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    No coração de um pequeno emaranhado urbano, entre fachadas desbotadas e postes que mais sugeriam luz do que a ofereciam, encontrava-se um curioso refúgio. Não era exatamente discreto, mas também não se oferecia ao acaso. Era um lugar que parecia querer ser encontrado, mas só por quem soubesse o que estava procurando.

    Como Maria havia dito, não foi difícil identificar. Em um mundo um pouco menos distópico, o lugar talvez conseguisse se camuflar melhor. Mas ali, em meio a estradas recém-feitas de terra batida e a arquitetura hesitante, a placa de metal oxidado pendendo sobre a entrada chamava atenção como um bicho raro.

    Balançava preguiçosamente sobre a porta de madeira maciça. Letras douradas curvas formavam o nome como quem sussurra uma promessa — ou uma armadilha — adornadas por arabescos que tentavam, sem muito sucesso, parecer sofisticados.

     Madame Eclipse, dizia, com toda a pompa de quem sabe exatamente o tipo de lugar que é: um bar — ou taverna, se você preferisse adicionar um pouco de poeira romântica à ideia. Segundo Brayner, funcionava como um farol para os desesperados, os aventureiros e os que achavam que seguir regras era uma perda de tempo particularmente entediante.

    Ao cruzar a entrada, Ana foi envolvida por uma penumbra morna, quase acolhedora. A iluminação era baixa, mas proposital, como se todos ali estivessem de acordo que o anonimato merecia ser respeitado. Conversas sussurradas se entrelaçavam com risadas abafadas, pairando no ar denso — não tanto pelo calor, mas pela composição: fumaça de tabaco, álcool fermentado e talvez um toque de nostalgia vencida.

    As luzes — vindas de lustres simples, mal moldados e alimentados por mana em estado emocional instável — tremeluziam com personalidade própria. Algumas insistiam em piscar, como se estivessem se comunicando por código morse; outras apenas permaneciam acesas por cortesia. Cada lampejo suave revelava brevemente as mesas de madeira escura, todas com visitantes de expressões tensas, copos meio cheios, punhos cerrados ou relaxados demais.

    Havia algo teatral naquele lugar. Como se todos estivessem atuando um pouco. Mas não fingindo o que não eram — e sim o que ainda tentavam ser.

    Madame Eclipse…

    Ana repetiu mentalmente, tentando encaixar o nome na estrutura do que via. Por um motivo que não saberia explicar, pensou em um café. Não era o café dos seus sonhos, claro. Mas o Madame Eclipse tinha alma. E cheiro de algo real, tal como o de grãos recém-moídos.

    Por um tempo — antes do mundo ser consumido em uma moral flexível —, ela pensara em abrir um lugar assim. Um espaço seu, onde o tempo pudesse desacelerar. Pequeno, paredes forradas de livros, talvez com algumas plantas penduradas e gente sussurrando ideias em vez de planos de sobrevivência. Nunca levou adiante, por motivos que hoje pareciam tão distantes quanto absurdos, mas havia algo na disposição dessa taverna, na familiaridade contida naquele caos organizado, que reacendeu a fagulha desse desejo.

    De qualquer forma, sonhar com algo assim não passava de uma sensação agridoce de quem vê um eco de si mesma num canto esquecido do mundo. Não tinha esperança de realmente concretizar a ideia antes, e também não tinha agora.

    No balcão, uma mulher comandava a cena com uma autoridade sem esforço. Devia estar na casa dos trinta e poucos anos, talvez um pouco mais, embora seus olhos indicassem que já vira o suficiente para não se importar mais com números. Não usava uniforme, mas também não precisava — era evidente que o lugar funcionava ao redor dela.

    Os cabelos escuros caíam em ondas disciplinadas sobre os ombros, moldando um rosto que não pedia desculpas por nada. Tinha uma beleza sólida, afiada nas bordas, e ombros um pouco retos demais. As mãos, sempre ocupadas com algo: um copo, um pano, uma garrafa, uma avaliação silenciosa.

    Ana observou por um tempo, quase esquecendo o motivo de estar ali. Era um tipo de mulher que despertava nela não desconfiança, nem admiração, mas um respeito silencioso, como entre duas espécies que se reconhecem, mesmo não sendo iguais. Aquela era uma delas.

    Foi em meio a tal devaneio, que seus olhos se encontraram por um instante. Durou pouco, mas foi o suficiente para ambos saberem que haviam se notado. Um franzir de sobrancelha seguiu o contato, e então a mulher se virou, sem pressa, e desapareceu por uma porta nos fundos.

    Ana ficou onde estava. Respirou fundo, sentindo o cheiro de algo imprevisível se aproximando. Ainda assim, seguiu em frente.

    — Moça! Aqui!

    A voz veio do canto mais escuro do bar após poucos passos. Ana se aproximou, e sem cerimônia, sentou-se diante de Maria, pronta para iniciar o que fosse aquele encontro. Porém, ao contrário do esperado, não disse nada logo de cara. Sua atenção havia sido desviada — completamente, sem a menor chance de resistência — pela mulher sentada ao lado da comerciante, bebericando pequenos goles de uma caneca de madeira que transbordava em espuma escura.

    Havia algo de impositivo nela, a presença de quem não precisava falar alto para ser notada. Sua pele, de um tom escuro que parecia absorver a meia-luz do Madame Eclipse, somada ao seu batom completamente preto, a fazia quase se fundir ao ambiente, como se parte do bar tivesse decidido se tornar gente por pura elegância.

    Os olhos, escondidos atrás de óculos redondos e pretos que pareciam ter sido desenhados por alguém obcecado por simetria, ainda conseguiam, de alguma forma, ser perceptivelmente penetrantes. Era como se o simples gesto de olhar para ela, fosse também ser olhado de volta — por dentro, inclusive.

    O cabelo estava trançado e preso num arranjo que beirava o cerimonial, mas ainda escapava por um fio de naturalidade. Ao fim do penteado, uma única mecha pendia com um único adorno: um pequeno cilindro metálico trançado ao fio, discreto, mas de aparência artesanal, como um talismã pessoal que ninguém ousaria perguntar do significado.

    As roupas eram… interessantes. Um híbrido cuidadoso entre o antigo e o preciso. Tecido firme, corte justo, mangas longas e gola alta. Era arrematada por um laço escuro no pescoço, sugerindo formalidade, mas sem cair na rigidez. Como se ela mesma tivesse decidido quais regras da elegância seguir… e ignorado o resto.

    Mas foi o corpo que prendeu a atenção de Ana — mais precisamente, a ausência parcial de um corpo orgânico. Os braços da mulher, apenas sutilmente expostos, não eram de carne. Eram inteiramente artificiais, construções complexas e belas, quase como esculturas de um relojoeiro visionário: placas metálicas negras se movendo com fluidez assustadora, juntas discretas, nenhum cabo exposto, nenhuma falha aparente.

    Partes do pescoço também brilhavam sob a luz tímida, sugerindo que a modificação ia além do que se via. Ana se perguntou, por um breve instante, o que ainda era dela e o que havia sido substituído. E se aquilo fazia alguma diferença no fim das contas.

    O sorriso da mulher surgiu lentamente, reconhecendo a perturbadora admiração nos olhos da recém-chegada.

    — E você? Quem é? — perguntou com voz baixa, mas límpida, como se escolhesse cada palavra com cuidado — ou uma ironia gentil.

    Ana abriu a boca para responder, mas não teve tempo de organizar a fala antes que Maria se intrometesse.

    — Puts! Nem percebi que esqueci de perguntar teu nome ontem!

    Ana apenas balançou a mão, dizendo silenciosamente para a jovem não se importar com isso.

    — Meu nome é Ana. Só uma cliente de passagem. E você?

    — Me chame apenas de Colecionadora.

    Ajustando os óculos com um gesto mínimo, deixou seu olhar vagar através de Ana como se estivesse em uma galeria, diante de uma peça intrigante, mas incompleta.

    Nada tão impressionante…” pensou, reconhecendo a lâmina escura pendurada na cintura da garota.

    — É um prazer, mas… colecionadora de quê?

    — Um pouco de tudo — Com um pequeno dispositivo na ponta de seu dedo metálico, acendeu um cigarro preso entre seus lábios. — Mas tenho fascínio especial por itens inexplicáveis.

    A resposta veio vaga, proposital. Ela tragou com calma, como se cada palavra seguinte pudesse ser cortada no meio e nada de valor fosse perdido.

    — Bom, já vi o que precisava ver. — Virou-se levemente para Maria. — Você receberá seu pagamento em breve.

    Sem mais delongas, levantou-se com suavidade e se afastou, deixando para trás as duas garotas atordoadas.
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