Capítulo 070 — Ele não volta.
NOITE ANTERIOR
O luar derramava-se morno sobre os jardins silenciosos do complexo imperial, onde a música e as vozes da arena, ao longe, começavam a esmorecer. O general Luminor Mandilyn cambaleava entre os arbustos, rindo alto com uma taça vazia na mão e um braço ao redor da cintura de uma jovem soldado. Ela usava o cabelo preso em tranças apertadas e ainda tinha fôlego para rir das piadas do general, apesar de estar visivelmente mais sóbria que ele.
— Um general… — Luminor dizia, com a fala arrastada e um sorriso atrevido. — …não é afetado por álcool. Isso é conhecido! Está nos manuais!
— Está sim — ela respondeu, debochando. — Provavelmente ao lado da parte que proíbe agarrar subordinadas em público.
— Público? — Ele gargalhou, apontando em volta. — Estamos num jardim, cercados de rosas, luar e uma brisa com cheiro de vinho! Isso é praticamente poesia!
Eles pararam sob uma árvore coberta por folhas escuras. Ele tentou beijá-la. Ela deixou, meio divertida, meio constrangida.
E então ele a empurrou com força.
Ela caiu sentada na grama, surpresa, começando a protestar, mas calou-se ao ver o brilho de uma lâmina surgir nas costas do general.
CLANG!
Luminor bloqueou a primeira espada com o antebraço desprotegido. Virou o corpo e desviou a segunda com a palma da mão. Não viu a terceira que perfurou sua lateral com força, fazendo-o engasgar-se com o próprio sangue.
Rugindo, ele girou o corpo, agarrou o quarto inimigo pelo pescoço e o quebrou com um estalo seco. O cadáver caiu ao chão com os olhos arregalados.
Do meio das sombras, surgiu o quinto inimigo.
Calmo, seguro e silencioso.
Luminor tentou puxar sua arma por reflexo e só ali percebeu: a lança não estava em suas costas. Tinha deixado na casa, encostada na parede, como se aquela fosse uma noite qualquer.
Um erro gravíssimo.
Sacou a lâmina cravada em seu próprio corpo e avançou, mesmo sangrando. As espadas se encontraram e a lâmina de Luminor foi partida ao meio. O som do metal se rompendo ecoou como um trovão abafado. Seus olhos se arregalaram, descrentes.
A arma do inimigo não era comum. O metal tinha um brilho pálido, quase azulado, e cortava o aço como se fosse madeira velha.
Luminor cambaleou um passo para trás. Seus reflexos ainda funcionavam, os sentidos de um general não falham facilmente, mas havia algo errado. Uma névoa se arrastava por dentro de sua mente, lenta e densa.
Seu corpo reagia, mas seus pensamentos pareciam atrasados, pesados. Como se estivesse embriagado… mas ele mal havia bebido.
Na verdade… não. Ele se sentia embriagado como se tivesse ingerido um barril inteiro de vinho.
— Belo corte, não acha? — a voz à frente soou calma, quase respeitosa, como se apreciasse a própria obra.
Luminor tentou dar um passo firme, mas o chão pareceu girar por um instante. A névoa se espalhava rápido, e ele percebeu o que era.
Veneno.
E não um veneno comum.
— Valeu o investimento, — continuou a mesma voz, com um leve sorriso. — Pouca coisa pode afetar um general. Mas a doutora… ah, ela será bem recompensada.
Luminor cerrava os punhos, lutando contra a vertigem. Sua arma estava destruída. Seu corpo, traído. Mas o olhar… ainda era de um guerreiro.
Ainda era o de um general de Taeris.
Luminor tentou dizer algo, mas só sangue escorreu de seus lábios.
A lâmina de Mirthril entrou de lado, entre as costelas, profunda o bastante para roubar o ar, não o bastante para apagar o coração. A dor acendeu tudo de uma vez; as pernas cederam. O jardim subiu ao encontro dele.
Outra sombra se destacou atrás do homem armado, um contorno mais magro, envolto em tecido escuro. Luminor reconheceu algo no jeito de ficar parado, na inclinação da cabeça, mesmo com a visão embaçada.
— Você… — a palavra saiu raspando, quase só ar.
A nova voz veio suave, sem esforço:
— Você deveria saber, general. Papel também corta.
O luar virou um borrão prateado. As rosas à volta pareciam manchadas, distantes. Depois, nada.
A jovem soldado, até então congelada pela confusão e pelo choque, finalmente entendeu o que acontecia. Engoliu em seco e abriu a boca para gritar.
Um dos homens alcançou-a antes.
O punho da adaga desceu na base da nuca, preciso. O mundo dela apagou ali mesmo; o corpo desabou mole na grama, sem som.
— Pegue a chave — ordenou o homem da lâmina.
Um dos outros agachou-se, puxou com cuidado o colar do pescoço de Luminor e entregou. Ele observou o objeto um instante e então o passou à figura que tinha acabado de falar, que desapareceu nos arbustos sem mais uma palavra.
***
AGORA
O corredor parecia mais estreito com a Fortaleza inteira tremendo.
Marco corria com o peito ardendo, o som dos próprios passos misturado a gritos distantes e metal batendo em pedra. Poeira descia do teto em fios finos. Em algum lugar acima, uma explosão fez as paredes vibrar.
Virou a esquina sem frear.
Quase trombou no soldado.
O homem vinha na direção contrária, armadura de Taeris, elmo de viseira baixa, espada já na mão. Parou por um instante, só o suficiente para o olhar descer pela roupa civil de Marco, suja de sangue e poeira.
— Alto! — ele rosnou.
A espada veio na mesma linha.
Marco deu um passo para trás. Sentiu o vento da lâmina passar onde o pescoço estava um segundo antes. O corpo mexeu no reflexo do treinamento; a mente ainda tentava acompanhar.
“À direita”.
Ele já se inclinava quando a voz soou. O segundo golpe veio lateral, mirando as costelas. Marco deixou o corpo cair para o lado, o metal rasgou o ar e bateu na pedra atrás dele.
A mão foi à cintura.
Os dedos encontraram o cabo da adaga que tinha recebido de Kalamera naquela manhã. Puxou a lâmina para fora no mesmo movimento em que voltava para a frente.
O próximo golpe desceu de cima.
Marco levantou o braço com a adaga. Não tentou aparar direto; bateu na lateral da espada, desviando o caminho e sentindo o peso passar pela frente do rosto. O impacto fez o punho latejar.
“Pelo padrão de ataque e a postura, isso não é soldado de Taeris em pânico.”
A voz de Nova veio seca, sem tempo para drama.
“Isso é gente treinada para matar de primeira. Infiltrado de Malrath.”
O homem não respondeu. Recuou meio passo e avançou de novo, agora mirando a perna. Marco tirou o pé da linha, a lâmina riscou o chão, levantando faíscas.
Ele respirou fundo, tentando lembrar das correções de Lou-reen.
Não bloqueia a lâmina. Bloqueia o braço.
Quando o próximo corte veio na diagonal, Marco não foi na arma. Deu um passo para dentro, quase encostando no peito do inimigo, e enfiou a adaga entre o punho e o antebraço dele, forçando o pulso para trás.
O soldado xingou, perdeu o eixo.
Marco girou o corpo junto, usando o peso do outro. O braço do inimigo torceu. A espada escapou da mão e bateu nas pedras do corredor antes de deslizar alguns metros adiante.
Por um instante, só a respiração dos dois preenchia o espaço.
Marco parou com a adaga erguida, ponta apontada para a garganta do homem. Estava perto o bastante para sentir o cheiro de couro molhado e metal. O infiltrado ficou imóvel, peito subindo e descendo rápido. Levantou o queixo, expondo ainda mais o pescoço, olhos fixos nos de Marco.
Ele esperava o fim.
O braço de Marco travou.
A cena inteira pareceu encolher para o espaço entre a ponta da adaga e a pele. A mão tremia um pouco. Ali, não era treino, não era simulação. Era um homem real, com rosto, com olhos, respirando na frente dele.
Se eu enfiar a adaga, ele não volta.
O infiltrado estreitou os olhos.
A adaga continuou ali, parada. O som distante de mais uma explosão subiu pelos corredores, mas dentro daquele pedaço de pedra não havia nada além do silêncio engolindo os dois.
O soldado entendeu. Saiu da resignação e entrou em cálculo. Numa fração de segundo, o corpo inteiro reagiu.
Ele jogou o peso para trás, tirando o pescoço da linha da lâmina, e ao mesmo tempo chutou a perna de Marco de leve, só o bastante para quebrar o equilíbrio. Marco recuou um passo para não cair; quando tentou avançar de novo, o homem já se lançara para o lado.
Passou por baixo da adaga, raspando o ombro na parede, ganhou o corredor e disparou.
Marco ainda tentou agarrar o ar.
— Ei! — A voz saiu rouca.
Deu dois passos, mas o infiltrado já virava outra esquina, metal da armadura batendo contra si mesmo. Em segundos, sumiu no barulho geral da Fortaleza.
Marco ficou parado no corredor, respirando fundo, adaga ainda na mão.
“Você está em uma guerra, Marco. O inimigo não te pouparia.”
A frase de Nova cortou por dentro.
“Acabou de deixar um infiltrado armado e treinado voltar para o meio de uma fortaleza em chamas. Estatisticamente, isso não termina bem.”
Ele fechou a mão livre, sentindo o suor escorrer pelas costas.
— Eu o desarmei.
“Por uns segundos.”
A espada do infiltrado ainda estava ali, caída onde tinha batido na pedra, o cabo voltado para ele.
Marco caminhou até a arma.
Abaixou-se, pegou a espada com cuidado, como se fosse um objeto estranho. O peso era diferente de qualquer ferramenta de Taeris, mas familiar o bastante para o pouco treino que Lou-reen tinha enfiado nas manhãs em Yhe-for. Girou o punho uma vez, testando o equilíbrio da lâmina na mão.
— Pelo menos uma coisa boa. — murmurou.
Enfiou a adaga de Kalamera de volta na cintura e manteve a espada na mão direita.
“Ótimo.”
Nova soou menos ácida por um instante.
“Da próxima vez que um deles vier te matar, tenta usar.”
Marco puxou o ar uma vez, fundo, e voltou a correr pelo corredor, agora com o eco dos próprios passos acompanhado pelo peso novo da espada batendo levemente contra a perna.
— Fala assim porque é você… ou porque é o Cetro? — perguntou, baixo, sem saber direito para quem.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.