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    “Criatura Lumbricidae detectada. Abdômen vulnerável. Intensidade da força necessária: três vezes a média muscular registrada. Risco de dispersão ácida: moderado. Sugestão de ataque: perfuração diagonal de baixo para cima.”

    A voz do sistema ecoou como sempre: educada, precisa, irritantemente animada. 

    — Cala a boca. Já disse que não vou lutar contra uma coisa dessas.

    “Cala a boca”.

    A frase já havia se tornado um mantra para Jasmim, mas o sistema tinha a mesma consideração por suas opiniões que um general teria por uma folha seca no campo de batalha.

    Estava sentada em uma pedra — dessas largas e geladas que as cavernas adoram cultivar — afiando um osso curvo que, em qualquer outro contexto, seria só um resto de jantar. Agora? Era sua arma. Sua nova arma, porque a anterior tinha virado pó depois de enfiá-la em algo que “não deveria ser enfiado”, segundo a voz inútil dos óculos. A arma improvisada rangia a cada raspada, preenchendo o ar com uma tensão que não vinha dela, e sim da terra abaixo, que vibrava suavemente a cada pulso da criatura que se movia sob seus pés.

    A escuridão era abissal, mas a jovem observava, sem pressa, enquanto o vulto colossal emergia de um dos buracos que pontilhavam o chão, só para desaparecer no seguinte com um baque surdo. Não dava para ver detalhes, mas sua imaginação, sempre solícita, preencheu as lacunas: algo entre uma minhoca gigante e um pesadelo geológico, com anéis pulsantes e uma boca que provavelmente não era só para comer terra.

    Felizmente, aquilo não era exatamente uma ameaça, o que era bom, porque ela estava cansada demais para lidar com algo que exigisse qualquer esforço. Os únicos inconvenientes eram os outros insetos — pequenos, numerosos e curiosos como crianças em um museu de ciência. Eles zumbiam em volta do monstro, mas às vezes mergulhando em sua direção antes de desistir, como se estivessem apenas checando se ela já estava podre o suficiente para virar comida.

    “Segmentos dorsais frágeis. Escudo posterior rachado. Provável lesão antiga. Recomenda-se ataque em rotação vertical. Estimativa de suces…”

    A voz do sistema interrompeu a própria frase com um pequeno estalo.

    “Movimento brusco. Sete graus à esquerda.”

    Jasmim suspirou. Ainda não tinha se acostumado à enxurrada constante de dados, mas precisava admitir: era útil. Invasivo, insuportável, às vezes humilhante — mas útil.

    Levantou-se com um salto, ignorando a dor surda no quadril — consequência de dormir em superfícies que nem sequer eram dignas de serem chamadas de “chão”. O osso em sua mão estava afiado o suficiente. Pelo menos isso tinha dado certo.

    Não precisou olhar. Abaixou-se no último instante, girando no eixo, e a lança de osso cortou o ar em um arco ascendente.

    O resultado foi uma sinfonia de fracassos naturais: um clanc de pedra contra pedra, o estalo seco de uma carapaça cedendo e, por fim, um guincho agudo que soou menos como “dor” e mais como “reclamação de um funcionário sub pago” — o que era bem pior.

    “Eficiência: 74%. Emoção detectada: instabilidade. Sincronização parcial: 58%.”

    — Cala a boca. — A caçadora esfregou o pulso, onde uma pontada latejante insistia em lembrá-la de que matar coisas com ossos não era exatamente ergonômico. — A culpa foi sua por avisar tarde. Me assustei.

    Ajoelhou-se com um estalo de juntas, enfiando os dedos na pele rachada da criatura caída. Textura ruim, cheia de espinhos microscópicos, úmida num jeito que sugeria infecção ou má vontade genética.

    — Aranhas, de novo… — murmurou, irritada.

    Odiava aquelas desgraçadas. Sempre que acertava de primeira, o braço doía por três horas. E quando errava, bom… na melhor das hipóteses, ganhava uma cicatriz nova. As pernas delas eram compridas, desconfortavelmente ágeis. As costas, cobertas de cristais que exalavam um cheiro digno de uma fossa esquecida por Deus. A mana? Fraca. Quase nula. E o sabor… Ela chegou a salivar de nojo só de lembrar. Já tinha tentado comer uma. Uma vez. Nunca mais.

    Chutou a carcaça para longe. O corpo bateu contra uma rocha com um som úmido e molhado, como um elogio mal recebido. Se fosse mais espiritualizada, talvez dissesse uma prece. Mas o máximo que fez foi murmurar algo entre um “puta merda” e um “obrigada pela contribuição, imbecil”.

    Voltou a se sentar, olhando em silêncio para o buraco escuro à frente. A criatura gigante já devia ter sumido no subterrâneo. As vozes nos óculos cessaram, finalmente. Mas ela sabia que o silêncio não duraria. Nunca durava.

    Aproveitou o momento para respirar — um erro, considerando o cheiro ainda presente das glândulas rompidas da aranha. A mana que absorvera era fraca, quase ofensiva de tão inútil, mas mesmo assim seu abdômen ardia como se tivesse ingerido metal derretido. Desde que acordara, aquela sensação ao absorver a energia dos seres mortos começou a sempre vir em ondas, como uma febre de dentro pra fora. No começo, ela vomitava. Agora, apenas controlava a ânsia com a elegância de quem sabe que reclamar não adianta.

    Era como se o corpo inteiro se abrisse para aceitar a nova força. A cada respiração mais funda, sentia a energia se acomodar nos músculos, rápida, eficiente. Quase agradável. Até o estômago resolver protestar e lembrá-la de que não era realmente uma máquina.

    — Eu só queria que os gatos voltassem… faz tanto tempo que não como carne de verdade.

    O óculos respondeu ao comentário apenas com um bip curto. Ou ela imaginou que respondeu. Já tinha aceitado que parte dos sons eram reais e parte vinham do lugar obscuro entre alucinação e adaptação neural. A linha que separava o útil do perturbador era cada vez mais borrada.

    Tocou a lateral do dispositivo com certa irritação, como quem bate num rádio velho. O mapa se abriu diante de seus olhos — projeção perfeita, linhas definidas, tudo mais bonito do que qualquer coisa real ao seu redor. Lá estava a marca. O ponto.

    “COLEÇÃO”, dizia a legenda.

    Sempre a mesma merda. Nenhum detalhe, nenhum contexto, só aquela palavra pairando como um convite enigmático — ou uma ameaça mal escrita. Perguntara ao sistema sobre aquilo inúmeras vezes, e o resultado era sempre o mesmo:

    “Acesso restrito. Requer compatibilidade total.”

    Uma resposta elegante para dizer “isso não te diz respeito”. Tentou expandir, tentou forçar, tentou insultar a IA interna. Tudo inútil.

    Mas, bem… pelo menos era um objetivo. Um norte. Um pequeno feixe de sentido em meio à escuridão crônica. Se não fosse por aquele marcador insistente, talvez já tivesse se deixado apodrecer ali mesmo, junto dos corpos sem nome e das memórias que não queria revisitar.

    “Você está se moldando bem.”

    A outra voz surgiu sem aviso, como um dedo gelado escorregando pela sua coluna. Jasmim cuspiu no chão — reação mais instintiva do que planejada. Aquela voz, diferente da robótica e polida do sistema, era como um sussurro interno, mas com entonação própria. Não soava como um aviso. Era uma presença.

    Era arrogante, invasiva e dissimulada. Dava coceira por dentro. Dava vontade de arrancar os próprios ouvidos, mesmo sabendo que não resolveria nada. Ela já havia tentado ignorá-la. Já havia tentado respondê-la com palavrões. Nada fazia diferença. A maldita voltava sempre.

    Grunhindo, levantou-se. O descanso havia acabado, não por decisão dela, mas por consenso da realidade ao seu redor.

    No fundo do buraco mais adiante, a terra tremeu.

    A sombra serpentina do monstro voltou a saltar, movendo-se com o mesmo ritmo desconcertante de antes.

    “Criatura Lumbricidae detectada. Escamas irregulares. Rachadura dorsal na altura do nono segmento. Abdômen vulnerável. Recomendação de ataque: rotação em espiral.”

    — Cala. A. Boca! — bateu a mão na testa, como se pudesse desligar a voz com um tapa. — Eu já disse que não vou atacar essa coisa. Deixa ela viver, cacete.

    A minhoca, alheia ao seu protesto, continuou seu trajeto saltitante entre os buracos. Jasmim olhou para o osso ensanguentado na sua mão, depois para o mapa flutuante, e depois para o vazio à sua frente. Também seguiu seu caminho.
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