Índice de Capítulo

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    A pergunta já havia sido feita antes. Uma, duas, cinco vezes. E ainda assim, escapou dos lábios de Lucia como se fosse a primeira.

    — Você acha que ela vai morrer?

    O grande lobo negro ergueu a cabeça, o olhar perdido no breu da floresta, como se procurasse uma resposta entre as sombras. Mas sabia que não havia nenhuma.

    — Eu não sei.

    A mesma resposta que também já havia dado antes. A mesma entonação. O mesmo peso.

    Lucia apertou os punhos, sentindo as unhas fincarem na própria palma. A culpa rastejava sob sua pele como um parasita invisível. Ela sabia. Sabia que não era racional. Sabia que não havia nada a ser feito. Mas quando a razão alguma vez impediu alguém de se sentir um lixo?

    O dia tinha sido cruel. Garm se arrastara por aquela floresta por horas para alcançá-las, só para encontrar Eva contorcendo-se no chão, irreconhecível. A ruiva de cabelos ardentes, de olhos que desafiavam tempestades, não passava de um vulto contorcido sobre a terra úmida. Seu cabelo, antes uma fogueira viva, se desbotara num branco doentio, e seus olhos — Deus, aqueles olhos — estavam arregalados, vazios, recusando-se a fechar mesmo em meio à agonia.

    Seu corpo tremia. Mas não de frio. Não de dor.

    Era algo maior. Algo além da compreensão. Algo que atravessava Eva como uma lança invisível, transpassando sua essência e deixando apenas um eco oscilante.

    No entanto, não havia feridas. Nenhum hematoma. Nenhuma cicatriz. Seus ossos haviam sido reparados, sua pele, restaurada. Por sorte, ou pelo tipo de ironia que só o destino sabe conjurar, o que quer que tivesse lhe destruído por dentro também a curara. Mas ela não despertava. Dois dias haviam se passado desde que seus gritos cessaram, e a garota apenas existia em um limbo de inconsciência.

    Lucia observou a companheira mais uma vez antes de suspirar e se encolher contra o grande lobo, afundando o rosto em sua pelagem negra.  A sensação era familiar, reconfortante até. Mas também repleta de uma solidão pegajosa, o mesmo desespero silencioso que a acompanhou por tantos meses quando vagou sem rumo ao lado de Ana.

    Sem lar. Sem destino.

    Foi o que se tornaram. Outra vez.

    E, conforme as longas horas se passavam, tudo aquilo se tornava mais evidente. Patrulhas. Grupos de caça. Sempre havia mais. Como vermes se multiplicando na carniça de uma cidade morta. O peso invisível de Insídia os esmagando mesmo de longe, como se fantasmas sussurrassem maldições a todos que ousavam resistir.

    Garm pensara em reunir o que restava de seu bando de lobos, lançar-se num último ataque suicida, rasgar caminho até o coração da fortaleza e descobrir se havia algo — alguém — esperando por eles no outro lado. Mas sem respostas, sem garantias… valia mesmo a pena morrer por uma dúvida?

    O lobo inspirou fundo, seus olhos frios como lâminas de obsidiana. Então, sem hesitar, pegou um galho entre os dentes, atirou-o ao céu e observou a queda. Lucia seguiu seu olhar.

    O pedaço de madeira girou no ar antes de tocar o chão, apontando para o leste.

    Garm apenas balançou a cauda, começou a andar, e a jovem, levantando-se, o seguiu.

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    A floresta engolia os últimos vestígios de luz quando Lucia quebrou o silêncio, a voz hesitante, como se a própria ideia precisasse de permissão para existir.

    — Vamos acampar por aqui hoje?

    Garm não respondeu de imediato. Seus olhos varreram a clareira quase oculta, as sombras das árvores se esticando como dedos ossudos sobre a terra fria.

    — Podemos ir mais longe — murmurou, a voz arranhada pelo cansaço.

    Lucia desceu os ombros, contrariada.

    — Você precisa descansar.

    — Não. Ainda não.

    — Garm!

    Ela bateu os calcanhares contra o flanco do lobo, não com brutalidade, mas com o suficiente para exigir uma reação. O tranco quase a derrubou. E então, percebeu.

    Seu companheiro animal não chorava. Nem sabia se lobos podiam chorar. Mas a dor que viu ali, aquela tristeza espessa e imóvel, pendurada nos olhos da criatura como um fardo invisível, golpeou seu peito com uma força que a fez sentir-se ridícula. Não era uma tristeza que se debatia, que se fazia ouvir em gritos ou soluços. Era o tipo de luto que apenas existia, silencioso e implacável, como o peso de uma tempestade que nunca se desfaz.

    “Eu estou sem rumo?”

    A pergunta surgiu, seca e irônica, como se zombasse dela. Não, ela não estava sem rumo. Quem estava sem rumo era ele. Sempre esteve.

    Irmãos caídos. Bando massacrado. Um nome que antes significava algo, agora ecoando num vazio onde ninguém mais respondia. E agora, talvez, o último fragmento da única família que lhe restava também estivesse se esvaindo.

    Garm estava completamente sozinho.

    E o que poderia ser mais cruel do que isso?

    Lucia engoliu em seco. O nó na garganta apertou, e quando percebeu, seus olhos já ardiam. Ela sequer sabia que estava à beira das lágrimas até aquele momento. Não que chorasse — o orgulho não permitia tanto — mas a emoção queimava como um carvão incandescente sob sua pele.

    Então, sem pensar, saltou do lombo do lobo e se aproximou. Ele não recuou.

    Lucia envolveu o focinho dele num abraço apertado, a respiração dele pesada e quente em sua clavícula. A madeira ao redor estalava sob o frio da noite, o vento murmurava entre as árvores, mas tudo isso parecia distante. Só restavam os dois. Dois corpos tentando fingir que ainda eram inteiros.

    — Eu prometo nunca mais me separar de você, tá?

    Garm aceitou o abraço como um homem sedento aceita água no deserto. Seu peito subia e descia devagar, os músculos antes tensos se desfazendo em um raro momento de entrega, apesar de ainda manter o cuidado para não desequilibrar o corpo de Eva. Seu olhar mudou. Havia um brilho ali, fraco, mas real. Quando abriu os olhos, parecia prestes a dizer algo.

    Por um instante, a jovem manipuladora acreditou que ele diria algo. Que enfim quebraria a barreira que mal notou que existia. Mas Garm apenas desviou o olhar para um ponto qualquer no escuro.

    — Eu também… nunca mais vou me separar da minha alcateia. Nunca mais deixarei que alguém a separe.

    Foi um sussurro. Mas vindo dele, era quase um rugido.

    Ficaram ali por um tempo que não se podia medir. Atentos, claro — porque até o menor dos esquilos poderia ser um mensageiro de algum desastre iminente. Mas, por um instante, apenas um, permitiram-se respirar.

    E então, veio o som.

    Engasgado. Úmido. Como se o próprio ar lutasse para entrar e sair de pulmões que não o queriam mais.

    Lucia girou nos calcanhares, o coração martelando contra as costelas.

    Eva.

    Seus lábios se entreabriram em um gesto trêmulo, mas o que escapou não foi um sussurro.

    Foi uma tosse. Mas não um som comum.

    Foi algo áspero, rasgado. Seu corpo se arqueou, frágil e desprotegido, cada espasmo parecendo um golpe invisível. E então, com um último solavanco, algo brilhou sob a luz escassa.

    Um borrifo vermelho. Sangue.

    Primeiro, em pequenas gotículas, sujando a pele pálida. Depois, uma linha fina, escorrendo dos lábios partidos, deslizando até o queixo, tingindo a gola esfarrapada de sua roupa com um rubro perverso.

    O momento de paz se desfez como vidro estilhaçado.

    A hora de uma nova vida tinha chegado, isso era certo. Mas antes precisavam hora encontrar um maldito médico.

    Urgente.

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