Índice de Capítulo

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    — Tem certeza que podemos ficar aqui?

    O quarto não era exatamente o que se chamaria de aconchegante, mas tinha duas coisas raras na vida de Lucia: espaço e um teto que não parecia prestes a desabar. A cama era grande demais — quase um território próprio, algo que faria um nobre torcer o nariz, mas que, para um trio de caipiras sem um tostão no bolso, era o equivalente a uma suíte real. O colchão, desgastado e com histórias que ninguém queria saber, fora arrastado do galpão como um cadáver abandonado, mas ainda era melhor que dormir no chão duro de uma viela qualquer.

    Pela janela lateral, ao lado de algumas cadeiras amontoadas e um canteiro de ervas esquecido, dava para ver Garm estirado na grama. O focinho se contraía ocasionalmente, incomodado com o cheiro persistente de sangue velho misturado ao verde. Mas ele não se movia. Já havia decidido que pensar era trabalho humano, então queria poupar energia. 

    O pedaço de carne entre as patas dele já não prometia grandes alegrias, mas ainda era melhor do que sair por aí tentando caçar em uma floresta supostamente abarrotada de gente que não conseguiria enfrentar sozinho nem se quisesse.

    — É claro que sim. — Beatriz gesticulava vagarosamente enquanto falava. — A gente fica fora a semana inteira, não vão atrapalhar. André, coloca a menina com cuidado, por favor.

    O grande homem limitou-se a um aceno silencioso antes de depositar Eva no canto da cama, próximo à parede.

    — Além disso, você é uma compatriota! Quem fugiu do inferno tem que se ajudar, né?

    — Certo… — Lucia murmurou em um tom que não dizia nem sim, nem não, e se sentou devagar na beirada da cama, os dedos afundando levemente no colchão velho. — Obrigada.

    O sorriso de Beatriz não se mexeu, mas algo nos olhos dela mudou — algo que fez Lucia desviar o olhar. Gratidão era um peso estranho, especialmente quando vinha de gente que não devia nada a você. 

    O clima havia ficado estranho quando a taverneira arregalou os olhos de surpresa em meio a sua manifestação de chamas. Felizmente, uma troca rápida de palavras esclareceu as coisas, e Beatriz não pôde esconder a excitação de saber que Lucia vivia em uma região próxima naquele lugar escuro, na qual também passou a maior parte do seu tempo.

    A garota não fora uma escrava como a taverneira disse ter sido, mas isso não foi o suficiente para impedir a sensação de irmandade. Sem demora, o grupo deixou de ser um amontoado de intrusos e passou a ser quase família.

    Tentando pensar nos próximos planos com calma mesmo em meio a série de acontecimentos inesperados, retirou uma mecha branca do rosto da companheira adormecida e encostou o dorso da mão em sua testa. A pele estava quente. Mais quente que antes.

    Ela olhou para Sérgio, os dedos ainda pairando no ar.

    — Ela voltou a esquentar.

    O médico não precisou dizer nada. Ele apenas se agachou com o mesmo cansaço de sempre, puxou um punhado de ervas de uma pequena bolsa no cinto e, sem qualquer cerimônia ou filtro sanitário, tacou metade na própria boca. A outra metade ele despejou num pote de barro mal vedado, onde uma pasta de cheiro acre já esperava pacientemente o próximo ingrediente.

    A mistura chiou levemente quando ele mexeu, liberando um aroma tão potente que fez Lúcia recuar o rosto por reflexo. Aquilo tinha personalidade. E não era boa.

    Sérgio se aproximou de Eva com um cuidado que não condizia com sua aparência desalinhada. Tocou de leve o ombro de Lúcia, pedindo licença com um gesto quase gentil — o que, vindo dele, era o equivalente a um pedido formal por escrito. Depois soltou um suspiro gélido, como se estivesse tentando esvaziar a própria ansiedade, e começou a passar a pasta na testa da menina desacordada. O movimento era cuidadoso, mas mecânico, como alguém que já sabia que aquilo não ia adiantar, mas preferia fazer algo a ficar parado.

    — Sabem se tem um hospital por aqui? — perguntou, sem tirar os olhos da pasta enquanto a selava de volta no pote. — Ou pelo menos uma loja de ervas que não cobre o preço de um rim?

    A pergunta parecia jogada no ar, mas seus olhos logo se voltaram, primeiro para André, depois para Beatriz. Levou menos de um segundo para decidir com quem realmente falar. André tinha o carisma de uma pedra bruta e a expressão de quem raramente usava palavras por esporte. Beatriz, por outro lado, parecia feita para o palco — e talvez tivesse vindo de um.

    — Você só vai encontrar coisa assim mais pro centro — respondeu a mulher, cruzando os braços com um estalar de ombro e um tédio fingido. — Mas a parte do “bom preço” já te aviso que é lenda urbana. O que essa menina tem?

    Sérgio esfregou a nuca, como se tentasse amassar a frustração para caber dentro do crânio.

    — Parece que passou por uma tentativa de corrupção forçada. Mas das duas uma, ou não era compatível com o gene que tentaram implantar… ou já tinha uma constituição mais forte do que o que tentaram fundir nela.

    A explicação saiu em tom baixo, quase um sussurro cansado, como se o próprio assunto fosse um peso que ele já tinha carregado por tempo demais. Esfregou a testa com o dorso da mão suja de pasta e continuou.

    — Nunca vi nada assim, então não vou bancar o especialista. O corpo se recuperou, mas algo no sangue ainda tá brigando por controle. Por isso ela tá nesse estado vegetativo.

    Beatriz franziu o cenho.

    — No sangue?

    — Isso. Mas é mais fácil mostrar do que explicar — murmurou ele, já sacando uma pequena lâmina do bolso interno do casaco puído.

    Sem pedir permissão — ou talvez pedindo em silêncio, com o olhar —, ergueu a mão da garota desacordada e fez um corte longo na palma. Não foi um gesto cruel, tampouco apressado. Parecia… técnico. Seus lábios se moveram num “me desculpe” quase imperceptível, mas seus olhos estavam fixos no que vinha a seguir.

    O sangue escorreu com fluidez. Vermelho-escuro, grosso, mas com algo mais — um brilho sutil, uma presença azulada que se misturava ao líquido como tinta de outro mundo. Aquilo não era natural.

    E então começaram a vibrar, como se fossem seres vivos reagindo à exposição. Lúcia nem piscou. Já tinha visto aquilo antes, Sérgio tampouco. Não era um tremor dramático, mas o suficiente para fazer qualquer um sentir um frio na espinha. Os coágulos se esticaram, tecendo uma rede que puxou o sangue de volta para a ferida. Em menos de um piscar, a pele se fechou, deixando para trás só uma fina marca avermelhada.

    O médico deu um passo para trás e respirou fundo. Já ia começar a traduzir o fenômeno para uma linguagem mais digerível, mas Beatriz não deu chance.

    — Isso vai além de interessante! Ela pulou da cadeira, agarrando a mão de Eva como criança com brinquedo novo. — Mas se o problema é só esse, enfiar remédios goela abaixo não vai resolver porra nenhuma.

    Sérgio franziu as sobrancelhas, não entendendo o ponto que a taverneira queria chegar. Felizmente, não precisou questionar, pois as ações da mulher falaram por si só.

    Beatriz passou o dedo sobre a pele recém-curada da palma de Eva e, usando a própria unha — nada de instrumentos místicos ou artefatos elegantes — reabriu o corte com um gesto seco. Lúcia deu um passo à frente, instintivamente pronta para agarrar o pulso da mulher se necessário. Mas parou. Havia algo naquele casal que cheirava a perigo, mas também a… oportunidade. Se quisessem fazer mal, teriam feito antes. Ou pelo menos é o que ela tentou convencer a si mesma.

    — Para de me olhar estranho. Você podia ter feito isso, garota. — disse a taverneira, casualmente, antes de levar o dedo sujo de sangue à língua. O gosto pareceu agradá-la mais do que deveria.

    — Eu? — Lúcia piscou, confusa.

    — Claro! — Beatriz girou os dedos sobre a ferida aberta, misturando sangue e intuição como uma artista pintando a óleo. — Mas talvez você seja nova demais pra sacar. Mana não serve só pra acender cigarro ou cortar cabeça, sabia?

    Sem mais explicações, esperou. A reação habitual não tardou: os coágulos azulados começaram a vibrar, densos, protuberantes, como se quisessem escapar dali e devorar o quarto inteiro.

    Foi nesse exato instante que ela pressionou a palma com força.

    Eva arqueou o corpo num movimento brusco, mas não convulsionou. Pelo contrário. Imobilizou-se de forma tão absoluta que, por um instante, deixou de parecer viva. Seus músculos estavam tensos, mas sem reação. O tipo de tensão que precede grandes decisões — ou catástrofes silenciosas. O sangue ao redor dos coágulos azuis também endureceu, cristalizando-se em padrões que lembravam teias de aranha congeladas.

    — Teimosos… — murmurou, sem parar o movimento dos dedos. Eles deslizavam pela pele da garota, seguindo um mapa invisível, contornando articulações, saltando nervuras, até pousar com suavidade no centro do peito de Eva. — É bom que ela esteja inconsciente… — avisou, quase com pena. E então, sem hesitar, afundou os dois dedos no esterno da menina.

    O som não foi o esperado. Não houve carne sendo rasgada ou sangue espirrando em jatos histéricos. O que se ouviu foi um estalo seco. Algo entre vidro rachando e um galho quebrando. E, de dentro, ela retirou uma esfera do mesmo tom azulado dos coágulos.

    Pequena. Brilhante. Estranha. Viva.

    O corpo de Eva, liberto do toque, tombou na cama como uma boneca solta.

    — Isso aqui é o problema — sussurrou, girando a esfera entre os dedos como quem examina um artefato sagrado e maldito ao mesmo tempo. — É interessante. Mas não é meu. Não tenho o direito de tomar de você, criança.

    Suspirou, talvez decepcionada com a própria ética, e devolveu o objeto ao corpo da garota. Não houve cerimônia. Apenas o gesto direto, pragmático. Os cristais de sangue ao redor da esfera, no entanto, permaneceram rígidos. Como uma armadura improvisada. O restante do sangue — obediente como sempre — seguiu os dedos da taverneira, preenchendo o buraco deixado pela incursão e fechando a pele com uma grande crosta de ferida.

    — Você aí, médico. Fecha isso. — grunhiu, já se afastando como quem terminava de lavar a louça do jantar.

    Sérgio ainda estava parado. Talvez mais pálido do que o normal.

    — O que… acabou de fazer?

    — Ué, ajudei a menina. Não era isso que queriam? 

    O silêncio que se instalou depois foi espesso.

    E então… movimento.

    As pálpebras de Eva estremeceram. Uma vez. Depois mais uma. Por fim, se abriram de vez — brancas como gelo, quase sem pupilas, mas com uma expressão clara de incômodo. As sobrancelhas franzidas, o ar arfante, a tensão nos ombros. Não era mais um corpo vazio. Havia alguém ali dentro. Confuso, talvez. Mas vivo.

    Seu olhar vagou de rosto em rosto, confuso, perdido. Até que, como se desistisse de entender, deixou a cabeça afundar no travesseiro.

    — Bom, bom. — Beatriz esfregou as mãos ensanguentadas nas calças, como um açougueiro no fim do expediente. — Quem quer bebida?div


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