Capítulo 219 - Acorde, Ferramenta
As vozes eram abafadas, mas não distantes. Pareciam vindas de todos os cantos ao mesmo tempo, como se o próprio lugar as quisesse ouvir. Duas figuras — entidades, se preferir um termo mais dramático — debatiam com a paciência de quem sabe que está preso a um processo que exige cuidado, mas que, no fundo, preferia estar em qualquer outro lugar.
— O recipiente não é de boa qualidade.
A constatação não veio com raiva nem julgamento. Era só isso: uma observação. Como quem comenta que o leite está para vencer. Uma verdade incômoda, mas irrefutável.
— É jovem. Ainda vai ter tempo pra crescer — rebateu a outra voz, mais arrastada, como se mastigasse a esperança com uma dentição cansada.
— E as inconsistências também vão.
— Por isso precisaremos ajudá-la mais do que à ferramenta anterior.
A palavra “ajudá-la” foi dita com aquele tom dúbio que poderia muito bem significar “manipular”, “empurrar ladeira abaixo” ou “usar até quebrar”. A escolha da palavra certa dependia mais da moral de quem ouvia do que da intenção de quem falava.
Um som cortou a conversa, mais físico. Carne sendo rasgada. Daquele tipo que faz algo no estômago protestar de forma involuntária. Veio seguido de um suspiro longo, cansado — quase entediado. Não de quem sofre. Mas de quem trabalha.
— Não me fale mais daquela mulher complicada. Fico com dor de cabeça só de lembrar.
— Dor de cabeça é pouco…
— Bom, que seja. O único problema é ter perdido a chave… facilitaria muito as coisas.
A frase ficou no ar por um tempo.
— A Criadora não nos faria outra?
Houve uma risada curta, seca, que soou mais como uma tosse desdenhosa.
— Ha! Se tivessem quebrado a chave, a gente até podia chorar um pouco. Inventar um luto simbólico, fazer um discurso. Mas perder? Assim, na merda do acaso? Isso é só burrice mesmo.
— A inconsistência podia ter simplesmente ignorado aquele maldito pedaço de metal… foi um azar.
— Sim. Azar demais.
Dava para ouvir o desdém nas entrelinhas. Como se o “azar” em questão fosse apenas uma desculpa polida.
Do lado da mesa — se é que aquele bloco branco podia ser chamado de mesa — um pedaço largo de carne foi removido. Sem qualquer ritual ou anestesia verbal, o pedaço foi jogado numa bacia de metal, onde outros pedaços semelhantes já se acumulavam. Vapor e sangue subiam em sincronia. O ambiente fedia com a vida interrompida.
A figura disforme que operava não disse nada. Seus olhos — ou o que quer que fossem aquelas cavidades — não se mexeram. Recebeu, sem pedir, um novo amontoado de pequenas peças. Engrenagens, fios, algo entre tecnologia ultrapassada e bruxaria mal compreendida.
— Vai caber?
— Vai dar certo.
— Isso não foi o que perguntei.
— Eu sei.
Silêncio. E então, mais carne sendo dilacerada.
— Enfim, esse núcleo não vai se comparar ao antigo, mas só precisamos ir com calma…
A frase foi dita sem pressa, como quem aceita uma decepção antes mesmo dela acontecer. Os dedos da entidade moveram-se com fluidez, não como artistas nem como cirurgiões, mas como técnicos consertando mais um aparelho defeituoso de uma linha de produção infinita. Com toques silenciosos, o espaço ao redor mergulhou numa escuridão absoluta, onde nem sombras ousavam se formar. Tudo cedeu. A luz, o tempo, qualquer lógica que o cérebro humano ainda tentasse aplicar ao cenário.
No vazio, símbolos começaram a dançar.
Não dançar de forma graciosa. Não havia ritmo nem harmonia. As peças e as linguagens surgiram como um ataque: abruptas, secas, afiadas. Entravam em Jasmim por meio do ferimento aberto em seu estômago, como se fossem reclamando espaço — invadindo, mais do que integrando. O corpo dela não resistia. Aceitava tudo com a mesma passividade de um corpo recém-afogado.
— Quer dar o seu toque pessoal à substituta? — perguntou a segunda entidade, com um tom que poderia ser convite ou sarcasmo leve, difícil dizer.
A resposta veio sem hesitação, mas com uma honestidade que parecia ainda mais desconfortável.
— Na verdade, não. Prefiro esperar que sincronize por completo antes de colocar minha esperança nela.
— Pragmático demais…
— Realista.
— Chato.
— Vivo.
A troca cessou. O essencial havia sido dito. E ninguém ali era sentimental o bastante para insistir em mais.
— É o suficiente. Injetar.
E assim foi feito.
A luz retornou. Não com glória, nem com elegância — apenas retornou. Uma brancura crua, clínica, quase desrespeitosa. As figuras sumiram como se nunca tivessem estado ali. O cenário permaneceu igual, mas não parecia o mesmo.
No centro, o corpo de Jasmim começou a se mexer. Espasmos. Convulsões. Não como alguém lutando pela vida — mas como algo sendo reiniciado. Os movimentos não tinham a aleatoriedade da dor, mas o padrão incômodo de uma máquina que está aprendendo a funcionar.
A narrativa que seguiu não podia ser chamada de narrativa. Era ruído. Fragmentos. Sentidos que vinham e iam, sobrepostos sem coesão.
Um eco de passos. Uma gota estourando em um chão inexistente. Sussurros. Gritos abafados. Estalos. Sons de metal contra metal. E memórias. Ou algo parecido com isso. Trechos confusos de uma mulher que não era ela. Trechos também da própria Jasmim. Mesclando-se sem permissão, como se duas linhas de código opostas fossem forçadas a compartilhar a mesma classe.
Lembranças de uma sala cheia de pessoas sem olhos. De mãos manipulando uma porta que jamais existiu. De sangue que não corria, mas escorria, como se tentasse fugir. O som de uma risada antiga, amarga, daquelas que envelhecem mal. E ao fundo, sempre ao fundo, uma voz que dizia algo, mas não em palavras. Apenas… insistência.
Até que enfim, como se uma lente se encaixasse, a voz se tornou clara. Robótica, quase gentil. Imparcial, o suficiente para ser ainda mais cruel.
Água onde não havia encanamento.
Alguém sendo chamado por um nome esquecido.
Um símbolo que doía ao ser lido.
A própria voz, tentando dizer “não”, mas sem boca.
A Colecionadora.
A outra.
Ela.
As três, tentando ocupar o mesmo lugar.
“Sincronização parcial iniciada.”
O mundo não respondeu. Mas alguma coisa dentro da garota, sim.
Seus olhos se abriram abruptamente. Não havia nada ali.
Literalmente nada. Nenhuma sombra, nenhuma borda, nenhum som. Só uma claridade branca, do tipo que não ilumina — apenas apaga o mundo ao redor. Era o tipo de lugar onde se espera encontrar um eco ou uma epifania, mas tudo o que Jasmim tinha era um corpo mole, um latejar incômodo no abdômen e uma crescente sensação de que algo havia dado errado.
Se levantou com dificuldade, cambaleou dois passos, olhou ao redor, viu o mesmo vazio opressivamente limpo. Nenhuma porta, nenhuma saída, nenhum manual de instruções grudado na parede.
Levou as mãos ao rosto por reflexo. Tocou os óculos e retirou-os devagar, mas a ardência nos olhos veio no instante seguinte, queimando por dentro. Recolocou-os, e, como se nunca estivesse estado lá, o desconforto cedeu.
— Que droga tá acontecendo… — murmurou para ninguém em particular, com uma voz que parecia mais frágil do que gostaria de admitir.
Nesse momento, uma voz surgiu.
“Iniciando relatório do usuário.”
“Temperatura corporal: 37,6 graus.”
“Sinais vitais: dentro dos padrões aceitáveis.”
“Estabilidade neural: em processo.”
“Usuário identificado: Jasmim.”
“Sincronização parcial: 44%.”
A jovem caçadora franziu a testa, não devido às informações em si, mas pelo fato de que, apesar de também estarem visíveis através das lentes escuras, de alguma forma eram entregues diretamente em sua mente. Deu mais alguns passos trôpegos. A dor veio como uma lâmina lenta: aguda, localizada, inegável. Abaixou os olhos. Viu o que, num primeiro momento, pareceu uma peça de armadura fundida ao corpo — do início da cintura até logo abaixo dos seios, uma superfície metálica, lustrosa, sutilmente quente ao toque.
O calor era constante, pulsante, como o de um motor em crescente aceleração.
Tocou o estranho material com a ponta dos dedos. Não parecia algo vestível. Não havia encaixe, não havia borda. Não havia separação entre aquilo e sua pele.
Era ela.
Não como se estivesse vestindo aquilo — ela era aquilo.
Uma memória, confusa como uma lâmpada oscilante, surgiu. As figuras. As vozes discutindo como se ela fosse uma planilha defeituosa. E, depois, a escuridão. O sumiço. A sensação de ser partida e remontada com peças de outros.
Jasmim apertou os olhos. O peito subia e descia num ritmo errático.
— Me salvaram…? Mas… por quê?
Encostou-se na parede lisa, e inesperadamente e com um leve ruído deslizante, uma seção inteira se moveu. Não havia marcação que indicasse que era uma porta. Nem dobradiça, nem maçaneta, nem aviso luminoso. Ela simplesmente… abriu.
E do outro lado, só havia escuridão.
Não o tipo acolhedor, de quarto sem janela. Mas um preto absoluto, opaco, que parecia engolir até mesmo o som. A luz branca da sala em que estava projetava um retângulo luminoso de dois ou três metros sobre o chão externo — mas ele não refletia nada. Era como tentar iluminar o fundo de um poço.
Jasmim respirou fundo, e sem ter mais opções, deu um passo à frente.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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