Capítulo 64 - Wonderheart Studio I
Reino Unido, 1992.
Os enormes edifícios em Londres brilhavam enquanto a escuridão cinza-ferro se infiltrava no ar e na paisagem urbana abaixo. De sua mesa, o olhar cansado de Joseph Russell acompanhava a linha do horizonte dos andares mais altos da empresa. Seus olhos refletiam a dura arquitetura ariana da cidade, marcada por dez anos de encarceramento corporativo.
A cidade abaixo, com suas grandes avenidas e arranha-céus imponentes, representava o controle férreo da autoridade. As bandeiras com a suástica nazista que adornavam as torres flutuavam na brisa da noite, um lembrete constante do domínio generalizado do regime. O cenário político era dominado pelos herdeiros do Führer, que reprimiam violentamente a oposição enquanto mantinham a aparência de ordem.
Seu uniforme personalizado, o qual simbolizava sua ascensão nas fileiras do Reichskommissariat1 e que já havia sido uma fonte de orgulho, tornou-se uma mortalha que o sufocava. Com as mãos curvadas sobre o laptop, ele estava prestes a soltar seu manifesto de descontentamento, completo com uma carta de demissão e uma declaração de independência.
A chama da ambição juvenil havia sido metodicamente extinta pela busca incessante de cotas trimestrais e pela conversa fiada perfeitamente calibrada dos comícios da Força pela Unidade. Joseph ficou cada vez mais desiludido com a ênfase incondicional do Reich na expansão militarista e na pureza racial. Sua verdadeira paixão estava em outro lugar, uma centelha proibida escondida sob camadas de conformidade confinante.
Desde que era criança e passava seu tempo livre debruçado sobre cadernos de desenho, ele sempre teve um fascínio por dar vida às suas criações. Mas, em sua época, pensava-se que ser animador era como uma fantasia de criança, excessiva e até arriscada, principalmente por causa da proclamação vitoriosa do Führer de uma “Nova Ordem” na Europa. Os desenhos serviam como uma arma de propaganda, produzindo soldados nazistas de tamanho heroico que derrotavam inimigos sem rosto. Era uma carreira considerada frívola e até subversiva.
Desse modo, Joseph vestiu a máscara da ambição, uma fachada bem construída que escondia o artista colorido que estava esperando para irromper. Ele trocou a liberdade de sua imaginação pela estrutura rígida dos livros contábeis que registravam a produção dos trabalhadores arianos, e a alegria de criar pela repetição deprimente dos discursos do partido que falavam sobre Lebensraum e pureza racial.
Os monumentos imponentes do domínio do regime e as ruas bem organizadas e eficientes serviam como um lembrete diário do mundo ao qual ele havia se conformado, mas ao qual nunca pertenceu de fato. Apesar de tudo, Joseph ansiava por fugir, por se libertar dessa sociedade rigidamente regulamentada e descobrir um lugar onde pudesse ser criativo sem medo.
Ao cair da noite, no dia 4 de maio, a fachada estava se desfazendo. O primeiro bloco a cair foi o e-mail.
## De: Joseph Russell (———)
## Para: [———-@gmail.com]
Considere este o meu pedido oficial de demissão, que entrará em vigor daqui a duas semanas. Sinceramente, ficar mais tempo seria um desserviço à minha sanidade, sem mencionar minha tolerância cada vez menor para ver tinta secar (o que, convenhamos, é mais animado do que a maioria das reuniões por aqui).
Os últimos anos têm sido… uma experiência. Testemunhar as tentativas corajosas de alguns de meus colegas de se passarem por competentes tem sido ao mesmo tempo hilário e exaustivo. Embora eu não vá citar nomes (principalmente porque não consigo me lembrar de metade deles), me vem à mente a abundância de unhas bem cuidadas batendo em teclados que não produzem nada de valor.
Talvez com a minha saída, finalmente haverá espaço para a produtividade real. No entanto, conhecendo essa empresa, eles provavelmente me substituirão por um cacto falante pela metade do preço.
Por favor, encaminhe qualquer correspondência adicional para meu e-mail pessoal: freedom@gmail.com. Fique tranquilo, darei às mensagens o mesmo nível de atenção e consideração que tenha dado às minhas sugestões e preocupações ao longo dos anos – nenhuma.
P.S. Não se preocupe com a festa de despedida. O orçamento não se estenderia para comida decente de qualquer maneira.
Atenciosamente,
Joseph “Free at Last” Russell
Com um clique, o e-mail foi enviado, e uma onda de alegria o invadiu. Ele estava livre. Mas a liberdade, ele logo descobriu, era uma faca de dois gumes. A euforia inicial deu lugar a uma incerteza torturante. O mundo que desejou, que antes era uma fuga idílica, tinha ares de um vasto oceano que ele estava prestes a navegar com um barco a remo cheio de sonhos de infância.
Mudou-se para outra nação, para um local sobre o qual só se falava em sussurros. Esse lugar era Portland. Tudo o que ele tinha era isso, uma aposta desesperada e um tiro no escuro. Era uma oportunidade de restaurar não apenas sua profissão, mas também o artista que ele era.
Os dias se transformaram em semanas. O aluguel se tornou um monstro iminente. As suas poupanças meticulosamente planejadas, destinadas a uma reforma confortável, estavam a diminuir mais rapidamente do que o previsto. A frustração o atormentava, uma companheira constante, pior do que o tédio de seu antigo emprego.
Numa tarde ensolarada em Portsmouth Park, Joseph se debruçava sobre seu caderno de desenho, com as sobrancelhas franzidas em foco. Mas seu lápis estava pairando centímetros acima do papel, em um tipo de concentração que carregava um toque de desespero.
Depois do que pareceram horas, ele estava olhando para o papel em branco, sua onda original de inspiração havia desaparecido há muito tempo e substituído por uma sensação incapacitante de inadequação.
— Merda… — Passou a mão pelo cabelo, manchando uma linha perdida de carvão na testa — Isso é inútil.
Só então, uma voz gentil cortou sua auto-absorção.
— Tudo bem contigo?
Joseph se encolheu, assustado com sua batalha interna. Olhou para cima e viu uma mulher parada ao lado dele, o rosto marcado pela preocupação. Ela tinha olhos gentis, da cor de chocolate derretido, cabelos castanhos ondulados que chegavam à altura dos ombros e um sorriso caloroso que marcava os cantos dos lábios.
As bochechas de Russell queimaram com um rubor repentino. Ele não estava acostumado a ser visto assim, perdido no meio da frustração criativa.
— Uh, sim, tô bem.
A mulher o estudou por um momento, seu sorriso desaparecendo ligeiramente.
— Tem certeza? Porque não é o que parece.
Havia algo em seu olhar, um conhecimento silencioso que o fez querer confessar seus problemas artísticos.
— Bloqueio de escritor, só isso.
— Um escritor ou talvez um artista disfarçado? — Apontou para a prancheta.
Joseph deu uma risada breve e envergonhada.
— Os dois, mais ou menos. Estou tentando criar um personagem de quadrinhos, mas…
A mulher olhou para o papel e rapidamente entendeu.
— Ah, a temida página em branco. Já entendi. — Sentou-se ao seu lado, a uma distância respeitosa. — Se importaria se eu ficasse aqui com você por um tempo?
Ele sentiu um choque de espanto. Normalmente, sua presença em tal estado era suficiente para afastar as pessoas. Mas havia algo de calmante nela que o fazia se sentir estranhamente confortável.
— Ótimo, já estou aqui mesmo. A propósito, eu sou Natalie. — Estendeu a mão. — Prazer em conhecê-lo.
— Joseph. — Respondeu o aperto.
Enquanto se acomodava no banco, um vendedor passou empurrando um carrinho vendendo xícaras fumegantes de chocolate quente.
— Parece que você precisa de um estímulo. — Ela o cutucou gentilmente no ombro. — Tem uma opção incrível de caramelo salgado por apenas 3,00 dólares. É maravilhoso, você quer experimentar?
Ele hesitou. Não gostava muito de falar sobre suas dificuldades criativas com estranhos, mas Natalie parecia diferente. Seu sorriso era caloroso e havia uma preocupação genuína em seus olhos. Com um encolher de ombros, ele disse:
— Claro, por que não? Parece interessante. Obrigado.
Natalie chamou o vendedor, que atendeu rapidamente. Pediu duas porções de caramelo salgado e pagou por elas, entregando o dele. Ficou curiosa ao espiar por cima do ombro de Joseph os rabiscos bagunçados que começara a fazer.
— Então, no que exatamente você está trabalhando, se não se importa que eu pergunte?
Joseph suspirou, o som carregado de frustração.
— Era para ser uma história em quadrinhos. Um mundo cheio de mitos esquecidos e criaturas que fariam seus cabelos ficarem em pé. Mas ultimamente… nada se encaixa. É como se minha imaginação tivesse saído de férias para alguma ilha que consome a minha criatividade.
A diversão inicial de Nat se transformou em interesse genuíno. Inclinando-se para frente, ela tirou uma mecha de cabelo do olho.
— Fantasia? Isso parece incrível. — disse, com a voz embargada de admiração. — Algumas vezes também tenho essa sensação, mas de uma forma diferente. Sou uma aspirante a dubladora. Você passa horas dissecando um roteiro, colocando seu coração e sua alma para entender as emoções do personagem, mas quando finalmente fala as falas… elas não saem. É como se houvesse uma névoa espessa entre você e as palavras.
Um lampejo de compreensão surgiu no rosto de Joseph. Ele riu, um som seco e autodepreciativo.
— Entendi. É como tentar respirar debaixo d’água. Você vê as emoções com clareza cristalina, mas traduzi-las em algo tangível parece impossível.
Nat assentiu vigorosamente, a frustração compartilhada apagando momentaneamente a distância entre eles.
— Exatamente! É como ser um tradutor preso a um dicionário com defeito.
Um silêncio confortável e silenciosamente compassivo se instalou entre eles. Com uma grande fascinação por Amelia, a turbulência de Joseph desaparecera imediatamente quando ele voltou à sua tarefa.
— Então… Em que tipo de vozes você sonha em dar vida?
— Oh, todos os tipos! — Seus olhos brilharam com uma paixão repentina. — Do rosnado feroz de uma rainha dragão ao sussurro comovente de uma alma perdida. Mas ultimamente, tenho sido atraído por personagens como o seu. Aqueles que preenchem a lacuna entre os mitos esquecidos e o mundo real.
— Mitos esquecidos, hein? — Um sorriso hesitante apareceu nos lábios de Joseph. — Talvez você possa me ajudar a quebrar meu bloqueio criativo.
Lentamente, as peças começaram a se encaixar.
- Termo usado pela Alemanha nazista para designar distritos administrativos civis criados em territórios conquistados durante a Segunda Guerra Mundial. Esses distritos eram governados por um alto funcionário nazista conhecido como Reichskommissar, que atuava como representante direto do Reich.[↩]

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