Capítulo 38 - Covil
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Era meio da tarde, o que, naquela cidade ainda em construção — física e emocional — não significava muita coisa. As ruas estavam relativamente vazias, mas não completamente silenciosas. Clientes esporádicos circulavam entre as fachadas de madeira improvisada e toldos coloridos demais para suas estruturas precárias. As vozes se espalhavam sem urgência, como se todos tivessem combinado de falar uma oitava abaixo do normal.
Ana caminhava devagar, absorvendo tudo. O ar era fresco, e trazia consigo aquele aroma inusitado de especiarias moídas à mão e ferro aquecido — o primeiro seduzia, o segundo impunha respeito. Era um cheiro civilizatório, de uma comunidade recém-formada tentando se agarrar à ideia de permanência. E lá estavam os ferreiros, inevitáveis e — diga-se de passagem — renomados em tal época tão intensa. Surgiam das fornalhas com a naturalidade de quem nunca deixou de existir, cada um martelando com a convicção de quem crê que está moldando a base de um mundo novo.
Os sons misturavam-se sem hierarquia. Batidas secas de metal contra metal, flautas desafinadas de artistas de rua, um vendedor de ervas anunciando qual cura vinha com mais gosto de menta. Tudo se sobrepunha de um jeito que, contra qualquer lógica, não soava caótico. Era uma sinfonia rude, mas viva. E talvez por isso, Ana permitiu-se um luxo raro: comer algo novo.
A iguaria tinha aparência questionável e um nome que se resumia a “doce”, mas o sabor era intrigante — terroso, com fundo amargo que persistia na língua como se a natureza quisesse deixar um recado. Seiva, disseram. Extraída de uma árvore que crescia só ali, o que provavelmente era mentira.
“Nada mal”, pensou.
Um pouco de doçura de vez em quando não era ruim.
Para sua surpresa, o primeiro pagamento por seu cargo veio de forma pontual, sem qualquer burocracia profunda. Recebeu um celular simples, sem senha e com aplicativos estranhamente funcionando. Era o tipo de objeto que passaria despercebido em qualquer outro mundo, mas ali, representava acesso — mapas, mensagens, listas de missões, notificações de perigo e, mais importante, uma linha direta com a Madame.
E então, as moedas. Oito de ouro, entregues sem cerimônia. Ana nem sabia o que fazer com elas, além de guardá-las com mais cuidado do que guardava qualquer outra coisa. Descobriu, depois de algumas perguntas constrangidas, que uma moeda de ouro equivalia a dez de prata, e cada uma destas valia dez de bronze. Simples, direto, eficiente. E, como tudo por ali, levemente arbitrário.
Para se ter uma ideia prática, uma moeda de prata podia pagar uma semana de hospedagem modesta, incluindo um banho quente se o dono da estalagem estivesse num bom dia. Alimentos básicos giravam entre duas e três de bronze — cinco, se você quisesse luxo, ou algo com carne que não fosse de origem duvidosa.
Com oito de ouro no bolso, Ana estava, tecnicamente, rica. Ou pelo menos, mais rica do que a maioria das pessoas que viviam ali. Claro, sabia que não era dinheiro livre. Perguntou — por protocolo — de onde vinha aquela verba. A Madame apenas olhou diretamente em seus olhos, fingiu pensar e então deu de ombros com um sorriso ambíguo que dizia de forma muda “não pergunte, só aproveite”.
Não insistiu. Estava longe de ser uma especialista em economia de pós-apocalipse, mas reconhecia um bom conselho quando ouvia um.
“Metade desse dinheiro, se tu for esperta, vai pra tua equipe” disse a Madame, enquanto limpava copos que não pareciam exatamente sujos. “Dinheiro compra confiança. Não recomendo esquecer disso. O resto, equipamento.”
Era direto. Prático. Um pensamento simples, sim, mas com peso.
Ana acatou. Separou quatro moedas de ouro e decidiu que cada membro da sua equipe — se é que podia chamá-los assim ainda — receberia uma delas. Era mais do que a maioria dos caçadores ganhava num mês, e, convenhamos, mais do que qualquer um deles esperava. Era um investimento. E mais do que isso: uma aposta de que talvez, só talvez, ela fosse capaz de manter um grupo unido sem precisar fingir que sabia o que estava fazendo.
No fim, estava estranhamente satisfeita com a decisão. Um pouco mais segura de tudo.
Sim, ainda havia mil perguntas sem resposta.
Mas por ora, tinha comida, tinha um destino, e tinha oito moedas — tinha, pois sumiam rápido.
Com as forjas ainda ressoando ao fundo, separou duas moedas de ouro e entregou-as a um ferreiro cuja barba parecia mais agradável que a dos demais. Não negociou — o tempo não permitia luxos, e ela estava sem paciência para teatrinhos de vendedor.
O que voltou em sua direção, pouco depois, foi um conjunto modesto: um martelo novo, uma bigorna pequena — mas ainda pesada — que exigiria mais esforço do que técnica, algumas barras de aço de qualidade questionável e um frasco com óleo para têmpera. Um kit ótimo para quem pretendia bater metal até fazer sentido. Felizmente, com a alta disponibilidade de materiais do novo mundo, esse tipo de coisa era extremamente barato.
Ana sabia que não seria suficiente. Nenhuma dessas peças duraria muito em combate real, e aquele aço, na melhor das hipóteses, aguentaria um monstro de categoria apenas mais fraco do que o que enfrentara antes. Ainda assim, era melhor do que seguir sem nada, e o resto de sua armadura anterior era a prova disso. Afinal, foi ela que garantiu que ainda tivesse um braço.
Havia urgência em todas essas ações.
Sua missão inaugural, aquela que vinha com o selo decorativo de “especial” e o risco de morte implícito, estava programada para acontecer em três dias. O número não parecia generoso à primeira vista, mas eram trezentas horas, se quisesse ser otimista. Porém,Ana conhecia bem o tipo de tempo que o mundo oferecia agora: aquele que escapa por entre os dedos assim que você desvia o olhar.
Por isso, recusou os trabalhos mercenários comuns disponíveis. Um ou dois combates rápidos talvez rendessem mais dinheiro, mas não trariam preparo. E ela precisava de preparo. Mais do que moedas, mais do que aplausos.
A tal missão veio com promessas vagas de simplicidade, mas nem ferrando iria confiar nisso. E ela definitivamente não queria virar estatística. Já bastava ser um milagre ambulante.
Seus planos, portanto, seguiam outro caminho.
Ciência.
Era essa a palavra que ela sussurrava mentalmente como se fosse uma oração. Ciência, aquela velha aliada que não resolveria tudo, mas era um começo.
Era um termo abrangente. Um pouco engenharia, um pouco alquimia, um pouco tentativa-e-erro embalada em papel de rascunho.
A prioridade imediata era simples: transformar sucata em algo funcional. Um espaço onde pudesse testar ligas, forjar lâminas personalizadas, talvez até desenhar armaduras que compensassem sua ausência de mana com resistência física e um toque de pavor visual. Algo que gritasse “não vale a pena lutar comigo” antes mesmo de uma briga começar.
Mas havia outros rascunhos em sua cabeça.
O braço perdido de Felipe, por exemplo, ainda estava grudado em sua memória como uma tarefa pendente. Não era só pena — embora isso também estivesse ali, numa camada funda e mal resolvida — era propósito somado a curiosidade.
Além disso, havia a questão da mana.
Mesmo que ela não a tivesse — e tudo indicava que realmente não tinha — ainda era fascinante estudá-la. Como ela fluía, como reagia com certos metais, como se entrelaçava com tecidos vivos. Era como observar um idioma estrangeiro que o mundo inteiro falava fluentemente, menos ela. E se não podia usá-lo, aprender a lê-lo parecia o próximo passo natural.
Sim, ela queria entender esse novo mundo.
Suas estruturas, suas falhas. Seus sistemas.
Porque sistemas podem ser burlados.
De qualquer forma, chegou ao local designado pouco depois, seguindo o trajeto mal rabiscado por Marina. A letra da garota era um desafio à caligrafia e à cartografia, mas, no fim, funcionava — com suas indicações coloridas, desenhos malfeitos e a instrução final: “a porta é feia, mas abre”.
A região era mais afastada, meio esquecida pelas rotas principais, o tipo de lugar que parecia existir por inércia. Havia poucas construções ao redor e, entre elas, um silêncio peculiar, como se até o vento tivesse receio de soprar muito forte.
A construção em si era um galpão, ou algo que já tivera esse nome em algum ponto do passado, mas covil parecia um nome mais adequado. As paredes de concreto lascado ainda resistiam bem ao tempo, embora as janelas quebradas e as camadas sobrepostas de grafite sugerissem que resistência não vinha acompanhada de vaidade.
Mas havia espaço. E isso bastava.
O quintal, apesar do mato alto e de alguns entulhos esquecidos, oferecia potencial. Era amplo o suficiente para montar uma pequena oficina, uma horta improvisada e, com algum esforço e o risco constante de tétano, talvez até um espaço de treino para o grupo. Aquilo não era exatamente um lar. Mas era um ponto de partida.
Empurrou a porta com calma, e ela respondeu com o som que portas abandonadas fazem quando sentem que não estão mais sozinhas. Do outro lado, um cômodo grande demais para ser aconchegante e pequeno demais para justificar o eco. Havia cheiro de sopa e de madeira úmida.
E pobreza.
Não a miséria gritante, mas aquele tipo de falta de recursos que vem acompanhada de improvisos: móveis desalinhados, colchonetes encostados em paredes, panelas penduradas em pregos tortos. Um fio atravessava o teto com roupas penduradas que já estavam secas, mas continuavam ali como parte da decoração. Um ventilador quebrado fazia figuração em cima de uma cadeira.
— Hã? Ah, Ana. Entra aí — disse Alex, distraído, ao notar o rangido da porta.
Estava sentado no chão, encostado na parede, limpando alguma coisa que poderia ser uma faca ou uma peça de caça. O tom era o de sempre — despreocupado, acolhedor. O tipo de voz que dizia “tá tudo bem” mesmo quando nada estava. Ana gostava disso nele.
A rainha mercenária olhou em volta.
“Estão mais na merda do que imaginei…”, pensou, enquanto o olhar pairava numa caixa de papelão servindo como mesa e uma panela de ferro apoiada diretamente no chão, fervendo com o que cheirava como sopa de… possibilidades.
— Pensei que cê nem ia mais vir — comentou Júlia, sem desviar os olhos da própria refeição. Sentava-se próxima ao outro jovem, mastigando com calma e uma expressão de quem não fazia questão de parecer receptiva.
O prato era uma tigela velha, rachada nas bordas. Dentro, pedaços de pão mergulhados no líquido espesso demais para ser considerado leve, mas ralo demais para ser confiável.
— Seria estranho eu não aparecer depois de ter sido convidada — disse Ana, avançando alguns passos, o tom leve, quase brincalhão.
— É, mas sei lá, você sumiu logo depois que a gente chegou.
— Muita coisa aconteceu de uma vez só.
— Sei. Pode falar que só não queria ver a gente.
O comentário veio seco, mas sem mágoa. Mais constatação do que acusação. A ruiva, falava como se, tal como ela própria era, quisesse que as pessoas fossem diretas, mesmo que doesse. Estava com a postura relaxada, mas o olhar fixo nos gestos de Ana, como se pesasse cada movimento.
Ana riu, sem pressa, e se abaixou devagar ao lado de Alex.
— Pelo contrário. Ver vocês era o que eu mais queria. Temos muito o que conversar…
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