Capítulo 69 - Desmembramento
BAM!
O barulho da porta batendo separou Nicholas de Emilly com uma finalidade que refletia o pavor gelado que subia por sua espinha.
— Mas que porra?!
Por um instante, Nicholas permaneceu congelado, com um quadro de indecisão gravado em seu rosto. Deveria tentar abrir a porta ou perseguir a figura de Mephisto em retirada?
Na frente dele estava aquela coisa. A criatura, um amálgama infame de sombra e malícia, zombava da situação desesperadora de Nicholas. Sua audácia em ousar arrancar Emilly de suas mãos provocou uma raiva incandescente, comprimindo sua respiração.
— Quer saber? Foda-se, eu vou te matar.
Rosnando uma maldição gutural, Nicholas lançou sua mão para o coldre de couro gasto amarrado em sua cintura. Sacou sua Glock 19, o peso familiar, uma força de ancoragem no turbilhão de emoções que ameaçava consumi-lo.
Uma sucessão de mais cinco tiros foi dada. Cada bala atingiu seu alvo, rasgando sua forma com um baque surdo. No entanto, o Mephisto sequer vacilou.
As balas deixaram rasgos sua forma, mas com uma velocidade desconcertante, as aberturas começaram a se unir, fragmentos de energia negativa se agrupando para preencher as lacunas, deixando somente o cheiro acre da pólvora queimando em suas narinas e olhando para o cano de sua própria impotência.
A visão, a terrível constatação de que sua arma era inútil contra aquela monstruosidade, mergulhou Nicholas em um poço sem fundo de indignação. Ele falhou.
O Mephisto se virou de costas e empinou as nádegas na direção do agente, balançando de um lado para o outro e rindo com total diversão malévola.
— Sem chance.
Nicholas avançou, alimentado por uma necessidade irrefreável de exterminá-lo.
A criatura corria como se estivesse deslizando pelo corredor. Sua agilidade era assustadora. Tinha pernas que se movimentavam, desafiando os limites naturais, impulsionando-a com uma marcha desumana.
Apesar da perseguição frenética de Nicholas, a distância entre eles permaneceu uma constante cruel.
As paredes brancas se tornaram um borrão enquanto eles aceleravam. Passaram por uma série de portas idênticas com maçanetas de latão polido e brilhante. Com um grunhido inumano, o Mephisto esticou um braço ossudo, fazendo com que uma das portas se abrisse.
Ele não cessou, sua forma se dissolveu em uma gavinha sombria que serpenteou pela abertura. Nicholas parou em frente à porta e entrou rapidamente.
Uma cama luxuosa, imersa em um oceano de lençóis cinza-pomba, dominava o espaço. Em seu abraço íntimo, três figuras estavam deitadas.
No centro, tornou-se rapidamente familiar. Elara, que mal era uma moça aos dezenove anos, com seus cabelos surpreendentemente esbranquiçados contrastando fortemente com o linho escuro, olhou para cima diante da súbita intrusão.
Seus olhos vermelhos, normalmente ousados e desafiadores, oscilavam entre a surpresa e um toque de constrangimento nervoso.
O lençol, puxado para cima sobre seu peito, revelava estrategicamente a delicada curva de sua clavícula e a elevação de seus seios.
À sua esquerda, reclinada, estava outra mulher que ele conhecia. Seraphina. Seus cabelos prateados, da cor do luar, caíam pelos ombros em uma cascata de cachos soltos. Uma blusa de seda carmesim, desabotoada, revelava um vislumbre de lingerie de renda preta por baixo.
Um sorriso, ao mesmo tempo sedutor e lânguido, brincava em seus lábios, com um leve toque de diversão dançando em seus olhos escuros.
À sua direita, deitada de lado, estava outra mulher que não passou despercebida à sua memória. Isolda. Seu cabelo, uma imagem espelhada do de Seraphina, estava preso em um coque apertado, enfatizando os ângulos agudos de seu rosto. A seda preta se agarrava ao seu corpo esguio com o forte contraste com sua pele pálida, imprimindo um ar de provocação.
Todas olharam para Nicholas com olhares intensos e intrigados.
“Como um desenho de comédia de três irmãs se tornou algo para punheteiros?”
Uma carranca apareceu em sua testa, um relance de algo ilegível cruzando suas feições.
Seraphina acenou para que ele se juntasse a elas com o dedo indicador. Nicholas deu um passo para trás.
— Nem fodendo.
Fechou a porta com um baque decisivo, deixando-as no quarto suspensas num quadro de silêncio atordoado.
Olhando para o lado e outro, encontrou apenas um beco vazio. A criatura havia desaparecido.
— Vou perder tempo, mas…
Um desejo primordial de recapturar sua presa surgiu através dele. Pensou ele que o Mephisto representava uma peça fundamental.
— Vamos lá.
Dentre as intermináveis portas que ladeavam o corredor, ele abriu a mais próxima, as dobradiças enferrujadas gritando em protesto.
O fedor que o assaltava era um coquetel pútrido de decomposição e carne crua. Sua visão vagou por um momento antes de se ajustar à luz fraca do gás que lançava sombras pela sala.
— Minha nossa, como essa porra veio parar aqui?
Uma criatura diferente de tudo o que ele já havia encontrado estava se alimentando de uma forma humana. Seus longos cabelos roxos caíam em suas costas em espiral. Sua pele, esticada sobre a estrutura óssea, tinha uma aparência quase translúcida, com a luz tremeluzente iluminando uma rede de veias pulsantes sob a superfície.
Quando ela levantou a cabeça, seu olhar encontrou o dele. Os olhos da criatura, desprovidos de pupilas, brilhavam em um amarelo não natural, queimando com uma fome predatória que lhe causou arrepios na espinha.
Um par de chifres, de obsidiana polida e curvados perversamente, brotava de suas têmporas, emoldurando um rosto contorcido em um sorriso feroz. Sangue e vísceras manchavam seus lábios. Uma série de dentes afiados, brilhando como adagas dentadas, projetava-se de sua boca.
Uma massa rodopiante de sombras escuras agarrava-se a ela, mudando e se transformando, enfatizando suas curvas. A escuridão diluiu na cintura antes de explodir em um emaranhado de gavinhas. Esses apêndices, uma extensão de seu ser, pulsavam com uma vida própria inquietante, ondulando e balançando como um ninho de víboras.
Um deles, mais ousado que os outros, subiu sinuosamente pela perna de Nicholas.
— Sai pra lá, coisa imunda.
Balançou sua perna até que aquilo o soltasse.
Caída e enfurecida, ergueu a cabeça, os olhos negros brilhando de malícia, antes de deslizar de volta para a garganta de seus irmãos.
Respirando fundo, Nicholas se lançou para a porta, fechando-a com um estrondo retumbante. O frágil ferrolho deslizou em sua fenda com um clique metálico, uma patética tentativa de segurança contra os horrores que espreitavam do outro lado.
Ele ainda podia ouvir os assobios enfurecidos e os movimentos deslizantes atrás da barreira, mas por enquanto era o suficiente.
— Era uma personagem nova?
Abalado, mas alimentado por uma necessidade urgente de encontrá-lo, ele se dirigiu à porta ao lado. Quando a abriu, viu uma forma humana, incrivelmente pálida e desprovida de qualquer roupa, parada no centro. O que realmente o pegou de surpresa não foi a nudez, mas a sua cabeça.
No lugar de um crânio humano, tinha uma serra elétrica monstruosa, com seus dentes brilhando com um brilho malévolo, ganhou vida.
A lâmina se estendeu com um rosnado mecânico, apontando diretamente para ele. Nicholas reagiu com o instinto primitivo de proteção pessoal, batendo a porta enquanto a motosserra avançava.
— Como que eu vou sair daqui?
A própria desse lugar era incompreensível. Como se fosse uma esfera que se moldava de acordo ao que vinha do subconsciente, fazendo dos quartos palcos propícios para seus pensamentos ocultos. Mas se ele se manifestava de acordo com seu subconsciente, o que dizia sobre ele o fato de que tais criaturas residiam em cada quarto?
— Isso tem que dar certo. Pela quarta vez, mas tem que dar certo.
Diante de outra porta, ele abriu.
Viu-se numa vegetação exuberante, banhada pelo brilho quente do sol do meio-dia, estendia-se diante dele. Árvores, com troncos grossos e retorcidos, formavam uma densa copa acima, filtrando a luz do sol em poças esmeraldas que salpicavam o chão da floresta.
Uma cacofonia de sons – o farfalhar das folhas, o canto dos pássaros. O próprio ar vibrava com uma umidade espessa, quase xaroposa. Vinhas, repletas de flores perfumadas em tons de amarelo e laranja, serpenteavam pelas árvores, acrescentando toques de cor à realidade predominantemente verde.
— Puta merda, que nojo.
Uma sobrecarga sensorial resultou em uma oscilação entre a aversão e um estranhíssimo e perturbador fascínio. Isso não era o que ele esperava, esse paraíso exuberante que contrastava fortemente com o ambiente estéril que acabara de deixar.
Mesmo assim, ele podia não saber onde estava, mas não ia deixar que essa reviravolta inesperada o detivesse. Nicholas tinha ido longe demais para voltar atrás agora.
O Mephisto estava em algum lugar dessa floresta fantástica. Preparou-se, seu olhar varrendo a folhagem, procurando qualquer sinal da coisa.
Um lampejo de movimento no limite de sua visão captou sua atenção. O arbusto próximo se agitava, suas folhas chacoalhavam. Agarrando-se à realidade da situação com mais força, ele se virou, os músculos tensos, pronto para enfrentar o que quer que estivesse escondido
Quando a figura saltou da vegetação, sua adrenalina aumentou. Porém, em vez de uma forma monstruosa, uma garota estava diante dele, piscando de surpresa.
Seus cabelos verdes eram curtos e bagunçados, emoldurando um rosto dominado por grandes e curiosos olhos castanhos. O uniforme que vestia a identificava como uma estudante do ensino médio.
A hostilidade inicial de Nicholas se transformou em confusão. Isso não era nada do que ele havia previsto. A garota, aparentemente não incomodada com a postura tensa dele, inclinou a cabeça, com uma expressão que misturava inocência e diversão.
— Olá, eu sou Zoe, a Aventureira!
Nicholas piscou várias vezes, momentaneamente sem palavras.
“Esse nome, a aparência… Espera, eu conheço.”
Sua descrença lutou com uma prata de reconhecimento. Era impossível. Ainda assim, as peças se encaixaram – o espírito aventureiro, o icônico bob verde. Uma lembrança da infância veio à tona: tardes passadas esparramadas no chão da sala de estar, hipnotizadas pelas loucuras de Zoe na tela da televisão, com sua irmã mais nova rindo ao seu lado.
A incongruência de tudo isso era quase cômica. No entanto, sob a superfície, havia uma pitada de inquietação. Tudo isso não podia ser uma coincidência.
— Perdi meu amigo Caleb, o Macaco. Você poderia me ajudar a encontrá-lo? Apenas repita comigo! Cale…
— Não vou fazer isso. Mas aproveitando que estamos aqui, quero saber de uma coisa. — Ele andou para mais perto dela. — Se você é tão boa em encontrar tesouros, por que não consegue encontrar seu próprio animal de estimação?
A reputação de Zoe em encontrar o que estava perdido era tão lendária quanto enigmática, como se fosse uma intuição misteriosa, uma capacidade sobrenatural de localizar qualquer coisa, em qualquer lugar. Só que muitas vezes isso parecia suspeito, como Nicholas sempre percebia.
Zoe piscou, surpresa.
— C-como? — gaguejou, sem saber se havia entendido corretamente. — Por que eu deveria–
Nicholas ergueu a mão, silenciando-a.
— Sinceramente, toda essa farsa se esgotou pra mim. Mas claro, vou me juntar ao seu jogo ridículo. Eu posso te ajudar a recuperar essa bolinha de pêlo se você me ajudar a recuperar uma criatura que estou caçando.
Ela não entendia a lógica, mas os pronunciamentos de Nicholas, por mais enigmáticos que fossem, tinham um histórico de se provarem verdadeiros.
— Tudo bem. Eu vou–
As palavras mal saíram de sua boca quando uma voz, fria e incorpórea, ecoou:
PARA. ESTÁ ERRADO.
A voz não era humana. Vinha de algum canto. Zoe congelou. Agarrou o braço de Nicholas com uma ferocidade que deixava os nós dos dedos brancos. Ele olhou para ela, percebendo os olhos arregalados de terror absoluto.
— O-olha, vo-você… — gaguejou, sua voz quase um sussurro. — Você–
PARA.
A realidade alterou em um piscar de olhos. Os limites belos se dissolveram, substituídos por um terreno baldio desolado banhado por uma escuridão opressiva. Árvores esqueléticas, com folhas há muito entregues à devastação do tempo, arranhavam o céu sufocado pelas cinzas. Ao redor, um incêndio se alastrou, lançando um brilho laranja.
Zoe o empurrou.
— Sai daq–
Uma figura ficou imóvel atrás dela, sua silhueta se destacando contra a paisagem infame. Os seus olhos, desprovidos de qualquer luz ou vida, olhavam para eles.
Naquele momento único e aterrador, a verdade atingiu Zoe com a força de um edifício em colapso – tudo isto não era problema de Nicholas, era dela.
Agarrou-lhe o ombro com um forte aperto, a sensação como aço frio contra a carne. De uma só vez, brutalmente, a criatura perdeu o controle, separando o ombro dela com um rasgo doentio, deixando para trás carne esfolada e ossos expostos.
Fechando os dedos à volta do seu crânio como um torno, levantou-o sem esforço. A força era tão imensa que a sua coluna vertebral podia quebrar.
Uma vez arrancada, atirou a cabeça para o ar, fazendo um arco no céu, um projétil medonho deixando rastros de sangue e tecido biológico.
Parte por parte, Zoe estava sendo despedaçada. As garras da criatura cravaram-se na sua carne, rasgando e estripando tudo o que fosse necessário, desde a selvajaria ao descontrole. A pele deu lugar ao músculo, o músculo ao osso, cada camada se descolava numa revelação macabra de sua forma.
— Puta que pariu…
Nicholas estava recuando, suas pernas ameaçando dobrar sob ele. Seu olhar disparou entre o quadro monstruoso diante dele e a alguma saída.
De fato não havia nenhuma. Sua respiração ficou presa no peito, saindo em suspiros superficiais e desesperados.
O corpo da criatura pulsou repentinamente sob uma intensa luz branca. A luz tornou-se mais brilhante, mais ofuscante, antes de explodir numa violenta explosão de energia. A força da explosão atingiu Nicholas como um trem de carga, fazendo com que ele se batesse contra um tronco de árvore e perdesse imediatamente a consciência.

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