A brisa noturna soprava suavemente pela torre em ruínas. No alto, sob um céu limpo e estrelado, Marco terminava de ajustar seu telescópio improvisado, soltando um grunhido discreto ao se esticar. 

    Seu ombro estalou, as costelas protestaram, as coxas tremiam. Cada parte do seu corpo parecia ter uma reclamação pronta — e todas gritavam juntas. 

    — Você sempre faz essas caretas quando monta o telescópio? — Maera perguntou, sentada sobre uma tapeçaria velha, observando com um sorriso de canto. 

    Marco soltou um suspiro e afundou ao lado dela. 

    — Não, só quando passo o dia apanhando da general. 

    Ela o olhou de lado, como se estivesse esperando que ele completasse a piada. 

    Silêncio. 

    — …Você está falando sério? — perguntou, por fim. 

    — Infelizmente. 

    Maera franziu o cenho, um tanto confusa. 

    — Mas… é só dor, não é? 

    Marco virou a cabeça pra encará-la, incrédulo. 

    — “Só dor”? Eu tô com o corpo todo moído. Me bateram com tanta força que minhas memórias de infância estão reorganizadas por ordem alfabética. 

    Ela riu, mas não parecia exatamente divertida — mais… intrigada. 

    — Desculpa. É que… nunca ouvi ninguém reclamar disso. Não assim. 

    — Tá brincando? 

    — Todo mundo sente dor. Mas a maioria só… lida com ela. Desde pequenos. 

    Marco piscou. 

    — Isso explica muita coisa sobre vocês. Sério. Quem é o idiota que colocou o exército como base da sociedade? 

    Ela deu de ombros. 

    — Sempre foi assim. Você se acostuma. 

    Marco bufou. 

    — Ok, agora tudo faz sentido… — Marco massageou o pescoço e se ajeitou melhor ao lado dela. — Pra mim, essa vida é insana. 

    Maera o encarou, o sorriso diminuindo, substituído por curiosidade genuína. 

    — Como era a sua vida… antes? 

    Marco ficou em silêncio por um instante. O vento soprava alto na torre, mas suave. As estrelas pareciam mais próximas dali. 

    — Eu era astronauta. — ele disse, finalmente. 

    Ela o olhou com as sobrancelhas erguidas. 

    — Isso é um cargo? 

    — Em outro mundo, sim. Significa que eu viajava pelo espaço. Trabalhava com ciência, exploração… estudava planetas, estrelas, sistemas solares. Minha missão era encontrar mundos como este. 

    Ela ficou em silêncio por alguns segundos, olhando para o céu como se estivesse tentando ver além das estrelas. 

    — Eu sempre imaginei que o céu fosse silencioso — disse ela, baixinho. — Vasto e… tranquilo, diferente daqui. 

    Marco assentiu. 

    — Eu já vi meu planeta do lado de fora. A Terra, uma esfera azul suspensa no vazio. Sem som, sem guerra. Vista dali, parecia perfeita. 

    Ele respirou fundo. 

    — Mas era só aparência. A gente olhava de fora e fingia que os problemas não existiam. Lá embaixo, ainda tinha conflito, dor, gente se destruindo por nada. 

    Marco encarou o céu, os olhos buscando uma constelação que ele sabia que estava ali em algum lugar. 

    — Aqui… tudo é o oposto. Vocês vivem como se não houvesse nada além do que dá pra tocar. O céu é só pano de fundo. E mesmo assim… vocês são tão bons em sobreviver. 

    Maera desviou o olhar, abraçando os próprios joelhos. 

    — Talvez seja por isso que eu gosto tanto de olhar pra cima. Lá… tudo parece longe o bastante pra não me atingir. 

    Ela estendeu a mão, e uma esfera de fogo surgiu na palma. Mas não era como as de Lou-reen — ferozes, instáveis, prontas para explodir. A esfera de Maera girava lentamente, pulsando com um brilho quente, suave, como uma estrela minúscula. 

    Marco a encarou, surpreso. 

    — Você sabe conjurar magia? 

    — Todo mundo aprende, ainda criança, no colégio, depois na Academia. — Ela fez a esfera flutuar um pouco acima da mão, como se estivesse viva. — Mas eu nunca gostei do que ensinavam com ela. Golpes, defesa, controle. Tudo voltado pra guerra. 

    Marco não disse nada. Apenas observava — a esfera, e o que ela dizia. 

    — Quando criança, eu achava que tinha algo errado comigo. Todas as outras meninas queriam escudos maiores, lanças mais afiadas… eu só queria… olhar pro céu e entender por que as estrelas se mexem, por que brilham. 

    Ela deixou a esfera desaparecer, a luz sumindo entre seus dedos. 

    — Me ensinaram que tudo pode ser uma arma. Mas eu nunca quis lutar. E isso sempre me fez sentir… quebrada. 

    Marco desviou o olhar para o telescópio. 

    — Você não é quebrada, só… diferente — ele disse, sem ironia, sem hesitar. 

    Maera o olhou, surpresa com a franqueza. 

    — Aqui, todo mundo parece feito pra suportar. Você é a primeira pessoa que eu vejo feita pra sentir. E isso… não é fraqueza. É raro. 

    Ela piscou, como se não tivesse certeza se aquilo era um elogio ou uma armadilha. 

    — Ninguém nunca me disse isso antes. 

    — Imagino que não. — Marco deu um leve sorriso. — Aqui, sensibilidade é tratada como defeito, mas você… você transforma isso em outra coisa. Você olha pro mundo como ele podia ser — não como ele é. 

    Ela sorriu, mas era um sorriso pequeno, apertado. Quase um pedido de desculpas. 

    — Obrigada por me deixar ver isso com você. — disse ela, por fim. — As estrelas. É como se, por um instante… nada aqui embaixo importasse. 

    Marco assentiu, sem palavras. 

    Alguns segundos depois, Maera se moveu devagar, como quem acorda de um pensamento antigo. 

    — Trouxe as anotações da noite passada? — ela perguntou, inclinando-se para espiar. 

    Marco assentiu e alisou um pergaminho sobre o chão de pedra. Havia linhas feitas a carvão, marcações tortas de curvas e símbolos improvisados. Um traço se repetia várias vezes: o formato da lua em cada noite desde sua chegada. 

    Maera se inclinou, curiosa. 

    — Isso tudo… é da lua? 

    — É. Desde que cheguei, venho observando como ela muda a cada noite. Desenho o que vejo. Tô tentando entender o ciclo dela. 

    Ela franziu o cenho. 

    — Ciclo? 

    Marco apontou para as marcas no pergaminho. 

    — A lua não brilha igual todos os dias. Ela muda. Vai se apagando, depois volta a crescer. Se eu estiver certo, isso segue um padrão. Em alguns dias, ela vai ficar cheia de novo. 

    — Mas por quê? 

    — Porque isso me dá uma noção do tempo. — respondeu Marco, girando o carvão entre os dedos. — Aqui ninguém marca os dias. Só contam os invernos. Mas… se eu conseguir medir a distância entre uma lua cheia e a próxima, posso começar a entender quanto tempo passa de verdade. 

    Maera ficou em silêncio, absorvendo. Seus olhos percorriam os rabiscos sem conseguir organizá-los mentalmente. 

    — Isso parece complicado. 

    Marco deu um sorriso cansado. 

    — É um pouco. Ainda mais com o tempo maluco daqui. 

    — Como assim? 

    — Os dias aqui têm trinta e seis horas. — disse ele. — Metade com sol, metade com escuridão. No meu mundo, eram vinte e quatro. Esse tempo esticado… devia estar me deixando louco. 

    Ele se recostou levemente contra a parede de pedra da torre e olhou para o céu por um momento, pensativo. 

    “Curioso você ainda não ter desmaiado de exaustão, já que dorme por menos tempo do que o necessário”, disse Nova, em sua mente, com o tom técnico habitual. “Tenho ajustado seu metabolismo com essência primordial. Seu ciclo circadiano está sendo moldado para acompanhar o ritmo de Asteris. Pode me agradecer mais tarde.” 

    Marco não respondeu. Nem em voz alta, nem em pensamento. Apenas assentiu levemente, como se aceitasse um favor que não pediu. 

    Maera o observava. 

    — Você… não parece tão cansado. Apesar de tudo. 

    Marco piscou. 

    — É. Eu também acho estranho. 

    Ele voltou a olhar para as anotações. 

    — Mas o céu é constante. Ele não precisa se adaptar. Só precisa ser compreendido. 

    Maera sorriu, mas era um sorriso pequeno, quase tímido. 

    — E o planeta? — Maera perguntou, a voz baixa, mas cheia de expectativa. — O que vimos ontem à noite… 

    — Hora da segunda observação. 

    Marco se ergueu e foi até o telescópio improvisado. Com dedos cuidadosos, começou a ajustar a lente. A estrutura tremia levemente com o vento, mas ele já aprendera a estabilizá-la com o próprio corpo, apoiando o peso em silêncio. 

    Maera acompanhava cada gesto com os olhos, quase sem piscar. 

    — Achei. — disse ele, por fim. — Mesmo brilho, mesma cor azul. mas está alguns graus à esquerda de onde estava ontem. 

    Ela franziu o cenho. 

    — Isso quer dizer…? 

    Marco já desenrolava o pergaminho e rabiscava dois pontos com carvão. 

    — Que ele se moveu. Pouco, mas o suficiente pra provar que não é uma estrela fixa. É um planeta. E, se ele se move, ele deve orbitar algo. 

    Ele apontou para o centro da folha, onde traçava um círculo maior. 

    — Isso aqui é a estrela. Nosso sol. Acho que podemos chamar de… Lauris. 

    Maera ergueu uma sobrancelha. 

    — Lauris? 

    — Em homenagem à general. — Marco sorriu de canto. — Sempre brilhante, impossível de ignorar, e se você chegar muito perto… pode se queimar. 

    Ela riu, abafando o som com a mão. 

    — Isso é… adequado. 

    — E aqui — Marco fez outro círculo ao redor do centro — é o planeta onde estamos. Nosso ponto de partida. Acho que merece um nome também. 

    Maera ficou em silêncio por um instante, olhando para o céu. 

    — Que tal Asteris? 

    Marco a encarou, curioso. 

    — Asteris? 

    — Mistura estrelas, descoberta com Taeris… e parece um nome forte. Como se o próprio mundo soubesse que carrega algo importante. 

    Marco testou o som na própria boca. 

    — Asteris… 

    Gostou. 

    Pegou o carvão e escreveu com firmeza no pergaminho: 

    Estrela: Lauris. 

    Planeta 01: Asteris. 

    Planeta 02: Maera — 2ª observação. 

    Maera observava tudo com um sorriso pequeno, mas constante. 

    — Você está nomeando o céu. 

    — Estamos. — Marco corrigiu, olhando para ela. — Isso aqui é o começo do nosso mapa estelar. E você é parte dele. 

    Ela olhou para o céu com olhos diferentes — mais atentos, mais conectados. 

    — Então… temos um sol, um planeta, e outro em movimento. 

    — E dezenas, talvez centenas, que ainda não conseguimos ver. — Marco sorriu. — Mas vamos chegar lá. 

    Ela se deitou de costas na tapeçaria, os olhos fixos no céu. 

    — Lauris… Asteris… Maera… 

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