Índice de Capítulo

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    O Collectio cortava o céu como uma cicatriz negra, mas agora, relutante, descia ao nível do mar, onde a vastidão sem fronteiras transformava-se em um mundo espesso e pesado. Uma jaula líquida. 

    O trajeto foi longo e implacável. Quatro longas semanas nas quais serpentearam a borda da América do Sul, subindo até a América Central, encarando apenas o vazio das nuvens.

    Depois, mais sete dias se arrastaram até que, finalmente, avistaram um sinal de civilização: um navio. Uma fragata do modelo Galeão de Saint-Malo, uma embarcação robusta, de casco cinzento e madeira reforçada, projetada para suportar não só as intempéries do oceano, mas também o peso de cinquenta almas a bordo. 

    Em seus três mastros, velas brancas, mas remendadas, flamulavam contra a brisa salgada, e uma fileira de pequenos canhões podia ser vista ao longo do casco. Não estavam em posição de disparo. Não Ainda.

    Ana não gostava do mar. Nunca gostara. O ar, pelo menos, era uma promessa; o mar, um abismo. Claro, não se importava com praias, até tinha certo apreço por elas, mas ficar no meio da imensidão azul? Isso era uma merda.

    No novo mundo, tal sentimento era ainda pior. Se olhasse com atenção o suficiente, sem sequer precisar aprimorar a visão com mana, poderia notar enormes vultos deslizando sob a superfície, sombras tão vastas que não podiam ser apenas ilusão. Se fossem baleias, já seria ruim. Tais seres majestosos a deixavam inquieta. No entanto, sabia que era algo ainda pior.

    A água encobria segredos, e Ana desprezava segredos que não podia quebrar.

    Mas não havia escolha. O caminho era este, e estavam perto.

    — É a primeira vez que sai do Brasil? — A pergunta veio casual, mas havia algo no tom de Ana, algo que não combinava com a tranquilidade de sua postura. Uma mão firme no leme, a outra relaxada ao lado do corpo. Seu olhar fixo na linha do horizonte. Não olhou para o homem ao seu lado, nem precisava.

    Alex não respondeu de imediato. Suas mãos semi-metálicas apoiavam-se em seu cinturão, onde repousavam duas pistolas de design estranho, moldadas para aguentar tanto sua temperatura anormal quanto sua força bruta. Sua presença era quente, literalmente fumegante, enquanto ponderava a questão.

    — Depende. Teve a vez que fui para Aurórea, mas fiquei o tempo todo no meu vilarejo, então não conta — sua voz era séria, mas não rígida. Um resquício de memória atravessou seus olhos. — Ah. E teve aquela vez em Leviathan… mas também não saí da cidade da baleia, apesar de termos dado a volta ao mundo.

    — Ótimo, ótimo. Então é uma boa primeira viagem. O mar caribenho é lindo.

    Alex bufou, desviando o olhar. Não duvidava exatamente das palavras da capitã. Havia uma verdade oculta na forma como ela falava, como se aquele pedaço de oceano estivesse gravado em sua mente de forma quase íntima. Mas era absurdo. Quando diabos Ana teria estado ali? Com nove anos? E ainda assim, lembrava de detalhes como se tivesse acabado de partir? Nem ferrando.

    — Tô falando sério — repetiu a mulher.

    O Caribe, na memória dela, não era apenas um local. Era um instante congelado no tempo. O azul do mar era mais profundo do que em qualquer outro canto do mundo. As ilhas espalhadas pareciam pinceladas de verde sobre uma tela infinita. Os ventos eram cálidos, cheiravam a especiarias, pólvora e promessas vazias, mesmo quando a humanidade havia sumido.

    Apesar de nunca ter visto pessoalmente em seu estado populado, em suas visitas solitárias sempre imaginara o local com música. Não queria admitir, mas torcia para ser assim agora que a humanidade voltara a existir. Estava animada para chegar.

    — Tá, Ana. De qualquer forma, a gente tá chegando perto deles. Você vai mesmo fazer isso?

    A ex rainha se demorou na resposta, sentindo a brisa esfriar contra seu rosto. O galeão também já os havia avistado. Mesmo menores, eram lentos, e a distância diminuía rapidamente. Com isso em mente, a decisão deles veio de imediato: uma bandeira branca foi erguida. 

    Não uma bandeira qualquer. Era anormalmente longa, feita de um tecido fino que ondulava sem resistência contra o vento. Não tremulava apenas como um sinal de paz, mas como uma confissão. 

    Talvez não quisessem ser confundidos com piratas. Talvez apenas desejassem evitar um conflito desnecessário. Mas Ana sabia a real razão de sua presença ali.

    Era medo.

    As grandes velas negras do Collectio eram um presságio por si só, mas agora carregavam algo novo: um estandarte bordado à mão, marcado pela imagem de uma máscara de chifres rachados. O símbolo de Insídia — ou quase isso. A marca de um reino caído e provavelmente desconhecido, mas que, contra toda lógica, ainda respirava nos corações de seus órfãos.

    Ana sorriu de forma quase imperceptível.

    — Sim — sua voz foi um murmúrio carregado de certeza. — A primeira coisa que fizeram foi se render. São pessoas fracas.

    — Não, são só pessoas normais. Se bobear, comerciantes.

    — Tá aí mais um motivo pra gente pegar tudo que eles têm. Espero que sejam ricos.

    Alex deslizou uma das mãos metálicas pelo rosto de forma resignada, os dedos inquietos massageando suas feições sutilmente deformadas.

    — A porcaria do depósito não estava abarrotada de suprimentos? — resmungou, sem mudar a postura.

    — Sim. — A capitã riu, inclinando-se contra o leme. Não uma risada alta ou debochada, mas algo carregado de um entendimento cruel. Girou o ombro, estalando as articulações antes de continuar, como se tudo isso fosse algo que não precisava de pressa. — Pra um ano? Talvez uns dez meses? Se liga, Alex… Estamos na nossa primeira viagem e já se foram quase dois meses. Essa porra de mundo tá grande demais.

    Infelizmente, o homem entendia que não eram palavras vazias. Podia ignorar a ironia dela, mas não os números. A realidade se impunha sem precisar de ameaças. Suprimentos sempre pareciam durar menos do que deveriam. Ainda mais quando se navegava pelo desconhecido, sem margem para erro.

    Suspiros escaparam de seus lábios como vapor. 

    — Ser fraco significa perder tudo. 

    — Quê?

    — Nada. Vamos terminar isso logo. — O homem sentia pena do que estava prestes a acontecer. Mas culpa? Isso já não existia em seu olhar.

    — Lembra do que a gente conversou. Sem gastar bala até termos um estoque decente. E sem usar os canhões. Quero o barco intacto.

    — Você gosta de complicar as coisas…

    — Então não consegue? — A voz de Ana ainda trazia aquele tom preguiçoso, casual, mas os olhos permaneciam fixos nele.

    — Consigo.

    Sem mais conversa, Alex virou-se e começou a caminhar pelo convés. Seus passos eram pesados, controlados. Parou no centro da embarcação e ergueu a voz, firme o suficiente para ser ouvido, mas sem romper a barreira do outro navio.

    — Macta.

    Foi uma palavra só. Curta. Bruta. Sem espaço para dúvidas.

    Diferente de um grito de guerra ou um anúncio de batalha, Macta era um comando seco, frio como lâmina contra pele. Em latim, significava “sacrificar”, “exterminar”, “glorificar pelo sangue”. Não havia nobreza na escolha do termo, nem metáforas poéticas sobre a noite se fechando ou o destino inevitável. Era um pedido simples.

    Um chamado para a matança.

    O Collectio respondeu como um predador atiçado. Espadas deslizaram em couro e aço, lâminas saíram de bainhas como presas descobrindo o ar pela primeira vez. Facas passaram de mão em mão, porretes foram testados contra as palmas calejadas de seus donos, cordas foram esticadas como laços prestes a se fechar. Movimentos coordenados, ensaiados, precisos. Sejam mascarados ou corrompidos,  não precisavam de mais explicações.

    Não era um ataque impulsivo. Não era uma explosão de fúria cega.

    Era um ato cirúrgico, calculado, implacável.

    Arriaram parte das velas, diminuindo a velocidade para que a inércia não levasse o Collectio além do necessário. O ajuste era mínimo, mas suficiente. Por mais que Ana pudesse controlar a embarcação com seu toque sutil nos céus, ali a resistência era outra, não deslizavam com a mesma leveza; a água não era sua aliada.

    Mas isso não importava. A aproximação havia sido perfeita.

    O casco rangia ao se alinhar lado a lado com a fragata adversária. Do outro lado, marujos se agitavam, inseguros, confusos. Mãos trêmulas agarravam armas de ferro gasto e facas de fio duvidoso — ferramentas simples, feitas mais para consolo do que para combate. Nenhum deles gritou ordens de imediato. Ainda tentavam entender o que estava acontecendo.

    Mal sabiam que não haveria tempo para isso. Os primeiros joelhos atingiram a madeira com baques surdos, um por um. Não foi medo. Não foi hesitação. Foi algo mais cruel. Um roubo invisível, arrancando-lhes a força antes que percebessem que já haviam perdido.

    O massacre havia começado antes mesmo do primeiro golpe ser desferido.
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