Capítulo 063 — Isso não te pertence.
O som da arena vinha abafado pelos corredores de pedra. Explosões de essência estouravam lá fora, graves, fazendo o chão tremer em ondas curtas. Gritos se misturavam a comandos distantes. O eco da voz de Ivoney aparecia e sumia, arrancado pelo labirinto da construção.
Marco caminhava no meio do grupo; à frente, Hogge Bakalyn seguia em passo firme, um olho na frente, outro nas laterais, apontando curvas e portas como se tivesse decorado aquele caminho desde criança. Ao lado dele vinha Kaertien Dorbeos, túnica bem cortada, postura inexplicavelmente composta para alguém no meio de uma guerra civil em tempo real.
— A sala segura fica dois níveis abaixo — Hogge falou, sem olhar para trás. — Corredor interno, acesso controlado. De lá avaliamos o cenário.
Marco tentou ouvir de novo o barulho da arena, como se o som pudesse dizer se Lou-reen ainda estava de pé, se Kalamera tinha saído do meio do fogo, se o Imperador não tinha sido dilacerado por alguma runa que ele nem entendia.
“Você não vai conseguir ajudar ninguém desmaiado no chão com o tórax aberto.”
A voz de Nova cortou o fluxo de pensamento, limpa, dentro da cabeça dele.
Eu devia estar lá embaixo.
“Você devia estar vivo. A gente negocia o resto depois.”
O corredor se abriu de repente.
Saíram num pátio murado, retangular, com paredes altas dos quatro lados. Acima, um recorte de céu cinza-azulado. Pelas frestas da estrutura da arena, do outro lado, dava para ver fumaça subindo e clarões de essência estourando em silêncio, como trovões presos do lado de fora.
A escolta se reorganizou sem precisar de comando. Dois soldados avançaram alguns passos à frente, escudos prontos. Outros ficaram atrás, fechando o grupo. Marco continuou no centro, junto de Hogge e Kaertien.
— Por ali — Hogge apontou para a porta de metal reforçado na extremidade oposta do pátio. — A escada desce direto.
Kaertien acompanhava os clarões de canto de olho. O maxilar estava travado, mas a voz saiu controlada:
— Assim que estivermos em segurança, precisamos entender quem está atirando em quem lá fora. Isso muda tudo.
Mais uma explosão longínqua fez a pedra sob os pés vibrar.
Eles deram três passos no pátio.
A porta na frente deles não estava mais só. Tinha alguém parado ali.
Uma mulher, sozinha, em pé diante da entrada, como se tivesse chegado um segundo antes e decidido que aquele lugar agora era dela. Ombros relaxados, braços soltos ao lado do corpo. Não parecia em posição de guarda, não parecia em posição de ataque. Só estava ali.
Os soldados de Taeris não pararam para interpretar.
Escudos subiram. Lâminas apareceram. A formação fechou num reflexo, instintiva: duas linhas se montaram entre o grupo e a mulher, pontos de lança alinhados.
“Asora Camadriel — disse Nova, num tom grave que Marco raramente ouvira. — Uma Multiplicadora. Clyve a treinou pessoalmente, é quase certo que esse grupo está por trás do ataque em Ga-el. Marco… você não está pronto para enfrentá-la.”
Marco sentiu o corpo inteiro ficar em alerta. O olhar de Asora varreu o pátio, passou pelos escudos, pelas lanças, pelo metal polido. Parou nele um segundo a mais. Depois seguiu até Kaertien e Hogge, atrás dos soldados.
— Continuem — Hogge ordenou, baixo. — Abram passagem.
Os soldados se prepararam para avançar.
Marco foi junto.
Deu um passo à frente, saindo do abrigo da formação e se colocando entre a mulher e o núcleo do grupo. Sentiu a própria teimosia falando mais alto que a prudência, mas não tentou calar.
O corpo entrou no modo de treino sem pedir licença. Pés afastados, peso baixo, ombros soltos. Lou-reen tinha empurrado essa postura para dentro dele a golpes de madeira e hematomas.
A mão encontrou o cabo da espada com familiaridade nova.
Puxou a lâmina.
O som do aço saindo da bainha cortou o barulho ao redor por um instante. Marco ergueu a espada, ponta voltada para a frente, alinhada com o centro de massa de Asora. Ele não fazia ideia do que ela era capaz. Mas sabia medir distância. Sabia onde estaria o primeiro passo dela se atacasse.
“Isso é corajoso demais para o seu currículo, astronauta.”
Nova entrou de novo, seca.
“Ou só estupidez. A linha é bem fina daqui de cima.”
Asora inclinou a cabeça um pouco para o lado. O movimento foi pequeno. Quase curioso.
Para Marco, o tempo falhou.
Asora estava parada a alguns passos de distância. No instante seguinte, não estava mais. Não foi um avanço, não foi uma corrida, não foi um salto que o olho pudesse acompanhar. Ela simplesmente ocupou outro lugar no mundo.
Um impacto seco acertou o peito de Marco.
O ar saiu dos pulmões de uma vez. Quando percebeu, os pés já tinham saído do chão. A mão de Asora fechava a túnica dele na altura do peito, o tecido amassado entre os dedos, e o ergueu como se ele fosse uma criança.
A espada ainda estava na outra mão, mas o braço não respondia. A pegada dela, a proximidade, o peso da presença apagaram qualquer intenção de movimento. A lâmina ficou presa num ângulo inútil, sem espaço para atacar, sem tempo para defender.
Os soldados não entenderam o que tinha acontecido. Um momento havia uma mulher parada. No outro, Marco estava pendurado no ar na mão dela, e ninguém tinha visto o trajeto.
A outra mão de Asora subiu devagar.
Ela seguiu a tira da bolsa que cruzava o peito de Marco como quem passa o dedo numa corda. Encontrou o fecho. Não tentou abrir com cuidado. Puxou de uma vez. A bolsa se soltou do corpo dele, presa agora só pela mão dela.
Asora enfiou os dedos no interior do tecido rasgado e puxou o que queria.
O Cetro saiu da bolsa. Os olhos de Asora nem piscaram.
— Isso não te pertence — ela disse, num tom neutro.
Marco tentou puxar o corpo para soltar a roupa, tentou usar o peso para escapar. O braço da espada continuou preso. Não havia folga. Não havia brecha.
Ela o afastou do corpo, só para ajustar a pegada, como quem segura uma peça pronta para ser lançada.
— Não! — Hogge deu um passo à frente, sem pensar.
Um dos soldados o segurou pela manga.
Asora girou o tronco.
O movimento foi limpo, quase elegante. O braço dela traçou um arco, e Marco foi com ele. Quando a rotação chegou ao limite, ela soltou.
Kaertien tentou acompanhar com os olhos, pescoço inclinado no limite, até que o ponto escuro desapareceu no céu. Hogge parou no meio do passo, respiração presa, sem ter para onde correr. Os soldados ainda estavam em formação, lanças inúteis apontadas para um lugar vazio.
A única coisa que continuava ali era Asora.
E o Cetro.
Assim que Marco sumiu nas nuvens, o Cetro começou a vibrar na mão dela.
De início foi uma pulsação leve, como um músculo contraindo sob a pele. Depois, a vibração ganhou força. A arma puxou a mão dela numa direção específica: o alto, o vetor de onde Marco continuava sua trajetória.
Asora fechou os dedos um pouco mais em torno do cabo.
A força aumentou.
O metal pareceu querer escapar em linha reta, tentando rasgar o ar para ir atrás do dono. Um brilho discreto correu pelas inscrições, como se a essência lá dentro respondesse a alguma coisa que ninguém mais via.
Os soldados recuaram meio passo, instintivamente.
Asora aproximou o Cetro do rosto.
Falou uma frase baixa, encostada no metal. Hogge e Kaertien só viram os lábios dela se mexendo, sem captar uma sílaba.
O efeito foi imediato: a vibração cessou e o brilho se apagou, como se alguém tivesse soprado uma chama invisível. A arma relaxou na mão dela, obediente. O Cetro de Clyve, que berrava em silêncio por Marco um segundo antes, agora parecia um objeto qualquer que alguém tinha esquecido num canto de oficina.
Como se tivesse adormecido.

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