um destino incerto, deixou-o sem saber como reagir.
Seria apropriado que ele agradecesse? Dar um sorriso mais largo e alguma garantia sem sentido? O gesto ainda era evasivo, enterrado nas configurações táticas que passavam por sua cabeça.
— Quero dizer… Tudo o que você faz é bom.
— Oh…
Um rubor floresceu no rosto de Emilly, tão fugaz quanto uma flor do deserto em uma tempestade de areia.
— Obrigada. — disse simplesmente a única palavra carregando o peso de tudo o que ela não conseguia expressar. — Eu precisava disso.
— Precisava do quê?
— Um lembrete. — Estendeu a mão e deslizou os dedos sobre a bochecha dele. O toque calejado da luva de couro do polegar fez um círculo suave em sua pele. — Um lembrete pelo qual estamos lutando.
As palavras embaraçosas, porém sinceras, permaneceram no espaço entre eles. Ela ansiava por essa conversa que fosse além da eficiência fria de suas vidas diárias. Era uma tentativa, desesperada, de sentir um vislumbre de vida, de normalidade, em meio à ameaça constante que pairava sobre eles.
Por outro lado, havia uma emoção estranha em Nicholas. Ele era uma fortaleza estoica, mas estava subitamente desequilibrado. Não conseguia identificar o que era, mas era definitivamente comovente; parecia uma espiada no homem por trás da aparência dura, um vínculo que ia além do campo de batalha.
— Ei, ahem — Limpou a garganta. — Sua comida vai esfriar.
Isto tirou Emily de seu devaneio.
— Ah! — gritou, um pouco alto demais, como se acordasse de um sonho. A vergonha tomou conta dela – ela estava tão perdida em sua patética tentativa de normalidade que não percebeu o desconforto dele? — Obrigado!
Enquanto comiam, ela sentiu uma súbita onda de desconforto com a expressão de desaprovação de Nicholas. Normalmente, seu estoicismo era como uma segunda pele, mas houve um momento em que seu olhar cintilou com uma vulnerabilidade incomum.
Incapaz de conter sua preocupação, perguntou:
— Aconteceu algo?
Olhando-a de baixo para cima, Nicholas encontrou brevemente o olhar dela antes de desviar rapidamente.Tomou um gole de seu café, o amargor combinando com o sabor de sua língua.
— Não. Só tô pensando em algumas coisas.
Havia uma qualidade vazia em sua negação que contradizia suas palavras. Emilly o conhecia há tempo suficiente para reconhecer os sinais reveladores, como um pequeno tremor na palma da mão quando ele levantava a xícara e um leve cerramento da boca.
Embora Nicholas não fosse de falar sobre suas privações, parecia que os problemas dele estavam se abatendo sobre a atmosfera deles, esmagando a frágil tranquilidade que haviam conseguido criar.
— Isso é sobre nós?
— O q…
Ele fechou a boca com força, o peso de seu fardo o pressionando.
Se ao menos houvesse uma saída, uma maneira de cortar o cordão invisível que o prendia, uma maneira de escapar para um lugar onde esses laços dolorosos não existissem.
Com um súbito lampejo de desesperança, ele se perguntava se haveria outra realidade, uma realidade não afetada pelas complexidades dos relacionamentos interpessoais.
Um mundo sem a batalha interminável contra o turbilhão interno contra o qual ele estava lutando pela eficiência fria que desejava tão desesperadamente.
— Tá. Tudo bem. Não precisa responder. — disse Emily, com a voz carregada de compreensão. Ele o olhou de relance, com o coração apertado pela aceitação ferida nos olhos dela.
— Não me leve a mal, eu…
Ele ansiava por atravessar a distância entre eles e oferecer algum tipo de consolo. Mas as palavras, sufocadas pelo controle inflexível que ele estava impondo a si mesmo, pareciam desmoronar em sua garganta.
— Um dia, pode ser que você consiga superar esse medo.
Para proteger a si mesmo e a ela das profundezas dos sentimentos que ele considerava uma responsabilidade, decidiu, erroneamente, que seria melhor se esconder atrás de seu ceticismo.
Nicholas ansiava por um mundo mais inocente, onde ele pudesse simplesmente estar com ela e sentir o conforto de sua natureza gentil. Mas isso não era normal, e esse fato o incomodava.
Normalmente, a generosidade de Emilly era um bálsamo, uma melodia que suavizava as arestas duras de sua realidade. Dessa vez, ele desejava o entorpecimento confortável do distanciamento do peso de seus sentimentos verbalizados.
Os últimos pedaços dos pães desapareceram com um barulho de papeis sendo amassados. Emilly recuou sua cadeira, deixando a pergunta sem resposta pairando entre eles em um silêncio desconfortável.
Nicholas, no entanto, estava estranhamente hesitante em se mover.
O objetivo em comum entre eles superou temporariamente a divisão emocional quando se levantaram juntos e se direcionaram para a garagem.
Era um refúgio bem iluminado para as diferentes ferramentas de sua profissão, um lugar de conforto prático. Behemoths armados com armaduras capazes de resistir aos ataques mais poderosos brilhavam ao lado de um SUV comum, feito para se misturar ao ambiente como um camaleão. O conjunto era completado por duas motocicletas pretas e elegantes, com seus potentes motores fazendo uma promessa silenciosa.
Para um homem que prosperava com ações decisivas, Nicholas se viu curiosamente indeciso. A emoção habitual de escolher a ferramenta perfeita para o trabalho estava silenciada. O impressionante arsenal, normalmente uma fonte de conforto, agora parecia zombar de sua agitação interna.
— Escolhe uma moto. — Emilly sugeriu. — Não será só nós dois?
A lógica era sólida. Mesmo assim, Nicholas hesitou, franzindo a testa.
— Mas não quero desperdiçar os outros.
A parte eficiente de sua mente recusou a ideia de deixar veículos perfeitamente bons sem uso. Ele não estava apenas escolhendo um meio de transporte; estava escolhendo um curso de ação, e o peso dessa decisão pesava sobre si.
Andou em direção ao Cadillac, sua forma imponente contrastando fortemente com as linhas elegantes das motocicletas. O capô bem polido brilhava sob as fortes luzes da garagem e, por capricho, Nicholas estendeu a mão, os dedos roçando o metal frio. Ao fazer isso, um movimento no reflexo chamou sua atenção. Era o seu próprio rosto.
Enquanto olhava para si mesmo, pressionava a palma da mão contra a testa, com os fios de cabelo atravessando por entre seus dedos.
— A mais pura elegância.
— Pff…
O som de uma risada abafada escapou de Emilly, e Nicholas se virou, com as bochechas ficando vermelhas. Os olhos dela brilhavam com uma mistura de humor e um quê mais significativo que ele não conseguiu captar.
— Estamos perdendo tempo com essa idiotice.
— Aham. Vamos indo.
Ignorando a lógica da utilização total que normalmente governava suas ações, Nicholas se viu atraído por sua forma otimizada da Kawasaki z1000.
A chave da moto já estava na ignição, apenas girando-a para ligar o motor. Eles colocaram seus capacetes e automaticamente a porta da garagem subiu. Nicholas estava no controle do guidão, ele girou o manípulo antiderrapante, ecoando assim um ronco estrondoso pouco antes de arrancar.
— Você está levando algo? — perguntou Emilly.
— Só o necessário. Não preciso de muitas coisas.
Ao responder assim, ele parecia bastante confiante.
— Não se descuide, pode custar daqui pra frente.
— Claro que não. — Puxou novamente a manopla antiderrapante. — Segura!
Portland, a joia do Oregon, estava esperando por eles.
A cidade fervilhava de atividade, escondida sob a imponente silhueta do Monte Hood. As pontes, como veias de ferro, levavam o ritmo da cidade, enquanto os poderosos rios Columbia e Willamette serpenteavam pelo centro. Havia contrastes para onde quer que se olhasse: cervejarias animadas e restaurantes da moda coexistiam com parques exuberantes e rotas de ciclismo.
À medida que o rugido da Kawasaki se misturava ao ruído branco da rodovia, a metrópole se transformava em uma paisagem deslumbrante.
Finalmente, chegaram ao seu destino – um edifício indefinido situado entre armazéns nos arredores da cidade. Fita amarela isolava a área e um Agente de Campo se aproximou.
— Sr. Nicholas Andrew e Sra. Emilly Jones, estou feliz por estarem aqui. Não conseguimos dar conta da situação, então pedimos mais reforços.
Os dois tiraram seus capacetes. O edifício, aos olhos de Nicholas, era normal. Entretanto, para Emilly, havia uma aura úmbria, imperceptível aos olhos humanos, fluindo em torno da estrutura, pulsando como um batimento cardíaco infeccioso. Uma sensação de pressentimento a apertou pela garganta.
— Para nos chamarem, já imaginei que a operação não estava sendo fácil.
O agente estremeceu um pouco, com os olhos cansados passando entre eles.
— Honestamente, não sei nem por onde começar. Este prédio costumava ser um estúdio de animação, fundado por Joseph Russell em 1993. Mas algo… apodreceu aqui ao longo dos anos. Tornou-se um terreno fértil para Mephistos. Tentamos exterminar todos eles, mas essas criaturas eram…
— Desenhos? — Nicholas completou. — Ouvi falar. Não dá nem pra acreditar nisso.
— Enviamos uma equipe, uma boa equipe, mas… muitos não voltaram. Nenhum corpo, nenhum sinal de luta, apenas… desapareceram. — Ele passou a mão na testa. — Se não conseguirmos contê-lo, esse edifício, talvez até mesmo todo o distrito, poderá se tornar uma ferida inflamada por muito, muito tempo.
Emilly estremeceu quando a aura do edifício pareceu pulsar com ainda mais intensidade. Essa não era uma missão comum, eles estavam enfrentando algo completamente diferente, algo que transcendia a razão e a lógica.
A firme determinação de Nicholas tomou o lugar da descrença que havia colorido sua face anteriormente. Ele lançou um olhar rápido para Emilly e voltou para o agente.
— Vamos dar um jeito nessa bagunça.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.