Capítulo 217 - Olhos Mortos
— Que droga é essa…?
A pergunta escapou como uma tosse involuntária — mais pensamento em voz alta do que comando. Niala, do leme, ergueu uma de suas finas sobrancelhas.
— O quê?
Ana não respondeu. Entendeu, no mesmo instante, que Niala não via.
Se visse a massa negra ondulando ao redor dos três navios inimigos, como raízes se enroscando num cadáver, não teria perguntado. Teria gritado. Teria vomitado. Talvez atacado, se fosse um dia particularmente enérgico. Mas não uma pergunta idiota daquelas.
Os pelos de seu braço se eriçaram, como se tivessem sido puxados por dentro. O ar cheirava estranho. O gosto da boca era… cobre? Cinzas? Não, algo mais doce. Algo podre, entre ferrugem e fruta passada.
As mãos começaram a formigar. Um formigamento ansioso, invasivo, como se a própria carne quisesse fugir dos ossos.
— Mana reversa… — murmurou.
Era aquilo. Não havia dúvida. Aquelas linhas no mar… era como se pudessem tocá-la sem permissão. Como se já estivessem nela.
O homem parado no leme do navio central — com o pescoço caído e o olhar desgovernado de um monarca sem trono — parecia fitá-la. De verdade. Não com provocação, raiva ou qualquer sede de sangue, mas com algo mais simples: identificação.
Ana prendeu o fôlego. Fechou os olhos por um instante, refletindo.
Via apenas o vazio atrás das pálpebras, até que sua mente preencheu as lacunas. Oito pares de olhos em meio ao nada, e sim, tais olhos mortos a sua frente com certeza estavam ali.
Sombra. Aquilo era uma sombra.
Foi inesperado, mas apenas grunhiu e cuspiu para o lado. Adicionou o azar a longa nota mental de coisas fodidas que aconteciam em sua vida, mas não conseguiu focar nisso. Não agora.
A adrenalina se infiltrava onde o raciocínio costumava morar. Tudo estava escorregando. A realidade, a lógica, o controle. Ela ainda era Ana — mas um pouco menos do que havia sido há dois minutos.
Soltou o ar como quem cospe veneno. Apertou o punho. E ainda sem conseguir se controlar adequadamente, riu.
— Tá. Talvez realmente sejam fantasmas.
A frase saiu entre os dentes, como quem admite algo estúpido após resistir demais. Seu rosto se contorceu um pouco mais enquanto tentava manter a postura. Bateu nas próprias bochechas, reafirmou o peso nos pés, liberou a tensão dos músculos. Contou até dois. O impacto era agora.
Segurou firme a corda lateral e gritou o mais alto que pôde.
— Niala! De frente!
A aracnídea nem discutiu. Com um giro elegante de pernas que não pertenciam a nenhuma espécie conhecida por Deus, jogou o Collectio diretamente em direção ao pequeno navio mais a esquerda, o mais próximo. Aquele que devia estar ao alcance.
E ainda assim… falhou.
Não ela. O navio adversário simplesmente desviou. Só que não como navios desviam.
Não houve vela inflando, nem ângulo de leme ajustado. O navio simplesmente… decidiu. Foi como se o casco tivesse decidido, por conta própria, que não queria morrer, então deslizou de forma limpa para o lado.
O Collectio passou reto, e a água salgada espirrou de volta com escárnio.
Ana e Niala se entreolharam. Nada foi dito, mas os olhos conversaram. Seria aquele um navio semelhante ao próprio em que estavam? A embarcação era pequena demais, simples demais, discreta demais para esconder qualquer tecnologia de mana. Nenhuma runa, nenhum reforço.
Mas ainda assim, aconteceu, e enquanto pensavam em como prosseguir, ouviram o grito vindo de longe — uma voz masculina, rouca, empolgada demais para o contexto.
— Belíssimo, marujos! Vejam só os britânicos! Passando vergonha de novo!
A voz cortou o ar como champanhe sendo estourado num funeral. Os três sloops passaram a girar em torno do Collectio, ágeis demais para o tamanho. Um balé doentio, desconfortável de assistir. Um espetáculo sem música, mas com ritmo.
Ana ainda estava pendurada na corda lateral quando decidiu que já era o suficiente. Soltou a amarra, caiu como uma âncora impaciente e rolou sobre o convés, sentindo cada tábua sob as costas. Levantou com um impulso só, puxando ar e irritação ao mesmo tempo. A mão já estava no coldre, a próxima ordem na garganta.
— Roda os canhões! Giro total! Sem hesitação! Vamos afundar esses malditos ou morrer afogados tentando!
A resposta veio como uma tempestade de chumbo.
Os disparos do Collectio cortaram o ar com um rugido gutural. Trinta projéteis de uma vez, cuspidos por trinta canhões principais. Mas logo a resposta veio: dezenas de tiros menores, vindos das embarcações inimigas, que pareciam cuspir fogo com frequência desconfortavelmente alta. Cada sloop carregava seis canhões — pequenos, sim, mas com cadência surreal.
As esferas de ferro não apenas atacavam. Voltavam. Voavam como se puxadas de volta, recarregadas com uma pontualidade que beirava o sobrenatural. Os tiros pareciam ignorar a lógica náutica. Alguns deles acertaram os flancos do Collectio, rachando madeira, entortando metais. Não o suficiente para quebrar o navio — que era, afinal, um devorador de mana com dentes mais resistentes que a maioria dos portos —, mas o suficiente para marcar.
— Mantenha a posição! A segunda leva vem agora! — O grito de Ana surgiu no exato momento em que um dos projéteis inimigos entrou direto pela portinhola de um dos grandes canhões, destruindo parte da artilharia.
Os mascarados se moviam em silêncio, operários de um teatro de guerra. Já estavam ao lado, reabastecendo os tubos, suando, rangendo os dentes de pedra, contando segundos como se a vida estivesse neles. Estava mesmo.
E do outro lado… o caos com voz.
— Esquerda, Mary! E que alguém amarre aquele velame, antes que minha avó levante da cova pra fazê-lo!
Calico Jack, no leme, vibrava. Ria. Gritava. Aplaudia com uma mão e apontava com a outra.
— Eu vou amarrar, mas se cair de novo, a culpa vai ser sua, Jack! — disse o capitão, ou melhor, Mary, com uma voz fina, gaguejante, e cheia de um desespero mal encenado.
— Não enche, Mary — respondeu Anne, numa voz quase rouca, mas também saída da garganta do próprio Jack, com um sotaque que alternava entre galego e encenação de bordel. — O importante é que eles vejam classe. Não estamos enfrentando qualquer um, estamos enfrentando os fodidos do Império!
O homem voltou a gargalhar com a frase da companheira. Tanto riu que não escutou o pequeno sussurro de “sobe” que foi dito no navio de seus inimigos.
— Agora! Solta!
A voz de Ana cortou a maresia como uma lâmina embebida em urgência. O Collectio uivou. Não literalmente, claro, mas foi quase isso. A madeira chiou, o metal rugiu, e o navio, que havia levantado voo um segundo antes, desabou sobre o segundo sloop com a delicadeza de um juiz de execução.
Lá de cima, Ana encarava fixamente os três navios girando abaixo, ainda se organizando após o segundo disparo — aquele que, diferente do primeiro, não errou. Pegou o sloop que havia escapado em cheio, e o navio explodiu num estouro surdo, apesar de apenas metade dos destroços terem afundado.
Agora, com a ousada descida, outro navio do inimigo estourou como uma noz podre, lançando destroços por todo lado. Não houve grito, apenas um estalo seco e água sendo empurrada para o céu.
— Um a menos — Ana murmurou, limpando a bruma do rosto com as costas da mão, sem pressa.
Infelizmente não era o navio onde seus únicos três inimigos a observavam com ódio crescente. Jack não gritou, só, com pupilas anormalmente dilatadas, virou para o lado.
— Mary…? — A voz saiu estranha, trêmula, quase real.
— Eu tô bem. Para de chorar, Jack.
— Mas… estamos perdendo? Desde quando os britânicos têm navios sapo?
— Você é um idiota. Deve ter sido só uma onda. Alta. Muito alta. Agora para de frescura e manda esses malditos recarregar os canhões.
— Mas… meus piratas… droga! — O homem cuspiu e torceu a boca. — Todos aos postos! Pelo rum, pela liberdade e por nossos companheiros mortos!
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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