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    Nunca fui fã de chá.

    Não por birra, nem por paladar exigente — só não acho que bebida quente deveria ser tão… simpática. Acontece que depois de alguns anos enfrentando monstros e andando com a sola dos pés colada em barro, a gente aprende a respeitar qualquer coisa que não venha tentando te matar.

    Então sim, eu bebia o chá. Fingindo gostar.

    Porque era o que tinha, e porque minha mãe fazia questão de servir como se estivéssemos num domingo qualquer, e não no fim do mundo.

    — Você se tornou uma caçadora Rank E? Isso é incrível! Quando aconteceu?

    O rosto dela se iluminou com uma alegria tão espontânea que por um momento esqueci que ela não gostava da minha profissão. Era fácil esquecer certas coisas quando ela sorria daquele jeito.

    Eu tinha certeza de que ela queria reclamar de como aquela carteira de caçador se parecia com uma CNH, com a grande letra estampada ao lado da minha foto, mas fico feliz que tenha se contido.

    — Foi na minha última missão — respondi, sentando melhor na cadeira de madeira que rangia mais que a consciência de um mercenário. Não queria parecer convencida, mas… — Eu tava de vigia, bem de boa, aí surgiram uns daqueles pássaros estranhos que te falei. Sabe? Os grandões, bicudos.

    Parei um instante para dramatizar o gesto com um bico imaginário.

    Mamãe franziu o cenho. Eu continuei, satisfeita. 

    — Cortei uns dois, três… e do nada: BOOM. — Fiz um gesto com as mãos, como se a mana tivesse explodido do meu peito igual um balão mal calibrado. — Meu corpo inteiro começou a formigar, a mana ficou mais leve, mais… viva.  E pronto. Rank E. Simples assim.

    — Parabéns, minha querida.

    — Obrigada, mãe. — E não consegui evitar. O sorriso veio. Um sorriso bobo, largo, desses que escapam antes que a gente consiga se lembrar de parecer madura.

    Beberiquei mais um gole do chá como se fosse vinho caro. Era chá de alguma erva local — nome impronunciável, gosto ameno, aroma de “não estamos vivendo no apocalipse, juro”. Servia bem o propósito. 

    Melhor que café, de qualquer forma.

    Sei que ela ama, mas o gosto parece um castigo líquido. Chá era, ao menos, previsível. E o jardim da minha mãe tinha ervas suficientes pra abastecer uma taverna inteira. A vida pode ter virado um caos, mas Margareth e seu chá? Imutáveis.

    — O problema agora — continuei, apoiando a xícara com delicadeza exagerada — é que minha guilda ficou presa com assuntos internos essa semana. E adivinha quem teve que lidar com os vendedores ambulantes de novo?

    Ela arqueou uma sobrancelha. A mais cética das sobrancelhas maternas, a que ela usava quando sabia que não ia me convencer de nada.

    — Você devia ser menos rígida, menina.

    — Não posso, regra é regra! — Respondi, sem levantar a voz. Era um reflexo mais do que uma defesa. Eu já tinha esse discurso pronto há anos.

    Ela bufou. Com classe, claro. Um bufar de mãe — curto, sonoro, cheio de julgamento gentil, mas silencioso.

    Talvez ela não entenda. Ou talvez entenda demais. Eu só sei que preciso chegar na elite. Não por fama. Não por glória. Porque no mundo em que vivemos, só sobrevive quem lidera a matilha.

    — Preciso subir na hierarquia, mãe. Se tudo der certo, um dia posso ter minha própria guilda.

    Margareth não comentou. Tomou um gole do café dela e olhou pela janela. O tipo de silêncio que poderia ser tanto aprovação quanto preocupação.

    — O mais irritante — continuei, aproveitando que ainda não tinha sido interrompida por nenhum chamado — são os mercenários. Estão cada vez mais desorganizados. Me irrita ver eles agindo como se fossem acima da lei.

    — Jasmim, Jasmim…

    — Eu sei, eu sei. “Não se mete em problema à toa.” Não consigo nem se eu quisesse. Mas… as notícias correm….

    Inclinei-me pra frente, baixando a voz, como se algum musgo na parede pudesse delatar a conversa.

    — Sabia que apareceu uma nova rainha?

    Ela engasgou por meio segundo. Disfarçou com um “hmm” tão artificial quanto sorriso de burocrata, o tipo que só quem convive percebe. Depois, forçou um sorriso.

    — Ah, sim? Notícia interessante. Algum caçador rank alto que ficou ganancioso demais?

    — Não. É isso que é bizarro. É uma garota. No máximo, e eu tô sendo generosa aqui, rank C. Talvez nem isso. Mas ela… bom, é mais fácil mostrar.

    Peguei o celular do bolso com certa teatralidade e abri o vídeo que recebi na guilda. Uns segundos, só. Mas dava pra ver. A garota era uma máquina. Um festival de violência eficiente.

    — Olha isso — falei, estendendo o aparelho. — Parece só mais uma pessoa qualquer. No dia anterior vi ela toda inocente comprando mercadoria roubada. Aí, tchã-nam, quase esmagando a cabeça de alguém. Pessoas assim não deveriam ficar soltas.

    Minha mãe pegou o celular. Mas algo no olhar dela… vacilou. Não muito. Um milímetro. Talvez nem isso. Mas vi. Ela não respondeu por tempo demais. Estava lá, presa no vídeo como se os píxeis pudessem mordê-la.

    — Mãe?

    Silêncio. Só o vídeo, rodando de novo. E o cheiro de chá esfriando.

    — A senhora tá bem?

    — Ah… tô sim. É só que essa garota…

    Ela parou. Eu esperei. Mas ela não terminou.

    — Bizarra, né? — completei. — Mas deve ser forte. Não parece muito mais velha que eu.

    — Não é isso… é que ela é sua—

    — Bom dia!

    O grito do destino. Ou, no caso, da porta.

    Cliente? Agora? Sério?

    Suspirei e levantei com a eficiência de quem já viveu esse tipo de interrupção mais vezes do que gostaria. Mas quando virei… quando vi quem tinha entrado…

    O chá esquentou de novo dentro do estômago.

    A garota do vídeo. A rainha. A mesma.

    — Ah, Ana! Que bom que você tá aqui, estávamos falando de você.

    — Você conhece ela, mãe? — perguntei, mais por protocolo do que por sanidade.

    A resposta veio com a suavidade de um piano caindo do terceiro andar.

    — Você também conhece, garota boba. Afinal… é sua irmã.

    Silêncio.

    Tá… como é que é?!
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