O telhado do CEAET estava em silêncio, como em todas as ultimas 37 noites em que Maera subira ali sozinha. Ela já estava acostumada a fazer as anotações sem os comentários de Marco, mas ainda sentia falta deles.

    Um soldado surgiu na escada que levava até ali:

    — Senhorita Olaraeth? Chegou uma encomenda de Ayas-kin.

    O coração dela disparou ao imaginar Marco enviando algo direto para ela; respirou fundo e se obrigou a voltar pro óbvio: provavelmente era só o equipamento novo.

    O soldado ergueu a tampa para ela, e os dois ficaram um segundo olhando, curiosos. Lá dentro: o corpo do telescópio, um suporte de três pernas, uma caixa do tamanho de um livro grosso, algumas cordas finas enroladas (Maera não tinha palavra melhor para aqueles fios), uma pilha de pergaminhos cortados do mesmo tamanho e, por cima disso tudo, pergaminhos numerados: “1: Base. 2: Acoplamento. 3: Conexões.”

    Eles se entreolharam.

    — Isso… uma arma nova? — o soldado arriscou, coçando a nuca.

    — Melhor. — Maera já pegava o tripé. — É de ver.

    — Ver o quê?

    — O que ninguém mais vê.

    Quando ergueu o conjunto, a esfera de selenita na prateleira já piscava tênue. Maera a trouxe para junto do telescópio e tocou.

    — CEAET na escuta.

    A voz de Marco veio clara, empolgada:

    — Recebeu o brinquedo novo?

    — Recebi e já montei, seguindo as instruções. — Ela entrou no mesmo tom.

    — Estava tudo legível? — ele confirmou.

    — Tudo, sim. Obrigada.

    A terceira voz surgiu firme, com um sorriso contido que ela nunca tinha ouvido:

    — Vamos logo com isso. Quero saber se está funcionando mesmo.

    Maera já sabia que Marco trabalhava com uma elfa, mas era a primeira vez que ouvia a voz de Kalamera.

    — Estou com o telescópio acoplado. — Maera manteve o tom profissional, mirou o Norte para o alinhamento de referência.

    — Ótimo. — Marco. — Olha ao lado do corpo: tem um cilindro de selenita e um tubo de vidro fino com um líquido dentro.

    — Estou vendo. — Ela já tinha se perguntado para que serviam.

    — Em que número está a altura do líquido?

    — Vinte e um.

    — Perfeito. Essa é a temperatura do ambiente aí em Yhe-for.

    Maera franziu o nariz. “Ambiente” com número? Ela só conhecia quente e frio.

    — Agora imbui o cilindro de selenita com essência primordial.

    Ela tocou o cilindro, deixou a essência correr. O telescópio respondeu com um sopro frio; a pele do metal pareceu encolher.

    — O cilindro alimenta uma runa de criogenia. — Marco seguiu. — Ela imita hélio gasoso em circuito fechado. Mantém o conjunto gelado pra gente ver no infravermelho.

    — Acompanha o termômetro. Quando o líquido cair abaixo de -100C°, me avisa.

    — Certo. — Maera olhou o tubo de vidro.

    Ela e o soldado se aproximaram. A coluna começou a descer, marca a marca, como se o frio puxasse o mundo pra baixo. Passou de -20, -40, -70… parou um instante, cedeu mais um pouco, cruzou o traço.

    — Abaixo de -100C°. — Maera disse, sem tirar os olhos. — Pronto.

    — Beleza. — Marco retomou. — Segue coordenadas pela eclíptica: Longitude 132,6; latitude −1,3. No seu céu, azimute 041,6; elevação 27,2.

    — Copiado. — Maera girou os anéis, sentiu o peso assentar e travou azimute/elevação.

    — É naquela região onde vimos a nuvem de gás enorme pelo telescópio óptico antigo. — Marco lembrou. — O Wynrae estava escondido no brilho difuso dela.

    — Lembro.

    Kalamera entrou na conversa:

    — Mantém o foco fino bem curto; o fundo pode parecer leitoso por causa do resto da nebulosidade.

    — Em posição. — Maera ajustou o foco até o fundo ficar limpo no IR.

    Maera encostou o olho na lente. O fundo leitoso da nuvem ocupava metade do campo, e ali, cravado no difuso, um ponto mais brilhante, firme.

    — Estou vendo! — saiu mais alto do que pretendia.

    — Esse é o planeta Wynrae. — Marco soou satisfeito, quase rindo. — A Kalamera que viu primeiro.

    A palavra arranhou por dentro. Wynrae. A mão dela apertou a borda da ocular até doer. Pensou no outro nome, o planeta que carregava o dela, e o peito deu um passo atrás, como quem descobre uma traição, ridícula e real. Respirou fundo, guardou o que sentiu atrás do protocolo e manteve o foco onde devia.

    — Liga a caixa. — Kalamera entrou, objetiva. — Coloca uma folha no suporte frontal, imbui a esferinha de selenita ao lado com uma essência e empurra o interruptor da lateral.

    — Folha no lugar… essência na esfera… — Maera tateou o botão. — Acionando.

    A caixa ronronou baixo, engatou num zumbido firme. A folha sumiu por uma fenda. Rolos internos chiaram; dois estalos; o papel reapareceu do outro lado, saindo devagar.

    Maera puxou pelas bordas e ficou olhando. No centro, um círculo escuro com halo leitoso: o ponto brilhante cravado na nuvem, do jeitinho que estava na lente.

    — Como saiu? — Marco, ansioso só pela voz.

    — Núcleo nítido, borda suave. — Maera descreveu. — Contraste alto no centro, difuso ao redor. É o que estou vendo aqui.

    — Perfeito. — Kalamera. — Mantém essa configuração.

    O soldado deu um passo, olhos presos na caixa.

    — Ela… faz desenho sozinha?

    — Se eu apontar direito, faz. — Maera já encaixava a próxima folha no suporte. — Iniciando sequência.

    — Bom trabalho, Maera. — Marco soou leve, real. — Vamos repetir isso toda noite, mantendo um registro dos outros planetas também.

    — Certo. — Maera acomodou o conjunto, cobriu o tubo com o pano escuro e fechou a caixa acoplada.

    — Depois vamos enviar a impressora para o telescópio óptico. — Marco hesitou um segundo. — E… a próxima entrega é um relógio de pêndulo. Pra gente alinhar melhor as marcas de tempo do CEAET.

    — Agradeço. — Maera sentiu o peso bom de quem mede com régua comum. — Vai ajudar.

    — Ajuda todo mundo. — Kalamera sorriu na voz. — E o módulo IR ficou redondo com você. Não muda nada por conta própria, qualquer ajuste, chama.

    — Chamo.

    — Encerrando canal. — Marco quebrou o ar. — Boa noite, CEAET.

    — Boa noite, astronauta.

    Maera tocou a esfera.

    A luz apagou devagar.

    Fez o último checklist local sozinha: capuz do tubo, travas do tripé, tampa do módulo, fita do registrador, estojo no armário, esfera de selenita sem brilho. No final, rabiscou no caderno:

    “Repetir mesmos parâmetros.”

    Encostou as costas no parapeito e olhou para cima. O planeta com o seu nome estava lá, visível à olho nu como um ponto tímido.

    O soldado ainda estava ali, meio escondido pela sombra da escada. Coçou a nuca, olhou o céu, olhou a caixa.

    — Senhorita… dá pra ver mais coisas como essa?

    — Dá. — Maera fechou o estojo. — Tem muita coisa para se ver no céu.

    Ele engoliu em seco, sem tirar os olhos do telescópio.

    — Eu… posso voltar amanhã à noite? Só pra olhar um pouco também.

    — Pode. — Ela assentiu. — Amanhã eu te mostro outros mundos e te ensino o nome de cada.

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