Capítulo 11 – Forja
*Este capítulo faz parte da novel reescrita!
Um som se espalhava pelo espaço vazio, afiado como um eco de outro tempo. Cada batida reverberava na estrutura da forja abandonada, arrancando lascas do silêncio espesso que havia se acomodado ali por tanto tempo.
Era quase uma sinfonia. Hipnótica. Mórbida. Cheia de saudade e, quem diria, uma pitada de paixão.
A artífice solitária.
A última humana.
A última artesã.
Havia voltado para São Paulo sem motivo algum. Apenas a saudade, aquela que latejava em algum canto da mente, como um animal faminto arranhando a porta da consciência.
Pensou inicialmente em ir para sua antiga residência. A casa onde um dia se deitou sem medo, onde o mundo ainda fazia sentido, onde não existia essa maldita imortalidade que agora pesava sobre seus ombros.
Mas ao verbalizar essa ideia, algo raro aconteceu.
Gabriel tremeu.
Foi sutil. Um arrepio na ponta das asas, um franzir quase imperceptível na expressão normalmente inabalável.
Havia medo nos olhos dele, então Ana sequer perguntou o motivo. Se um anjo estava assim, talvez seja melhor não cutucar a origem do pavor.
Na verdade, já nem lembrava o caminho, então deixou pra lá.
Assim, veio parar ali.
Uma das velhas escolas de forja. Daquelas que eram enfiadas em becos e galpões esquecidos, onde os últimos românticos do metal batiam suas lâminas, tentando manter vivo um ofício que o tempo insistia em sufocar. Lugares de fogo e aço, ilhas de tradição cercadas por um oceano de modernidade descartável.
Antes do Grande Vazio, esses lugares eram vistos como relíquias excêntricas. Pontos turísticos para curiosos. Os ferreiros odiavam isso, claro. Queriam silêncio, não plateia. Mas o dinheiro falava mais alto, então suportavam os olhares e as câmeras apontadas enquanto martelavam metal incandescente.
Mas agora… agora só restava Ana e o silêncio.
Dessa vez, nem mesmo Gabriel estava realmente presente.
Bem, estava. Mas dormia.
O anjo havia adormecido logo após chegarem. Simplesmente se jogou sobre um balcão e fechou os olhos, como se o peso do mundo tivesse finalmente decidido esmagá-lo. Uma raridade.
Ana tentou entender.
Talvez fosse o frio do inverno, o calor do fogo, a letargia confortável do contraste entre os dois. Ou talvez… talvez fosse só a exaustão de existir.
Ela entendia bem.
O anjo havia hesitado antes de entrar na forja, analisando cada detalhe da estrutura em ruínas. Seus olhos, sempre distantes, percorreram as paredes marcadas pelo tempo, os móveis abandonados, os rastros de um passado esquecido.
E então, murmurou:
— Alguém realmente amou este lugar.
O tom dele era diferente. Não havia ironia, apenas respeito.
Ana passou os dedos pelo balcão coberto de poeira, sentindo a textura áspera da madeira ressequida.
— Sim… chega a ser palpável.
E era.
O amor impregnado naquele lugar era tão forte que parecia que, se prestasse atenção o suficiente, ainda poderia ouvir o riso abafado de um aprendiz errando um golpe, ou o resmungo do mestre ferreiro corrigindo a postura do aluno.
Fantasma nenhum ali, mas o peso do passado ficava agarrado às paredes.
Foi então que seus olhos avistaram um martelo, repousando sobre uma bigorna solitária.
Desgastado pelo tempo.
Marcas de um ofício exercido à exaustão.
Era grande demais para seus dedos, mas quando o pegou, algo se encaixou dentro dela. Um estalo silencioso no fundo da mente.
O peso era familiar. Confortável.
— Sim… já forjei antes, tenho certeza.
Não lembrava quando. Nem onde. Nem por quê.
Mas sabia.
Os fragmentos de conhecimento começaram a se encaixar sozinhos. Seu corpo, sempre à frente da mente, reconhecia os gestos, os movimentos, a lógica das ferramentas ao seu redor.
A diferença era que, antes, não se deu ao trabalho de praticar.
Quando tudo ainda funcionava, quando as máquinas ainda existiam, o trabalho braçal parecia um desperdício de tempo. Moldou o aço nas fábricas vazias, por forças que superavam qualquer ser humano. Então, ela adiou.
“Depois eu tento. Tenho tempo!”
O depois nunca chegou. Ou melhor, chegou.
Tornou-se o agora.
— Acho que ficaremos por um tempo, Gabriel. — Sim, sabia que ele já não ouvia, mas falou mesmo assim.
As palavras pairaram no ar, firmes como um decreto, um veredicto que ninguém contestaria.
Ana se sentou ao lado da bigorna central, pousando a mão sobre o metal frio. Empurrou de leve, apenas por curiosidade.
Grande demais. Maciça demais.
Imóvel, como uma pedra que testemunhou séculos sem nunca ceder ao tempo.
Não parecia uma ferramenta real, era desproporcional com as bigornas de verdade. Aparentava mais ser um enfeite rústico feito no tempo livre, ou um altar improvisado por algum mestre do metal, uma brincadeira entre ferreiros.
Mas gostou dela de imediato.
Havia algo na solidez daquela bigorna que a atraía. Uma sensação de permanência. Lembrava a si própria.
E Ana, sem cerimônia, acendeu a primeira chama.
Os primeiros dias na forjaria foram marcados por experimentação e frustração.
Molde o ferro, bata o ferro, aqueça o ferro, bata de novo.
A teoria parecia simples. Na prática, forjar uma espada ou mesmo moldar um pedaço de metal sem que ele se tornasse um insulto à profissão exigia mais do que paciência. Exigia respeito. Exigia entendimento.
Exigia algo que Ana não tinha, mas estava certa que logo iria ter: experiência.
Martelava por horas. Dias. Noites. Sem pausa, sem fadiga. Se tivesse um pingo de humanidade normal, sentiria as articulações gritarem, os músculos protestarem. Mas não — ela era uma aberração de resistência.
O ferro dobrou-se à sua vontade.
Ou ao menos, foi o que achou.
Não tinha ninguém para conversar. Saía apenas à noite para caçar algo — comer, um hábito que, infelizmente, não conseguia abandonar — e logo voltava para a forja, cada vez mais absorta no brilho escarlate das chamas.
Os dias começaram a se misturar, as noites viraram fumaça.
Logo, Ana dominava as chamas como uma maestrina conduzindo uma orquestra de elementos primordiais. Sua bigorna tornou-se um lar, e cada golpe do martelo era uma oração em busca da perfeição.
Todo material que tocava, cedia, transformando-se em algo novo, como oferendas silenciosas em seu nome.
Para ela, este era quase o poder de um deus.
— Sinto que já me senti assim antes.
Sim. Seu narcisismo segue um padrão.
— Ah, fica na sua, vai — grunhiu, revirando os olhos.
Ficarei. Afinal, não existo.
Com o tempo — semanas, meses, anos? Difícil dizer — suas mãos produziram de tudo. Espadas, machados, lanças. Ferramentas agrícolas. Não se desfazia de nada. Cada peça nascida de sua bigorna parecia carregar um fragmento de sua história.
Filhos? Não, isso era um exagero.
Mas não podia negar que havia apego.
O problema era que espaço não era infinito.
E, como a maioria dos problemas na vida de Ana, ela simplesmente ignorou esse detalhe até ser tarde demais.
Começou com algumas peças encostadas aqui e ali. Depois vieram pilhas. Montanhas. Um mar afiado de lâminas e pontas, impregnado pela insatisfação e autocrítica de sua criadora.
Primeiro se viam apenas pedaços de ferro batidos de qualquer jeito. Agora, algumas armas beiravam a perfeição. E, ainda assim, para a jovem imortal tudo aquilo era lixo. Ana se gabava por ser tão justa, não havia distinção entre as que não eram boas o suficiente.
Suspirando, girou sua última criação nas mãos, observando o brilho do fio recém-polido.
— Eu realmente não tenho talento… ei, você. O que acha disso?
Já fazia tanto tempo… Ele parecia um cadáver esquecido sobre a bancada, mas seu pé, balançando discretamente a cada batida do martelo, denunciava que ainda estava consciente.
Não esperou por uma resposta que sabia que não viria. Jogou a arma para trás e pegou um novo pedaço de metal.
Para sua surpresa, o anjo despertou.
— Não é ruim, mas não vale a pena dar uma segunda olhada.
Gabriel pegou a pequena lança no ar sem esforço e a avaliou por um segundo antes de descartá-la na pilha, sem cerimônia.
Ana parou o que estava fazendo, o encarando com lábios apertados.
— É, eu sei. Quando vai parar de palhaçada e vir me ajudar?
O anjo sorriu de forma zombeteira, como se aquele fosse um jogo que só ele entendia. Então, sem dizer nada, fechou os olhos novamente, afundando-se de volta em sua semi-letargia.
Ana suspirou e pegou o martelo.
O ritmo recomeçou.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟
Venha fazer parte dessa história! 💖
Apoia-se: https://apoia.se/eda
Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p
Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.