Capítulo 67 - O Inocente Morre, o Sonho se Desfaz
O silêncio na Sala de Tintagem foi quebrado apenas pelo suave rabisco de um lápis. Emilly, sentada em um banquinho ao lado de Nicholas, estava riscando um papel. Inclinou-se, os olhos arregalados com uma mistura de medo e ansiedade. Sobre a mesa estava o tablet no qual ele contava a história do Wonderheart Studio em formato de storyboard.
Nicholas moveu o dedo pela tela do tablet. A cada painel, sua surpresa se transformava em desconforto. Ele recostou-se e disse:
— Parece que acabou.
O rosto pálido de Emilly carregava o peso de sua terrível provação. Gotas frias de suor traçavam um caminho traiçoeiro em sua testa franzida e suas mãos trêmulas denunciavam o tumulto interno que a consumia. À medida que Nicholas revelava o que estava diante deles, os sentidos de Emilly eram ensinados por um terror inato – um recuo instintivo diante da situação grotesca que se desenrolava na tela.
— A caneta… — Hesitou, desviando o olhar da tela — Ele enfiou lá…
E então, um suspiro estrangulado escapou de seus lábios – uma válvula de escape para a angústia que ameaçava consumi-la. Ela se perguntava como alguém poderia abrigar tanta perversidade, como uma pessoa poderia ser um monstro.
— Esse cara… — Sua voz ficou trêmula. — Porra… Esse cara é doentio.
Naquele momento, Emilly lutou não apenas com as imagens diante de si, mas também com a fragilidade de sua própria sanidade.
O olhar de Nicholas, que ainda estava alternando entre os storyboards e o rosto distante dela, finalmente se aproximou e pôs uma mão reconfortante em seu ombro.
— Ei. Podemos parar por aqui. Você não precisa mais olhar para isso.
Ela estremeceu ao seu toque, mas uma centelha de gratidão brilhou em seus olhos.
— É… pior do que eu pensava. — disse, com a voz rouca. — Os personagens, eles não são mais… fofos. Eles são horríveis. Eles estão…
Emilly parou, sua voz atraindo uma onda crescente de náusea.
Com um aceno de cabeça afirmativo, Nicholas pegou outro storyboard ilustrativo de uma cena terrivelmente atroz. Um coelho, outrora mascote de um filme, estava esparramado no chão, com seus órgãos internos protuberantes em uma paródia repugnante de um brinquedo de pelúcia de criança.
— Sim, bem, isso não vende mais. Hoje em dia, tudo se resume a ser sombrio. Para manter os adolescentes envolvidos, é preciso dar a eles algo que os mantenha entretidos.
— Mas… não é mais divertido. É simplesmente… medonho. E cruel.
Nicholas soltou uma risada sem humor.
— É assim que as coisas são hoje. A inocência morre e os sonhos de infância são destruídos quadro a quadro. A comunidade de animação teria um dia de tumulto com isso no Twitter.
— Bem, se… ajustar um pouco, diminuindo o sangue e deixando mais alegórico, pode ser que funcione.
Ele ergueu uma sobrancelha, uma faísca de diversão dançando em seus olhos.
— Isso pode realmente funcionar. Poderia até incluir algumas referências de criptomoedas para garantir. Apenas para ter certeza de que todos entenderão a mensagem.
Um leve sorriso, um fantasma do que era, apareceu no canto dos lábios de Emilly. Esta reinterpretação cínica, este reflexo distorcido da sua visão original, parecia estranhamente libertador.
— Imbecil. — disse, a palavra misturada com uma pitada de sarcasmo brincalhão.
— De qualquer forma, vamos continuar. Temos uma missão.
Eles caminharam em direção à saída. Uma sensação de desconforto corroeu as entranhas de Emilly quando se aproximaram da porta. No momento em que Nicholas estendeu a mão para segurar a maçaneta enferrujada, um baque doentio ecoou pela sala. Uma figura humana despencou das vigas acima, terminando com um impacto a poucos centímetros de seus pés.
— Ahhh!!
Um grito incontrolável escapou dela, mas conseguiu abafá-lo com uma mão sobre a boca. Sua visão ficou embaçada com uma onda de adrenalina, a visão inusitada do pênis exposto queimando em suas retinas.
— Que porra é essa?! — Nicholas perguntou-se asperamente, dando um passo à frente para visualizar a forma amassada.
Através dos espaços entre seus dedos, uma parte desagradável da realidade se intrometeu. A figura caída, um homem com corpo esquelético e cabelos grossos e escuros, estava esparramado no chão. Seu peito arqueava com respirações superficiais e irregulares que chacoalhavam em sua garganta como um animal moribundo.
Uma camada brilhante de suor, manchada de sujeira, cobria seu corpo, acumulando-se nas cavidades das clavículas e escorrendo pelo tronco. As manchas vermelhas floresciam contra sua palidez, espalhando-se por baixo dele como uma flor. No abdômen, havia uma pequena ferida aberta, um corte anormal que aparentava um corte realizado com garras.
Expostas através da carne rasgada, alças brilhantes de intestino pulsavam, seu rosa vivo contrastando fortemente com os tons suaves da pele ao redor, enquanto um único hematoma roxo profundo marcava o comprimento de sua nádega descascada.
O rosto do homem, contorcido num grito silencioso, era uma máscara de dor inimaginável. Seus olhos, arregalados de terror e vidrados com um brilho de esquecimento iminente, fixaram-se em Nicholas por um momento fugaz.
Naquela fração de segundo, uma vida inteira de sofrimento passou diante dos seus olhos – o desespero, a violação, o total desamparo.
Então, com um suspiro trêmulo que escapou de seus lábios como um balão murchando, o peito do homem parou. As respirações antes superficiais cessaram, substituídas por um silêncio enervante que pressionava a sala como um peso físico.
— Ele… — Emilly lentamente abriu seus olhos e baixou suas mãos. — … era um dos desaparecidos?
Quando Nicholas inclinou-se para examiná-lo melhor. Ele estendeu a mão, um dedo calejado sondando a carne esfarrapada do abdômen.
Um movimento vindo do ferimento se tornou perceptível. Com um espasmo, uma criatura diferente de tudo o que ele já havia visto saltou do ferimento e se lançou contra ele. Nicholas se jogou para trás a tempo e Emilly deu um passo para o lado, ambos evitando contato.
— Merda…
Aquilo, caído sobre uma mesa, era uma monstruosidade com uma carapaça brilhante de obsidiana, absorvendo a pouca luz, deixando-a como uma sombra viva. Antenas trêmulas em sua cabeça, como as antenas de uma barata, escaneavam o ar ao redor.
Ele trazia um prêmio semidigerido e lustroso preso na sua boca: o pâncreas do homem, de um amarelo ictérico. Com um ruído úmido e enjoativo, a criatura devorou o órgão inteiro. Um rosnado baixo, um estrondo que parecia emanar da própria concha de obsidiana da criatura, pontuou o quadro grotesco.
Com o olhar fixo na monstruosidade pulsante, Emilly arrancou a luva de couro desgastada da mão esquerda. Revelado abaixo, nitidamente gravado em sua pele pálida, havia uma tela de veias negras latejando sob a superfície como um ninho de víboras. No centro, contrariando a pintura obscena, tinha um símbolo vermelho incandescente que palpitava com um zumbido anômalo – um sinal negativo, a antítese da própria vida. Era um corte horizontal, a marca de um lembrete constante do preço da sobrevivência.
— Você já conhece o ritual, Nicholas. Não precisamos de balas aqui.
Observou a mão dela, sentindo o cheiro característico de sangue proveniente de um corte que ela já havia sofrido. Um preço pequeno, pensou sombriamente, pelo poder que Emilly estava prestes a liberar.
Nicholas avançou para cima. O Mephisto rapidamente desceu da mesa e a chutou para cima dele, que facilmente segurou pelas beiradas e jogou de volta com um giro para ganhar mais força.
Ele se lançou com uma velocidade anormal, suas pernas impulsionando-o num salto lateral que mal evitou a forma arremessada da mesa. O ar vibrou com o som metálico quando a mesa bateu em uma pilha aleatória de máquinas enferrujadas.
Num borrão de movimento, seu braço se alongou com um estalo, revelando uma lâmina curvada perversamente substituindo sua mão. A lâmina disparou com um silvo mortal, um raio prateado apontado para o peito de Nicholas. Ele se virou de lado. Um cheiro acre, como metal queimado misturado com algo muito mais pútrido, encheu o ar quando a lâmina passou por seu ombro, deixando um corte fumegante em seu rastro.
“Eu realmente gostaria de ajudar, mas não posso. Ainda assim, você pode fazer isso, Nick. Força!”
Nicholas respondeu ao pegá-lo pelo braço estendido. Com um grunhido que soou como o disparo de um pistão, ele o puxou para trás, desequilibrando-o. Mephisto cambaleou, seu corpo batendo nos cantos dos móveis.
Chegando perto o suficiente, ele o agarrou pela cabeça. A visão do Mephisto se inclinou quando Nicholas bateu sua têmpora contra a borda de uma bancada, com força suficiente para borrifar um líquido escuro e viscoso ao redor. Depois do impacto, seu crânio pareceu se fundir momentaneamente, uma imagem horrível esculpida pela violência, no ponto exato do dano.
— Pode vir, mas vem rápido!
Seus braços serpentearam sob as axilas do Mephisto, dobrando-o para trás. Suas mãos agarraram a nuca, um aperto de aço que o manteve como uma marionete, debatendo-se incontrolado. Era um aperto temporário, uma ponte construída apenas para um único propósito – que Emilly pudesse finalizá-lo com sua técnica:
「 Sinal Negativo: Desconstrução Entrópica 」
A chave estava em sua mão esquerda. Quando ativada, o mundo na sua visão ficou mais nítido. As cores tornaram-se mais vibrantes, as bordas mais vívidas, como se a própria realidade estivesse sendo amplificada. Essa hiperconsciência serviu a um propósito crítico: permitiu-lhe perceber a estrutura subjacente dos Mephistos.
Em termos simples, onde a maioria observava uma aparição monstruosa, Emilly via um vórtice rodopiante de ectoplasma – uma energia bioluminescente e semi-senciente.
Uma leve luminescência roxa emanava do sinal, espalhando-se como uma teia de aranha pelo braço e pulsando nas pontas dos dedos. Isso não era mera luz, no entanto. Era um campo de ruptura calibrada, sintonizado com a assinatura bioenergética específica dos Mephistos.
Um zumbido baixo encheu a sala quando ela estendeu a mão. Uma gavinha de escuridão brotou de sua palma enquanto ela se apoiava na pele da criatura, uma representação visual dessa energia negativa.
Essa força energética, a própria força vital da criatura, se libertou, girando no ar como brasas de um fogo extinto. Mas não era apenas fumaça e cinzas. Esses fragmentos de energia continham uma senciência, um eco desesperado e enfraquecido da existência da criatura. Era como se gritasse numa linguagem além da compreensão humana.
O processo não foi instantâneo. O Mephisto, com sua forma se dissolvendo, se debateu com uma fúria desesperada. Emilly cerrou os dentes, canalizando cada grama de sua vontade para manter o fluxo de energia negativa, estremecendo a sala sob a pressão das energias conflitantes.
Foi como testemunhar a desintegração em nível atômico dos vínculos de uma criatura e o desmantelamento de uma molécula por uma enzima específica.
A criatura finalmente sofreu um choque de parar o coração quando sua própria essência, que lhes permitiu existir, se dissolveu em um nível sistemático. Mephisto foi destruído não pelo método, mas sim pela perda da força maligna que o mantinha vivo.
Um odor pútrido encheu o ar, um subproduto da quebra de energias.
A exaustão tomou conta de Emilly, suas pernas cedendo por pouco enquanto a onda de energia negativa diminuía. Uma dormência formigante – um lembrete gritante do poder extraordinário e do preço que ele cobrava – atingiu sua mão esquerda.
Nicholas, com o peito arfando pelo esforço, finalmente conseguiu dizer rispidamente:
— Incrível, como sempre foi.
Emilly ofereceu um sorriso fraco, sua própria respiração saindo em suspiros irregulares.
— Sim… — respondeu com a voz rouca, uma pitada de humor em sua voz. — Nunca é fácil controlar isso.
Ela flexionou a mão esquerda, o sinal negativo pulsando levemente sob o couro fresco da luva recém-calçada. Servia a um duplo propósito: canalizar seu poder e suprimir o leve zumbido que emanava dele.
— Essa coisa estava aqui desde que chegamos? — Emilly franziu o cenho, intrigada. — Eu não senti nada. Sua presença estava zero para os meus sentidos…
Conforme ela falava, Nicholas inclinou a cabeça ligeiramente à direita, estreitando os olhos. Ele viu, escondido nas sombras atrás de uma mesa virada, uma versão menor de Mephisto. Ao contrário do seu homólogo maior, este era magro, com os olhos arregalados de um medo primitivo. Não estava lá antes, Nicholas tinha certeza.
— Emilly. — Apontou para a criatura, mal ousando mover a cabeça. — Olha.
O olhar dela seguiu o dele e uma onda de surpresa a percorreu.
Como se sentisse sua descoberta, Mephisto soltou um grito estridente antes de correr em direção à porta entreaberta. Sua forma minúscula era um borrão de movimento de pânico em uma tentativa desesperada de escapar.
— Hmm?
Ambos trocaram olhares perplexos. Eles deveriam persegui-lo? Isso foi uma distração ou uma tentativa genuína de fuga? A falta de tempo era evidente. Com um aceno compartilhado, avançaram em direção à saída.
Voltando ao corredor, um detalhe crucial chamou a atenção de Nicholas. O Mephisto não estava disparando em direção a outra porta do outro lado.
— Essa porta existia antes? — Emilly, logo atrás, perguntou. Sua própria urgência era uma mistura de preocupação e uma centelha de curiosidade sobre essa anomalia que havia escapado aos seus sentidos.
— Talvez a gente só não tivéssemos prestado atenção.
Correu na direção da outra porta, empurrando-a com o ombro enquanto o carvalho grosso rangia sob sua força. Mas antes que Emilly pudesse segui-lo, com uma batida retumbante, a porta se fechou.
— O quê?! — exclamou, a voz misturada com uma mistura de choque e frustração.
A reviravolta inesperada dos acontecimentos os deixou separados, e seu plano de captura descarrilou abruptamente.
— Não, não, não! — Mesmo que tentasse girar a maçaneta, ela não abria. — Merda, merda! Como isso aconteceu?!
Seu olhar percorreu a sala em busca de qualquer explicação, qualquer indício de um mecanismo oculto, porém não encontrou nada.
Pelo canto do olho, Emilly percebeu um movimento no final do corredor que chamou sua atenção. Um enxame de Mephistos menores que avançavam em sua linha, seus olhos brilhando com uma fome malévola.
— Meu Deus…
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