Capítulo 208 - Brinde Sem Glória
A sala não tinha porta, nem nome, e a guerra lá fora fazia mais barulho do que o bom senso permitia.
Era difícil dizer quem estava vencendo — provavelmente ninguém. Mas naquele canto do mundo, numa vila sem nome entre ruínas ainda mornas, sete pessoas se espremiam numa taverna improvisada feita com restos de uma igreja, três portas roubadas ainda com suas fechaduras e um balcão montado sobre alguns caixões ainda não utilizados.
Chamava-se “Coração Rachado” — que de romântico só tinha o nome, pois sabe-se lá de quem era o líquido carmesim que foi utilizado para escrever tais palavras nas paredes de pedra suada. O teto era baixo o suficiente para forçar respeito, e o cheiro… bom, o cheiro era uma mistura de mofo, sangue seco e fermentação não supervisionada.
Havia manchas no chão. Também nas roupas. Uma fogueira tremulava onde antes ficava o púlpito, e a única coisa intacta era a recém montada prateleira de bebidas. Por um desses milagres da vida — ou covardia seletiva —, nenhum dos lados da guerra ousara explodir este local.
Na verdade, não só não explodiram, mas também a frequentavam. Era o destino de soldados de ambos os lados que precisavam de um descanso.
No entanto, apenas sete pessoas estavam ali no momento, e sete canecas foram erguidas ao mesmo tempo. “Cada um com seu copo” — a única regra que haviam concordado até então.
Algumas destas canecas levavam álcool, outras apenas água de poço fervida por precaução. Uma estava vazia, mas Olmo de alguma forma se fazia presente de qualquer jeito, então ninguém comentou sobre isso.
Madame — que ainda não se chamava assim — observava os outros com olhos atentos, uma sobrancelha arqueada em alerta cético. Havia sobrevivido ao cerco, à revolta, à quase execução e, pior de tudo, às reuniões intermináveis com os donos das outras tavernas. Estava exausta. Mas também… estranhamente animada.
Pedro, “O Constante”, em sua voz rouca, foi o primeiro a falar.
— Bom, vamos ser sinceros, isso aqui não vai durar. Precisamos urgentemente nos organizar.
O ex-contrabandista estava com um olho inchado e o braço engessado com tiras de couro. Mesmo assim, parecia mais lúcido do que todos os outros juntos.
— ¿Organizar qué, exatamente? — resmungou uma mulher de longas madeixas negras e um cigarro perpetuamente aceso no canto da boca. Chamava-se Catarina, embora todos a conhecessem como “Dama de Ferro e Cachaça”. — El mundo se está yendo al carajo. Essa vila era mi rota de descanso. Ahora es solo otro buraco lleno de muertos empilhados.
— Justamente por isso. Se a gente não firma esse espaço de neutralidade, ninguém mais vai sobreviver à próxima década — respondeu Veta, limpando um pouco de fuligem do rosto com um pano que provavelmente era de outra pessoa. Apesar de sua aparência feminina e movimentos que exalavam sensualidade, a voz da intrigante mulher saia grossa como de um viril guerreiro. — E não tô falando de paz. Paz é ilusão. Tô falando de trégua. Um lugar onde ninguém precisa se explicar antes de beber.
— E a gente chama isso de… quê? “Refúgio dos bêbados”? — provocou Basílio, ainda deitado no chão, com o manto sobre os olhos. — Isso aqui nem teto direito tem.
Mal terminou de falar, voltou a adormecer. Daí veio o apelido, “Ronco Largo”, o que muitos achavam adequado até demais. No entanto, “Pacificador do Norte” era o mais utilizado normalmente, já que — com seu corpo anormalmente grande — resolvia a briga antes mesmo delas começarem. Talvez porque todo mundo tinha medo de acordá-lo. Talvez por respeito. Ou ambos.
— “O Refúgio” não é tão ruim — comentou o Ferreiro, entre goles curtos. Todos o olharam depois da sugestão inesperada. Não era um homem de muitas palavras, apenas de marteladas e de um hidromel estranhamente bom, apesar do leve gosto de ferrugem.
Muitos diziam que o brutamontes já tinha matado doze homens apenas com sua caneca, e poucos eram os que duvidavam.
— Não. Nome depois. Primeiro a estrutura — disse Pedro. — A gente cria um código. Simples. Na verdade, é só manter o que sempre defendemos, ninguém briga nas tavernas. Quem quebra a regra, não volta. E quem tentar usar a gente pra fazer guerra, perde tudo. Simples.
— Ingênuo — rosnou Catarina, soprando fumaça para o teto. — Isso funciona hasta que el primer desgraçado não respeitar. ¿Y entonces? ¿Cómo impones respeito? ¿Con palabras? Não há lealdade entre canalhas.
O clima estava ficando mais quente que a bebida. Mas ninguém levantou realmente a voz. Ainda não. Era uma conversa entre sobreviventes — gente que tinha mais cicatriz que saudade, e mais sarcasmo do que esperança.
Foi então que a leitora novamente falou.
— Com pessoas pagas pra isso, é claro… — Foi apenas um sussurro, mas todos focaram em madame, alguns com ceticismo, outros com interesse. — Mercenários.
— Mercenários? — repetiu Veta “Duas-Vozes”. — Você quer resolver o problema da confiança… comprando gente?
— Exatamente. — Madame girava sua caneca devagar. — Confiança é volátil. Mas contratos, promessas de pagamento e medo… esses são mais confiáveis do que boa vontade.
Pedro coçou o queixo, pensando. Basílio resmungou algo entre um ronco e um “tanto faz”. Ferreiro não falou nada, mas assentiu com um leve erguer de sobrancelhas. E Olmo, “O Ausente” — bem, o copo dele ainda estava vazio, mas podiam jurar que ele teria aprovado.
— Mercenários então — concluiu Pedro. — Com regras. Com neutralidade. Com pagamento justo.
— Y sin bandera, ¿eh? — acrescentou Catarina. — Si tiene que tener un símbolo… que seja la de madeira del barril. No quemada, se possível.
— E quem comanda? — perguntou Veta, ainda relutante.
— Ninguém — respondeu Madame. — Ou todos. Mas nunca ao mesmo tempo. Nenhuma mesa, nenhum trono, nenhuma maldita reunião de emergência. Só um acordo. Um código. Tácito, se puder ser. Escrito, se for preciso. Enquanto houver uma taverna aberta, haverá um lugar onde a guerra não entra, onde o abrigo é garantido, e onde se pode pedir um copo e ouvir uma história sem morrer por isso.
Silêncio. Não pelo impacto — estavam bêbados demais para isso. Mas porque todos ali, por mais cínicos que fossem, entenderam exatamente o que ela estava oferecendo.
Não poder. Nem glória. Mas permanência.
— E se der errado?
A voz saiu de lugar nenhum, mas era uma pergunta compartilhada por todos.
— Vai dar — respondeu novamente Madame. — Mas ainda assim vai valer a pena.
E então, sem qualquer voto formal, sem assinatura ou cerimônia, Ferreiro estendeu o copo. Basílio, se levantando com um suspiro, fez o mesmo. Os outros seguiram. Um por um.
Sete copos se encontraram no centro da mesa, dessa vez brindando ao futuro.
Um brinde silencioso. O tipo de silêncio que só quem perdeu tudo é capaz de respeitar.
E assim, naquele porão malcheiroso, entre ferimentos abertos, paredes improvisadas e uma guerra que não esperava por ninguém, algo novo começou.
— Pera… só tem sete taverneiros? — perguntou Ana, franzindo a testa.
— Sete no núcleo — corrigiu Madame, como se dissesse algo óbvio. — Os originais. Ou pelo menos os que sobraram. Hoje em dia, no papel, somos mais. Uns treze, talvez quinze. Vai depender de quem você perguntar, e do quanto ele já bebeu.
Ana inclinou o rosto, desconfiada. Alex apenas resmungou, insatisfeito.
— Então realmente não tem uma hierarquia?
— Não somos uma guilda. Nem um conselho. É mais como uma… rede descentralizada. Uma confederação de gente teimosa que concordou em discordar de quase tudo, menos de três ou quatro princípios. E, claro, de beber bem.
— E onde estão os outros hoje em dia? — Alex, talvez por cansaço, resolveu participar.
— Um sumiu. Dois a gente acha que morreram. De resto, não tenho notícias frequentes. Nos separamos entre continentes, só não imaginávamos que o mundo seria tão… grande.
Ana riu pela explicação ruim e sacou do bolso a coroa dourada — pequena, gasta, e carregada de mais histórias do que ela própria sabia. Girou-a entre os dedos antes de lançar o olhar de volta.
— E essa palhaçada aqui da realeza mercenária? Como começou?
— Isso, jovem capitã, fica pra outro dia.
Haviam chegado. Ali, riscado diretamente no metal das paredes em letras pouco destacadas, lia-se “A Doca Enforcada”. Madame, sem pressa, empurrou a porta rangente.
Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟
Venha fazer parte dessa história! 💖
Apoia-se: https://apoia.se/eda
Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p
Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana
Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.