Os dias se arrastaram em meio a tensões crescentes na torre de Elfaren. O interrogatório do tiefling havia revelado segredos sombrios sobre os planos de Endael, e sua busca pela biblioteca, e as preparações para a chegada dos mercenários de Picos Altos já estavam concluídas. Mas nada alarmante tinha acontecido e dois dias tinham se passado. 

    O cântico dos pássaros da floresta e os raios de sol que entravam pelas janelas anunciavam que uma nova manhã havia se iniciado, e como de costume a passos calmos Alvaeh seguia na direção do quarto de Gael iria acordá-lo para mais um dia de treinamento. Conforme caminhava pelo corredor, sentiu a presença enigmática e aterrorizante de seu mestre se aproximando. 

    — Como vai Alvaeh? — disse em cumprimento, se colocando ao lado dela.

    — Estou bem mestre e o senhor?— limitou-se a responder e o viu apenas concordar com a cabeça, pelos anos de convivência com seu mestre sábia, que ele não era de começar uma conversa com seus subordinados assim. — O senhor irá buscá-lo pessoalmente, posso fazer out…

    — Iremos juntos — a interrompeu — Aliás, gostaria de saber como ele está com os outros treinos? 

    — Como o senhor sabe, ele tem um talento fora do comum para magia — começou ela, já que Gael está quase dominado o Raio de Gelo e havia por instinto e curiosidade Globos de Luz e Elfaren tinha o iniciado o treinamento de Mãos Magicas. — Já nos treinos de combate ele está se saindo na média para um criança.

    — Achei que com as orientações de Sirion ele estaria evoluindo na mesma velocidade de que com magia — o ser imortal apareceu decepcionado.

    — Isso por que Sirion está completamente relutante em treinar o garoto de forma apropriada, seu treino é desleixado e nada funcional para alguma inexperiente — explicou a drow.

    — Então é isso, Sirion não vê Gael como um de nós, por ele ser humano e conjurador. — Coçando seu rosto apodrecido, parecia pensar em algo. — Deixaremos do jeito que esta por enquanto, não planejo usar o Gael contra os mercenários mesmo, além de que isso só deve estar pressionando ainda mais aquela sede por se desenvolver que tem dentro dele, enfim e quanto a Eldara?

    — Para ser sincera, pensei que ela não era qualificada para ensinar ninguém —  o lich riu da expressão de Alvaeh. — Queimei minha língua por achar isso, mesmo com seu jeito esquisito, ela é uma professora muito acima do esperado, e ainda com a ajuda daquelas runas — deu uma pausa, se lembrando das três noites de aula que Gael teve, Eldara sempre foi prestativa e atenciosa com o menino.

    — Uma magia poderosa e criada por ela — soltou o lich se referindo a magia contida nas runas.

    — Sim, mas o diferencial é ela, Gael já está escrevendo com uma caligrafia de fácil compreensão, tanto em comum como em élfico. Em questão de leitura diria que está num estágio de leitor silabador, já que ainda ocorre dele usar a leitura por sílabas para formar as palavras.

    — Excelente, conseguimos o que levaria seis meses em apenas três dias — a voz do lich saiu animada e entre risos pensativos sobre o futuro do menino. — Em um ano as habilidades magicas dele estarão no nível de um segundo anista das academias arcanas, com o nível de combate de um escudeiro e dominando pelo menos sete dos dezoito idiomas que Eldara fala…

    A conversa dos dois prosseguiu ainda mais animada agora que Elfaren tentava calcular sobre o futuro do menino e as várias possibilidades existentes para ele.

    ⸙« Em algum lugar do Vale»⸙

    Os mercenários caminhavam agrupados em uma formação que os mais fortes ficavam ao redor do grupo e os conjuradores no centro para não serem alvos fáceis.  O meio-orc Gromak, era o único a frente do grupo, parecia monitorar tudo, atendo até mesmo aos menores dos movimentos. Não demorou muito para que chegassem ao local onde acontecerá o confronto entre o lich e o tiefling.

    Gromak desmontou de seu cavalo, inquieto e observando cada detalhe do lugar, solo queimado por magia, marcas de pequenos cristais de gelo derretendo, corpos em decomposição de aves e de um lobo e manhas de sangue secas. Ele caminhou até o centro da cena, simulando em sua mente como teria sido o combate.

    — Neste lugar… Hum! Um necromante e o assassino dos goblins — disse Gromak, inclinando-se para tocar o corpo de uma das aves que serviram de servos mortos vivos de Elfaren.

    Um dos mercenários, um humano alto com uma cicatriz no rosto, se aproximou.

    — Capitão, não é sensato continuar. Se ele é tão poderoso quanto dizem…

    Gromak o cortou com um gesto brusco.

    — Nós não fomos contratados para ser sensatos. Fomos contratados para encontrar essa maldita biblioteca e destruí-la, se for preciso enfrentaremos tudo que está floresta tiver a oferecer.

    Ele se virou para o grupo, seu tom ficando mais firme.

    — Vasculhem o lugar. Procurem por qualquer pista que nos leve ao necromante ou ao assassino.

    Os homens obedeceram, espalhando-se pelo campo de batalha enquanto Gromak permanecia parado, seus olhos fixos nas árvores à frente. Ele sabia que o verdadeiro desafio ainda estava por vir.

    “Sinceramente, pelo que pude recriar em minha mente, o assassino de goblins nem foi um oponente para o necromante, isso será complicado, mas só aumenta a minha vontade de encontrá-los.” Pensava o meio-orc com um sorriso entusiasmado formado em seus lábios.

    ⸙« Torre de Elfaren, Vale»⸙

    Gael aproveitava um raro momento de tempo livre antes de seu treinamento com Sirion. Explorando os corredores, ele subiu ao quarto andar, de fato o andar de alguns quartos hoje em dia livres, já que os quartos usados por Elfaren, Alvaeh e Gael ficavam no quinto andar. Além-claro das salas de pesquisas que o lich usava costumeiramente, o menino, com a curiosidade aguçada pela idade, abria as portas que encontrava muitas não tinha nada além de camas e baus velhos e mofados. Mas tinha uma porta de cor esverdeada e adornada com cobre em sua placa, algo escrito em uma língua que o mesmo ainda não tinha o menor conhecimento, e isso só tornava a sala ainda mais convidativa, assim decidiu entrar.

    O ar era pesado, carregado com o cheiro de substâncias químicas e algo mais… algo pungente e desagradável. A sala estava repleta de instrumentos estranhos e diagramas detalhados sobre o corpo humano e de animais como corvos e lobos. Havia frascos contendo fluidos de cores variadas, e, no canto, mesas de dissecação com cadáveres parcialmente preservados. 

    Gael congelou ao ver um deles. Era um corpo humanoide, com partes do torso aberta para revelar órgãos e sistemas internos. Ao lado, havia anotações detalhas na caligrafia precisa de Elfaren.

    — O… o-o que é isso…? — sussurrou Gael para si, sentindo um calafrio subir pela espinha.

    A compreensão o atingiu como um golpe: Elfaren não era apenas um mentor. Ele era perigoso, capaz de atravessar os limites da moralidade em sua busca por conhecimento. Um ser movido por seus próprios interesses, interesses esses que se o garoto não fizesse mais parte, o próximo a ser aberto seria ele.

    Assustado, Gael recuou rapidamente, tropeçando em um banco antes de sair correndo pelo corredor. Sua respiração estava pesada, e o coração disparado. Ele não sabia para onde ir, apenas queria se distanciar e apagar as coisas que virá naquela sala.

    Quando finalmente parou, encontrou-se diante do salão principal de Elfaren no quinto andar. Empurrando a porta com mãos trêmulas, ele entrou.

    A cena que viu em seguida era ainda mais perturbadora que a anterior.  O tiefling estava preso em correntes, que deixavam seu corpo estirado no ar, marcado por cicatrizes recém-feitas que ainda escorriam sangue fresco, sangue esse que impregnava o chão abaixo do corpo. Ao redor dele, esqueletos animados realizavam tarefas meticulosas, aplicando pressão sobre feridas ou entoando cantos arcanos que mantinham o prisioneiro consciente. O som de sua respiração era fraca e gemidos ecoava pelo ambiente.

    Mas tudo ficou ainda mais perturbador quando um dos esqueletos que se mantinha distante se aproximou do grupo de torturadores e com um bisturi, começou o esfolamento do tiefling, com cortes precisos na altura dos pulsos, iria retirar toda a pele do tiefling, Elfaren queria a estudar. 

    Gael recuou um passo, os gritos do tiefling agora mais altos e a cada corte parecia que o menino podia ouvir a lâmina cortando a pele e a separando da carne e dos músculos, seus olhos arregalados de terror. Ele não sabia o que fazer ou como processar o que via. Antes que pudesse reagir, Elfaren apareceu ao fundo, sua presença fria e imponente como sempre, pareciam ainda mais aterradoras.

    — Gael — disse o lich calmamente, mas com certa surpresa pelo menino estar ali. — Este lugar não é para você.

    Sem dizer nada, o menino se virou e correu, seus passos ecoando pelos corredores da torre.

    ⸙« Sala Privativa, Guilda de Aventureiros: Conclave da Lâmina de Íris, Cega»⸙

    Em uma das salas privativas do prédio da guilda, iluminada por candelabros de ouro e decorada com tapeçarias intrincadas, o paladino Cedric Van Urram estava sentado em uma poltrona de couro. Diante dele, uma figura feminina permanecia oculta nas sombras. Sua voz era suave, mas carregada de autoridade e mistério.

    — O Vale é um lugar antigo, Cedric. Muito mais do que aparenta ser — disse ela, cruzando lentamente a sala. — Suas florestas escondem segredos que nem mesmo os deuses ousam revelar, assim como seu território submerso.

    Cedric franziu o cenho, inclinando-se para frente.

    — E o que devo esperar lá? Monstros? Magia? Ou algo pior?

    A mulher deu uma risada baixa, enigmática e, ao mesmo tempo, nostálgica.

    — Tudo isso e mais, Cedric. Sei que tudo que eu disser para que não vão lá será desperdício do meu tempo, mas lembre-se: o verdadeiro perigo não está nas criaturas que habitam o Vale, mas nas escolhas que você fará enquanto estiver lá.

    — Está se referindo ao lich? — questionou encarando a mulher.

    — Elfaren não é alguém com quem barganhar, ele já deixou Cega e os reinos próximos quietos há quase quinhentos anos, não é inteligente se meterem no caminho dele.

    As palavras eram verdadeiras, a última vez que Elfaren foi avistado fora do Vale foi há quinhentos anos, e desde então nunca mais se teve avistamentos dele. Ninguém sabe ao certo os motivos do lich, mas de uma coisa Cedric sabia, para até mesmo aquela mulher dar-lhe este aviso queria significar, que se a guilda ou Endael fossem para o Vale, não voltariam.

    — Agora, se me permite, iri retornar aos meus afazeres como diretora da academia — disse a mulher sumindo em uma névoa negra.

    ⸙«Torre de Elfaren, Vale»⸙

    Após o ocorrido e temendo que o garoto se se perca, Elfaren, comunicou Alvaeh para ir atrás dele. Com alguns minutos de busca pela torre toda, a drow acabou o encontrando escondido em uma sala vazia, encolhido em um canto. Seus olhos vermelhos de choro, e sua respiração entrecortada. A mulher ajoelhou-se ao seu lado, sua voz tranquila e tonalizada para soar o mais gentil possível.

    — O que aconteceu, pequeno?

    Gael hesitou antes de falar, sua voz tremendo.

    — O mestre… ele… ele é… ele é tão assustador. Eu vi o que ele faz… vi corpos… e o cara dos chifres…

    Alvaeh suspirou, passando a mão pelos cabelos de Gael em um gesto quase maternal.

    — Você é muito jovem para entender completamente o que o mestre faz, Gael. O mundo é cheio de crueldade, e nós, que vivemos nele, precisamos encontrar nosso lugar.

    Gael ergueu os olhos para ela, confuso e ainda assustado.

    — Mas… ele faz coisas ruins. Como isso pode ser certo?

    Alvaeh sorriu, mas havia tristeza em seus olhos.

    — O mal nem sempre é mal, e o bem nem sempre é o bem. São apenas pontos de vista. O que importa é o que escolhemos fazer com o que nos foi dado. E o que o mestre faz pode ser, sim, visto como atrocidade, mas ele tem seus motivos.

    Ela levantou-se, ajudando Gael a ficar de pé.

    — Venha. Vou levá-lo para um lugar onde possa descansar. Você precisa de tempo para compreender essas coisas, e logo o mestre irá lhe mostrar o que mostrou para todos nós.

    Enquanto saíam, Gael não conseguia afastar o peso do que havia visto. A torre, que antes parecia um novo lar, agora era um lugar cheio de coisas que sua mãe o ensinou que eram erradas. Seu novo refúgio se tornará um lugar de segredos obscuros e perigos ocultos. Como o pequeno irá lidar com tudo isso e mais como será a relação entre Gael e Elfaren.

    Continua…

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