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    Assim que a porta rangeu, Jasmim franziu o cenho. Era o tipo de expressão que não pedia permissão — surgia como um reflexo irritado. Não reconheceu de imediato a figura à frente, mas as palavras da mãe foram suficientes para deixá-la alerta. Notícias demais em palavras de menos.

    Sua irmã.

    A irmã que sumira sem rastros, sem uma carta, sem nem um mísero “fiquem bem”. Agora estava ali, de pé no meio da loja, como se tivesse saído só para comprar pão.

    — Ana? — A voz da jovem caçadora vacilou, mas não cedeu. — Você tá viva?

    As palavras saíram mais secas do que gostaria. Não era o tom que imaginara usar naquele reencontro hipotético que às vezes ensaiava mentalmente antes de dormir — nas versões mais brandas, havia abraço; nas piores, uma cadeia. Nenhuma delas envolvia essa mistura esquisita de incredulidade, desconforto e uma vontade ridícula de chorar.

    — Pois é. Quem diria que já tínhamos nos encontrado — respondeu Ana, quase como quem comenta o tempo.

    Jasmim quis responder algo cortante, alguma frase que empilhasse os anos de silêncio e jogasse na cara da irmã como uma pilha de papéis mal resolvidos. Mas não disse nada. Só ficou ali, tentando entender por que os olhos estavam marejando mesmo com o peito cheio de pedra.

    A conversa que se seguiu teve a leveza de uma briga de travesseiros recheados com chumbo. Algumas palavras sobre guildas, outras sobre segurança, e Jasmim tentando manter a voz firme enquanto o resto da alma parecia ainda preso em algum ponto entre raiva e alívio.

    Margareth, por sua vez, foi quem tentou preencher o espaço que ficava cada vez maior na pequena sala.

    — Ela voltou ontem. Estava torcendo por essa oportunidade de nos reencontrarmos, mas minhas duas filhas somem sem explicação por dias!

    Jasmim, enfim, desviou o olhar, passando a mão no rosto com uma mistura de raiva e constrangimento. Limpou os olhos rápido demais, como se fosse suor. Depois, respirou fundo. Queria falar de mil coisas com a irmã, de tudo o que aconteceu quando estava desaparecida, assim como saber tudo o que teve que passar. No entanto, também estava irritada.

    — Eu soube do que você fez. — A jovem tentou soar casual, mas o olhar que lançou à irmã era mais clínico do que cordial. — Aquela luta. O vídeo. A coisa da “rainha mercenária”.

    — Ah, aconteceu.

    Ana deu de ombros. Um gesto pequeno, quase infantil, carregado de uma tranquilidade que não combinava com a gravidade do assunto. O sorriso no rosto dela era sereno demais para a situação. Quase irresponsável, o que deixou Jasmim mais irritada.

    — Você tem sorte por não ter ido para o público geral. Mas ouvi que alguns caçadores problemáticos ficaram interessados. Tem muita gente doida por aí. Chamar atenção só vai te tornar um alvo.

    Bufou e olhou para o teto, como se buscasse paciência em alguma rachadura no reboco. E então, não deu chance para uma resposta.

    — Eu vou indo. Meu turno vai começar já, já.

    Pegou o casaco com um gesto contido, quase automático. Beijou a mãe no rosto com a pressa de quem tem lugar para estar, mas ficou um segundo a mais do que precisava. Na hora de se despedir de Ana, hesitou. Não falou nada. Só lançou um último olhar; não havia ódio ali, mas havia peso. E partiu.

    O som da porta se fechando foi discreto. Mas ficou no ar por mais tempo do que devia. Margareth a acompanhou com os olhos. Depois, como quem responde a uma pergunta que não foi feita, murmurou:

    — Não se preocupa. Ela só não gosta tanto de mercenários. Mas vai se acostumar.

    O tom era quase leve, mas o suspiro que veio em seguida desmentia qualquer simplicidade. Havia mais ali. Algo não dito. Ou talvez muitas coisas.

    Virou-se de novo para Ana e serviu a ela uma xícara.

    — Por sinal, Ana, parabéns pela conquista. Devo dizer que ter se tornado uma rainha mercenária foi… bem inesperado.

    — Obrigada…

    — E então? Finalmente lembrou que eu existo? Achei que já tivesse sumido de novo.

    O tom era leve, mas a ironia arranhava por dentro.

    Ana hesitou. Sabia que não havia resposta boa o bastante para aquilo. A visita realmente era tardia.

    — Na verdade… preciso falar com você. Nossa reunião inicial foi estranha, eu sei. Mas… bom. Não tem uma forma fácil de explicar isso. Só que, levando em conta que você é uma leitora, acho importante deixar claro que… eu não sou um monstro.

    Margareth não respondeu de imediato. Sua postura mudou de forma sutil. Não recuou — mas também não avançou. Os dedos, no entanto, estavam tremendo. Não muito. Só o suficiente para que Ana percebesse.

    — Apenas recentemente descobri que não tenho mana.

     Disse isso devagar, como se cada sílaba fosse um passo numa ponte instável.

    — Na verdade, muitas coisas aconteceram quando a humanidade foi teletransportada. Sei lá… não dá explicar a razão. Simplesmente é assim.

    Margareth ficou quieta. Respirou, mas demorou. Os olhos estavam fixos em algum ponto entre a xícara e o vazio.

    — Simplesmente é assim… — repetiu, como quem degusta uma sentença amarga demais para engolir de uma vez.

    Levou a xícara à boca, mas não bebeu. Manteve os olhos no líquido como se esperasse que a superfície tremesse, revelando alguma resposta que ela ainda não tinha. 

    — Não te vejo como um monstro — disse, enfim. — Mas sim, é estranho, algo que não deveria ser possível.

    Passou os dedos pela têmpora, devagar, como quem afasta uma ideia incômoda em vez de um fio de cabelo. Parecia estar reorganizando os móveis da mente para acomodar em algum lugar aceitável a nova peça chamada “minha filha não tem a energia essencial para a existência de vida”. Pegou um frasco vazio no balcão, daqueles que antes guardavam algo importante, e começou a girá-lo entre os dedos. O som do vidro sobre a madeira era baixo, mas constante.

    — Eu tenho uma viagem a fazer em breve. Nada grande. Só buscar alguns materiais. — Seu tom era prático, mas firme. — Quando eu voltar… a gente conversa melhor sobre isso. Com calma. Tá bom?

    Não esperou confirmação. Apenas se afastou ligeiramente do balcão, como quem sinaliza que o assunto, por ora, seria guardado numa gaveta com tranca frouxa. Ainda visível, mas temporariamente fora de uso.

    Ana assentiu com um murmúrio qualquer, o suficiente para selar aquele acordo provisório. Não esperava mais do que isso. E talvez, naquele instante, não precisasse.

    Margareth então pareceu lembrar de algo — um resquício de normalidade no meio do incomum.

    — Ah, e quase me esqueci — disse, virando-se para pegar algo no meio das anotações e folhas secas empilhadas. — A Marina passou aqui mais cedo. Como você não estava, deixou um endereço. Ou melhor, quase isso.

    Estendeu o papel para Ana, que o pegou com um pequeno agradecimento. Não havia ali nada de números, nomes de rua ou coordenadas úteis. Apenas instruções rabiscadas com entusiasmo: uma curva depois da ponte, uma casa com teto inclinado, duas janelas com moldura azul. Marina não era uma cartógrafa, mas tinha estilo.

    Ana leu as indicações com o início de um sorriso. Aquilo vinha na hora certa. Já pensava em reencontrá-los, e agora, o destino parecia querer colaborar — ao menos por hoje. Guardou o bilhete com cuidado, dobrando-o duas vezes antes de colocá-lo no bolso da camisa. 

    Margareth voltou a se ocupar com os frascos e folhas, como se quisesse preencher o ambiente com sons seguros, de vidro e papel. Ana ficou ali por um instante, observando o movimento das mãos da mãe. Depois, sem necessidade de mais palavras, virou-se para sair.
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