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Protótipo de capa Volume 1 – Ironia Divina
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Capítulo 220 - Caipiras
— O Canto da Sereia ainda tá aqui… Podem ser uns filhos da puta, mas pelo menos cuidam das tradições.
A frase saiu baixa, quase perdida entre os ecos da sirene que, mesmo anos depois do colapso, ainda berrava pontualmente às dezoito horas como uma lembrança teimosa do que já foi rotina. Aquele som metálico, meio desafinado, agora era o único traço de civilização que insistia em sobreviver — uma serenata para fantasmas de um mundo muito menos caótico. E Sérgio, como um dos poucos que lembravam, sabia exatamente o que ela significava.
Inspirou fundo. O cheiro era outro. O tempo era outro. Mas, por um instante, sua mente voltou para antes. Para os dias em que corria de banca em banca distribuindo jornais, com as mãos manchadas de tinta e o nariz entupido de fumaça de escapamento. Naquela época, a Avenida Paulista ainda era o que chamavam de centro cultural e financeiro do país. Uma mistura estranha de gente que se odiava em silêncio dentro de trens lotados e de manifestantes que gritavam por causas que esqueciam dois meses depois.
Lembrava-se da sirene da Folha como quem lembra do último latido de um cachorro velho: alto, desajeitado e comovente. Era ela que, com a última impressão do dia, avisava aos entregadores que o expediente tinha acabado, mesmo que ainda faltassem duas horas para acabar de verdade.
— Você tá com conversa de velho de novo — murmurou Lúcia, sem desviar os olhos do beco à frente. — Se vai começar, pelo menos explica.
— Não vale a pena. Te falar só o contexto já ia levar a tarde toda.
Lúcia, vendo que a discussão não ia render, enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo surrado que tomou dos assaltantes mortos — o que tornou o pequeno luxo mais confortável do que devia — e voltou às próprias distrações. A cidade fedia ainda mais que Barueri. E isso era um grande feito.
— É meio assustador… — murmurou, mais para si do que para alguém.
Sérgio respondeu com um grunhido. Nem positivo, nem negativo.
Lúcia ergueu os olhos. O céu encardido parecia não acabar. Se aquilo era a “nova vida” prometida, o marketing precisava melhorar.
Chegaram durante o dia — ou o que o manto cinzento permitia chamar de dia. Os becos eram estreitos demais para a luz entrar. O que iluminava as calçadas eram letreiros de neon berrando frases em fontes trêmulas, grudados nas fachadas de puteiros caindo aos pedaços, farmácias ilegais com promessas exageradas, casas de chá que pareciam vender qualquer coisa, menos chá, e lares de idosos com nomes acolhedores e slogans que pareciam ameaças discretas.
“Tradição e cuidado desde o ano 3”, dizia um deles. Abaixo, o rosto plácido de uma senhora sorridente, de mãos dadas com alguém que parecia estar prestes a ser lobotomizado.
Aquilo a fez franzir o cenho.
Já havia entendido o conceito do calendário novo, mas ele ainda soava… obtuso. Chamavam o ano do segundo teletransporte pomposamente de “Ano do Renascimento”, e o tempo passou a ser medido de forma diferente: tendo dias de cem horas, definiram meses com seis semanas extensas e estações que ignoravam solenemente o que deveriam significar.
Fazendo as contas de cabeça — mal e mal — Lúcia percebeu que, se considerassem aquele novo ritmo de tempo, ela era tecnicamente mais nova do que pensava. Uma criança. Quase um bebê. Isso a fez rir. Depois tossir. Depois rir de novo, tossindo.
A fumaça não ajudava.
Se andasse distraída, era fácil acreditar que a névoa vinha do próprio chão. Em parte, até vinha. A cidade parecia ter um pulmão subterrâneo, um sistema respiratório de ferro-velho que tossia constantemente através das frestas da calçada. Um som de vapor irritado, que eventualmente se tornava companhia. Quase música.
Mas o verdadeiro culpado estava nas bocas das pessoas.
Charutos grossos, cigarretes finos, bastões de fumaça com formas criativas e efeitos colaterais variados. Alguns emitiam aroma ácido e outros, doce demais, quase infantil. Alguns não queimavam: brilhavam. Tinham inscrições rúnicas que dançavam sobre o papel, como se cada tragada fosse um pequeno ritual. E, fosse onde fosse, todo mundo estava fumando. O tempo inteiro. O povo daquela cidade parecia ter trocado oxigênio por estilo — e estilo por teimosia.
Lúcia observou um homem acender o que parecia ser um incenso portátil de hortelã com notas de enxofre, e a mente a traiu com uma imagem inesperada: Ana. Nunca a vira com um cigarro. Nunca mesmo. Mas, por algum motivo, parecia algo que combinaria com ela. Não pela estética, mas pelo desdém.
Suspirou. A cidade era cruel nesse sentido. Trazia memórias que ela nem sabia que tinha. A lembrava de Insídia, que ajudara a destruir. Só que mais barulhenta. Mais orgulhosa de sua sujeira. Corrompidos andavam por ali como se tivessem direitos. E os puros, embora não fossem maioria, não precisavam se esconder.
Era uma cidade livre. Livre… e preconceituosa.
— Sai da porra da frente, caipira de merda!
A voz veio de trás, cortando o momento com a delicadeza de uma serra enferrujada. Lúcia desviou a tempo de não ser atropelada por uma senhora empurrando um carrinho motorizado com trinta sacolas penduradas e um cachorro tatuado de azul. A mulher passou xingando em voz alta, acendendo mais um cigarro com um isqueiro preso à manga da jaqueta.
A garota sequer ergueu os olhos. Responder consumiria tempo e paciência, duas coisas que ela não estava disposta a desperdiçar. Já era a quarta vez que a chamavam de caipira naquela tarde. Foi chamada de selvagem também, duas vezes.
Talvez fossem seus olhos curiosos, que insistiam em tentar entender cada canto da cidade como se estivessem visitando outro mundo. Ou talvez fossem suas roupas, desgastadas demais para aquele desfile de casacos caros e sorrisos afiados. Não que o rótulo em si a importunasse; o problema era a entonação, aquele jeito de cuspir as palavras como se fossem restos de algo podre. Ela cerrou os punhos.
Os guardas na entrada haviam sido claros — não com um sermão, mas com um aviso quase cortês: Não incomodem os elfos.
Um termo idiota, mas suficientemente adequado.
Os corrompidos dominantes dali não se pareciam tanto com as histórias antigas — nada de cantos élfico-cósmicos ou harpas de cristal. Eram só… maiores. Altos demais. Ossatura afilada. Orelhas alongadas e tortas, como se tivessem crescido mais do que deviam. E olhos — malditos olhos — claros como lâmina, beirando o translúcido.
Claro, não era a estética que os colocava no topo da pirâmide social da capital. Era o que corria em suas veias — se é que ainda podiam ser chamadas disso, considerando como se contorciam sob a pele, como cobras famintas, iluminadas por dentro com um brilho fraco de mana em movimento constante. Era grotesco. E, paradoxalmente, lindo.
Mais veias, mais mana, mais poder. Uma fórmula simples que tornava sólido o sistema de castas com brilho embutido.
— Aperta os dentes, garota — disse Sérgio, ao lado dela. — Essa cidade fodida não vai melhorar só porque a gente faz um escândalo no meio da viela.
Lúcia assentiu com o queixo, os ombros ainda tensos. A voz dele, curiosamente mais compreensiva do que o normal, teve um efeito estranho: não exatamente confortante, mas… alinhador. Como se lembrasse que estavam no mesmo barco, mesmo que esse barco estivesse, no momento, afundado num esgoto urbano.
A realidade, no entanto, mesmo com a calma, seguia a mesma: não tinham dinheiro, não tinham coragem — ou estupidez — suficiente para dormir nas ruas fétidas, entre caixas com pernas e moradores que falavam sozinhos em idiomas inventados.
Mas sim, tinham um plano, mesmo que vago.
Precisavam encontrar os mercenários.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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