Índice de Capítulo

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    — Era pra ser aqui…

    — Nem fodendo.

    — Você devia melhorar essa boca suja.

    — Ah sim, por que você nunca fala merda, né?

    Lúcia cruzou os braços com uma lentidão proposital, o tipo de movimento que serve tanto para refletir quanto para irritar quem está do lado. Pressionou a porta descascada com a bota, sentindo a madeira ceder com um gemido que sugeria melhores dias há muito passados.

    — Eu não vou entrar numa construção condenada. É burrice. Pedir pra morrer à toa.

    — Você tá exagerando — Sérgio espremeu os olhos contra os vidros sujos, transformando seu rosto numa caricatura de miopia. — E ali… tem luz. Tem alguém lá dentro.

    Lucia torceu os lábios, mas se forçou a olhar na direção que ele apontava. E lá estava: uma luz alaranjada vagando de um lado para o outro. Não dançava como vela, nem pulsava como magia. Uma inquietação morna.

    — Mais um fumante — decretou com desdém.

    — Deixa de frescura, menina.

    Tomando uma lufada de ar, o homem empurrou a porta com cautela. Lucia seguiu, mas não sem lançar um olhar para Garm no jardim. Eva, aninhada ao lado da pata do lobo, continuava imóvel, com o olhar perdido no nada. Ou talvez no tudo. Era difícil dizer.

    Por dentro, a taverna não decepcionava. Estava imunda com um certo orgulho. Não era a imundície da poeira — não que não a tivesse, pois a poeira estava igualmente presente —, que ao menos carrega consigo a nobreza do tempo, mas uma sujeira viva, insistente, que parecia se reproduzir sozinha. O cheiro também era um capítulo à parte — não o fedor óbvio da morte em decomposição, mas algo mais denso, mais ancestral. Como se o próprio prédio tivesse desistido de si.

    A cada passo, a sola dos sapatos parecia se arrepender da decisão de tocar o chão. Rangidos ecoavam pelo salão, não altos o suficiente para serem ameaçadores, mas insistentes o bastante para serem notados. Ambos prendiam a respiração sem se dar conta.

    Do fundo, a figura feminina continuava seu balé indiferente, a fumaça de seu cigarro desenhando espirais preguiçosas no ar pesado. Dava para ver que a mulher não tinha pressa. Era o tipo de calma que incomodava.

    — Estamos fechados. São tão analfabetos que não conseguem ler a porcaria da placa na porta?

    A voz surgiu do nada. Não da mulher, como se esperaria, mas de trás de um balcão que, apesar do resto do ambiente, estava… limpo. Impecavelmente limpo. A voz era baixa, mas carregava aquele grave cavernoso que não pedia atenção — exigia. Não precisava de volume. Tinha peso próprio. 

    Lucia girou tão rápido que quase torceu o pescoço. Sérgio parecia ter esquecido como piscar, com a mesma expressão espantada de “como é que a gente não viu esse cara aí antes?”

    O homem era, em resumo, uma aberração anatômica. Parecia ter sido esculpido na mesma pedra que sustentava os alicerces do prédio. Mãos largas demais para a delicadeza com que segurava dois copos de vidro.

    A mulher, agora ciente da presença dos intrusos, deu uma tragada longa, queimando metade do cigarro de uma vez, e, com uma graça irritante, saltitou até uma mesa próxima. O rosto estava parcialmente encoberto pelas sombras e pela fumaça, mas havia algo inegavelmente zombeteiro na curvatura exagerada de seus lábios.

    — São surdos? — insistiu o homem, agora com menos paciência e mais pulmão.

    Lúcia considerou a pergunta por um segundo, como se quisesse confirmar com o próprio cérebro se, de fato, ainda ouvia.

    — Na verdade… não tinha placa nenhuma. — Mentira. Ela nem tinha procurado. — A gente entrou porque disseram que aqui era a taverna.

    A resposta provocou um tapa sonoro na própria testa da mulher sentada ao fundo, que tombou para trás como se o mundo, por um instante, tivesse deixado de merecer sua coluna ereta.

    — Aaaaaah, que lugar insuportável. Aposto que aqueles filhos da putinha roubaram de novo…

    O barman não esboçou surpresa, só assentiu com uma calma resignada.

    — É só o de sempre, Bia. Vamos, venham até aqui de uma vez, ninguém fica sem beber quando entra no Copo Nunca Vazio.

    Com suas mãos anormalmente grandes, pegou duas garrafas distintas — em formato, pois o líquido dentro tinha o mesmo tom azul-alaranjado em ambas — e serviu um pouco em cada copo com destreza.

    Empurrou-os para frente de forma descuidada, mas, diferente de um pequeno punhado de poeira que girou no ar, a bebida sequer tremeu.

    Sérgio deu de ombros. 

    — Quem sou eu pra recusar.

    Lúcia, por outro lado, hesitou. Não era exatamente contra beber — era só que… nunca tinha acontecido. Na guilda de Jasmim, o álcool era visto como veneno da alma, e com Ana… bom, Ana bebia como se o mundo fosse acabar quando morava em sua vila, mas foi exageradamente restritiva com o assunto quando ela pediu para provar. Agora, já que aqui não parecia que a impediram, levou o copo à boca.

    O primeiro gole foi um atentado às suas papilas. Tinha gosto de fruta não identificada, misturada com ferrugem e um leve traço de arrependimento. O tipo de bebida que não te convida a continuar — mas também não te manda embora. Aquecia o corpo como se pedisse desculpas pelo desconforto.

    Ela engoliu mesmo assim. Já tinha bebido coisa pior. 

    — O que vocês querem?

    — Quê? — Em meio a um gole, Sérgio levantou os olhos para a voz ainda direta, apesar de mais branda.

    — Disse que te passaram a localização daqui. O que vieram fazer?

    — Quê? — repetiu o médico. — Não é uma taverna mercenária? A gente veio… beber. Comer.

    — Trabalhar! — completou Lucia, com a cara ainda repuxada pelo amargor.

    A mulher deu uma risada curta, que parecia mais um bocejo de desdém.

    — Tá com cara de que aqui tem trabalho, criança?

    — Não. — Lucia olhou para Sérgio. — Mas ele quis entrar, eu só segui.

    O homem pigarreou.

    — A gente não tinha muita escolha. Enfim, o que aconteceu com essa filial?

    — Boicote do governo — explicou a mulher, como se falasse do clima. — Os desgraçados de orelha pontuda enfiaram uma porrada de taxa em cima das missões que saíam por aqui. Resultado: ninguém mais aparece. Ninguém arrisca a vida pra ganhar pouco.

    — E por que não viram um bar normal? 

    A pergunta caiu como um tijolo no colo do barman, que sorriu com a satisfação de quem esperava aquilo há anos.

    — Viu? Ele concorda comigo — disse o gigante, antes de encher outros dois copos para si e para a mulher, dessa vez com mais entusiasmo.

    — Cala boca. O Olmo vai matar a gente se ele souber que a gente desistiu.

    — O Olmo deve tá morto, porra.

    — Não arrisco! — brincou Bia, aceitando a bebida e sacando um novo cigarro.

    Se espreguiçou e alcançou o isqueiro sob a mesa, mas para seu desgosto, falhou ao tentar acender. Na segunda tentativa, também. Na terceira, franzindo o cenho e jogando o dispositivo longe, desistiu.

    — E lá vamos nós ficar uns vinténs mais pobres…

    — Ah, eu ajudo com isso! — exclamou Lucia, com as bochechas coradas e a cabeça balançando num ritmo quase musical.

    Estendeu um dedo vacilante e, antes de dar chance da sorridente fumante a impedir, manifestou uma pequena, mas intensa, chama.  Uma esfera dançante de calor, pairando com charme desnecessário.

    Bia ergueu uma sobrancelha, sem dizer nada de imediato. Tocou a ponta do cigarro na chama com a lentidão de um ritual pagão, tragou como se aquilo fosse a única coisa que a mantinha funcional, e então, como se sofrendo um ataque de bipolaridade, gritou.

    — Pera, pera, pera. Faz isso aí de novo.

    — O quê, o fogo?

    — Isso, isso. Apaga e acende outra vez.

    Lúcia, visivelmente confusa, mas curiosa, estalou os dedos. Uma nova esfera brotou do ar como se nada fosse. Brilhou com o mesmo vigor tímido de antes, mas a mulher arregalou um olho.

    — Eita! Você também veio do Abismo?!
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