Capítulo 221 - Copo Nunca Vazio
— Era pra ser aqui…
— Nem fodendo.
— Você devia melhorar essa boca suja.
— Ah sim, por que você nunca fala merda, né?
Lúcia cruzou os braços com uma lentidão proposital, o tipo de movimento que serve tanto para refletir quanto para irritar quem está do lado. Pressionou a porta descascada com a bota, sentindo a madeira ceder com um gemido que sugeria melhores dias há muito passados.
— Eu não vou entrar numa construção condenada. É burrice. Pedir pra morrer à toa.
— Você tá exagerando — Sérgio espremeu os olhos contra os vidros sujos, transformando seu rosto numa caricatura de miopia. — E ali… tem luz. Tem alguém lá dentro.
Lucia torceu os lábios, mas se forçou a olhar na direção que ele apontava. E lá estava: uma luz alaranjada vagando de um lado para o outro. Não dançava como vela, nem pulsava como magia. Uma inquietação morna.
— Mais um fumante — decretou com desdém.
— Deixa de frescura, menina.
Tomando uma lufada de ar, o homem empurrou a porta com cautela. Lucia seguiu, mas não sem lançar um olhar para Garm no jardim. Eva, aninhada ao lado da pata do lobo, continuava imóvel, com o olhar perdido no nada. Ou talvez no tudo. Era difícil dizer.
Por dentro, a taverna não decepcionava. Estava imunda com um certo orgulho. Não era a imundície da poeira — não que não a tivesse, pois a poeira estava igualmente presente —, que ao menos carrega consigo a nobreza do tempo, mas uma sujeira viva, insistente, que parecia se reproduzir sozinha. O cheiro também era um capítulo à parte — não o fedor óbvio da morte em decomposição, mas algo mais denso, mais ancestral. Como se o próprio prédio tivesse desistido de si.
A cada passo, a sola dos sapatos parecia se arrepender da decisão de tocar o chão. Rangidos ecoavam pelo salão, não altos o suficiente para serem ameaçadores, mas insistentes o bastante para serem notados. Ambos prendiam a respiração sem se dar conta.
Do fundo, a figura feminina continuava seu balé indiferente, a fumaça de seu cigarro desenhando espirais preguiçosas no ar pesado. Dava para ver que a mulher não tinha pressa. Era o tipo de calma que incomodava.
— Estamos fechados. São tão analfabetos que não conseguem ler a porcaria da placa na porta?
A voz surgiu do nada. Não da mulher, como se esperaria, mas de trás de um balcão que, apesar do resto do ambiente, estava… limpo. Impecavelmente limpo. A voz era baixa, mas carregava aquele grave cavernoso que não pedia atenção — exigia. Não precisava de volume. Tinha peso próprio.
Lucia girou tão rápido que quase torceu o pescoço. Sérgio parecia ter esquecido como piscar, com a mesma expressão espantada de “como é que a gente não viu esse cara aí antes?”
O homem era, em resumo, uma aberração anatômica. Parecia ter sido esculpido na mesma pedra que sustentava os alicerces do prédio. Mãos largas demais para a delicadeza com que segurava dois copos de vidro.
A mulher, agora ciente da presença dos intrusos, deu uma tragada longa, queimando metade do cigarro de uma vez, e, com uma graça irritante, saltitou até uma mesa próxima. O rosto estava parcialmente encoberto pelas sombras e pela fumaça, mas havia algo inegavelmente zombeteiro na curvatura exagerada de seus lábios.
— São surdos? — insistiu o homem, agora com menos paciência e mais pulmão.
Lúcia considerou a pergunta por um segundo, como se quisesse confirmar com o próprio cérebro se, de fato, ainda ouvia.
— Na verdade… não tinha placa nenhuma. — Mentira. Ela nem tinha procurado. — A gente entrou porque disseram que aqui era a taverna.
A resposta provocou um tapa sonoro na própria testa da mulher sentada ao fundo, que tombou para trás como se o mundo, por um instante, tivesse deixado de merecer sua coluna ereta.
— Aaaaaah, que lugar insuportável. Aposto que aqueles filhos da putinha roubaram de novo…
O barman não esboçou surpresa, só assentiu com uma calma resignada.
— É só o de sempre, Bia. Vamos, venham até aqui de uma vez, ninguém fica sem beber quando entra no Copo Nunca Vazio.
Com suas mãos anormalmente grandes, pegou duas garrafas distintas — em formato, pois o líquido dentro tinha o mesmo tom azul-alaranjado em ambas — e serviu um pouco em cada copo com destreza.
Empurrou-os para frente de forma descuidada, mas, diferente de um pequeno punhado de poeira que girou no ar, a bebida sequer tremeu.
Sérgio deu de ombros.
— Quem sou eu pra recusar.
Lúcia, por outro lado, hesitou. Não era exatamente contra beber — era só que… nunca tinha acontecido. Na guilda de Jasmim, o álcool era visto como veneno da alma, e com Ana… bom, Ana bebia como se o mundo fosse acabar quando morava em sua vila, mas foi exageradamente restritiva com o assunto quando ela pediu para provar. Agora, já que aqui não parecia que a impediram, levou o copo à boca.
O primeiro gole foi um atentado às suas papilas. Tinha gosto de fruta não identificada, misturada com ferrugem e um leve traço de arrependimento. O tipo de bebida que não te convida a continuar — mas também não te manda embora. Aquecia o corpo como se pedisse desculpas pelo desconforto.
Ela engoliu mesmo assim. Já tinha bebido coisa pior.
— O que vocês querem?
— Quê? — Em meio a um gole, Sérgio levantou os olhos para a voz ainda direta, apesar de mais branda.
— Disse que te passaram a localização daqui. O que vieram fazer?
— Quê? — repetiu o médico. — Não é uma taverna mercenária? A gente veio… beber. Comer.
— Trabalhar! — completou Lucia, com a cara ainda repuxada pelo amargor.
A mulher deu uma risada curta, que parecia mais um bocejo de desdém.
— Tá com cara de que aqui tem trabalho, criança?
— Não. — Lucia olhou para Sérgio. — Mas ele quis entrar, eu só segui.
O homem pigarreou.
— A gente não tinha muita escolha. Enfim, o que aconteceu com essa filial?
— Boicote do governo — explicou a mulher, como se falasse do clima. — Os desgraçados de orelha pontuda enfiaram uma porrada de taxa em cima das missões que saíam por aqui. Resultado: ninguém mais aparece. Ninguém arrisca a vida pra ganhar pouco.
— E por que não viram um bar normal?
A pergunta caiu como um tijolo no colo do barman, que sorriu com a satisfação de quem esperava aquilo há anos.
— Viu? Ele concorda comigo — disse o gigante, antes de encher outros dois copos para si e para a mulher, dessa vez com mais entusiasmo.
— Cala boca. O Olmo vai matar a gente se ele souber que a gente desistiu.
— O Olmo deve tá morto, porra.
— Não arrisco! — brincou Bia, aceitando a bebida e sacando um novo cigarro.
Se espreguiçou e alcançou o isqueiro sob a mesa, mas para seu desgosto, falhou ao tentar acender. Na segunda tentativa, também. Na terceira, franzindo o cenho e jogando o dispositivo longe, desistiu.
— E lá vamos nós ficar uns vinténs mais pobres…
— Ah, eu ajudo com isso! — exclamou Lucia, com as bochechas coradas e a cabeça balançando num ritmo quase musical.
Estendeu um dedo vacilante e, antes de dar chance da sorridente fumante a impedir, manifestou uma pequena, mas intensa, chama. Uma esfera dançante de calor, pairando com charme desnecessário.
Bia ergueu uma sobrancelha, sem dizer nada de imediato. Tocou a ponta do cigarro na chama com a lentidão de um ritual pagão, tragou como se aquilo fosse a única coisa que a mantinha funcional, e então, como se sofrendo um ataque de bipolaridade, gritou.
— Pera, pera, pera. Faz isso aí de novo.
— O quê, o fogo?
— Isso, isso. Apaga e acende outra vez.
Lúcia, visivelmente confusa, mas curiosa, estalou os dedos. Uma nova esfera brotou do ar como se nada fosse. Brilhou com o mesmo vigor tímido de antes, mas a mulher arregalou um olho.
— Eita! Você também veio do Abismo?!
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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