Capítulo 41 - Prótese
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
— Faz tanto tempo, velho amigo.
Ana distribuiu a lenha no forno com o cuidado de quem monta um quebra-cabeça que ninguém mais verá completo. Cada pedaço era ajustado precisamente, deixando espaços calculados para que o ar fluísse sem esforço e o fogo respirasse como um ser vivo. Ela gostava do ritual, gostava do controle que vinha dele, embora controlasse tão poucas coisas ultimamente.
Enquanto acomodava as ferramentas com um zelo que beirava a obsessão, Ana murmurava palavras meio lúcidas, meio insanas, que desapareciam antes mesmo que alguém as pudesse entender.
— Você viu como melhorei? — sussurrou, lançando um olhar demorado para o canto vazio onde ele costumava estar. — Lembra quando você dizia que eu jamais dominaria o martelo? Não tive a chance de te mostrar… você dormia tanto…
Em silêncio, ela voltou a atenção aos foles, pressionando-os para criar um fluxo constante de oxigênio para o fogo. As chamas reagiram imediatamente, crescendo num murmúrio quente e acolhedor, respondendo a ela da única forma que podiam: em silêncio absoluto.
O fogo, embora excepcionalmente bonito, era péssimo em conversas.
Ali, diante da dança das sombras provocada pelas labaredas, Ana sentiu a atmosfera mudar lentamente. Não era apenas uma preparação trivial para mais uma noite de trabalho, mas algo muito mais simbólico — o começo tímido de um futuro ainda incerto, cada faísca lançada ao ar como um novo universo nascendo e se apagando no mesmo instante.
Era impressionante como um simples fogo tinha a audácia de sugerir tantas possibilidades.
— Olhe para mim agora, Gabriel.
Ele não consegue olhar.
— Ué, claro que consegue.
Não. Não consegue.
Ana abanou as mãos como quem espanta um mosquito invisível, rindo para si mesma, um riso leve e amargo que escapou pelos lábios antes mesmo que pudesse segurá-lo. Sua visão tornou-se turva por um instante, preenchida por lembranças que chegavam sem convite. Talvez fosse sua imaginação, mas por um breve instante, ela teve certeza de que uma silhueta familiar observava-a das sombras no canto da sala. Podia jurar que sim.
Foi quando a porta se abriu, e Felipe surgiu, trazendo uma mudança repentina de energia que afastou os fantasmas.
— Oi, Ana. Cheguei! — A empolgação do rapaz era palpável, preenchendo cada espaço da oficina com uma leveza quase contagiante. — Então no fim você realmente conhecia o ferreiro?
Ana encarou Felipe por um instante, tentando compreender a curiosidade estampada no rosto dele. Então, subitamente lembrou-se que talvez tivesse pulado alguns detalhes importantes. Isso costumava acontecer com frequência. Ela virou-se, fazendo uma reverência tão formal que chegava a parecer irônica, e anunciou com teatralidade contida.
— Perdão pela confusão anterior, permita-me recomeçar. Sou Ana, a artesã.
Felipe abriu e fechou a boca algumas vezes antes de responder. Uma reação justificável, já que apresentações repentinas geralmente causam isso nas pessoas.
— O quê…?
— “O quê?” nada, sou uma pessoa de múltiplos talentos. É isso!
Felipe coçou a cabeça com a única mão disponível, tentando entender a lógica peculiar da garota à sua frente.
— Certo. Não podia ter avisado antes, então?
— Me esqueci — respondeu Ana, com um dar de ombros casual, como quem esquece uma panela no fogão aceso ou uma criança na escola.
Felipe suspirou resignado e sentou-se em uma bancada próxima à porta. Seu olhar percorreu o pequeno galpão, admirando as ferramentas alinhadas. A fornalha acesa lançava sombras irregulares pelas paredes, dando-lhe a sensação reconfortante de estar diante de um mistério particularmente acolhedor. Ele gostava disso.
“Bom, só posso torcer pelo melhor”, pensou o jovem, lançando um olhar profundo, quase filosófico, para Ana. “Se foi ela que fez aquela peça anterior, então talvez eu esteja em boas mãos.”
Respirou fundo, tentando se preparar para o que vinha a seguir, seja lá o que fosse.
— Então, chefe, por onde começamos?
Ana sustentava um sorriso leve no rosto, daquele tipo que nunca revelava exatamente o que ela estava pensando, mas que também não chegava a ser sinistro.
— Primeiro preciso das medidas exatas do seu braço esquerdo. Depois, seguimos para a fornalha, onde eu vou modelar a prótese em aço. Por fim, aprender a aplicar as runas de engenharia mágica nela. Simples, não?
Felipe arqueou uma sobrancelha, o que já era o suficiente para expressar a profundidade da sua desconfiança.
— Bem, quando você fala assim, realmente parece simples. Mas o que exatamente você quer dizer com “aprender”?
— Detalhes, detalhes — respondeu Ana com um gesto vago da mão, como se afastasse uma preocupação irrelevante. — Apenas me siga. O fogo já está quase quente o suficiente para derreter aço.
O jovem decidiu não insistir. Às vezes era mais seguro apenas seguir as instruções de alguém que parecia saber o que estava fazendo — ou ao menos fingia muito bem.
Ana começou o trabalho com uma atenção silenciosa. Cada contorno, cada músculo e tendão do braço remanescente foi cuidadosamente medido e anotado em seu caderno de desenhos, que acumulava páginas e páginas de rabiscos e comentários misteriosos, compreensíveis apenas para ela. Vendo os resultados, repetiu mentalmente os passos várias vezes, e só depois disso permitiu-se aproximar da fornalha.
Ali, Ana sentiu-se finalmente em casa.
Conferiu mais uma vez a liga metálica escolhida, como alguém que revisa uma lista mental antes de sair em viagem, e reprovou silenciosamente sua escolha. Queria ter tempo de buscar algo melhor. Os jogou ao fogo.
O aço logo assumiu aquele tom avermelhado que lembrava vagamente um amanhecer irritado com o despertador. Ela testou a maleabilidade do material com um espeto fino, aprovando o resultado com um leve aceno de cabeça.
— Muito bem — sussurrou, mergulhando inteiramente em seu próprio universo particular.
A partir daquele momento, cada martelada tornou-se parte de uma melodia própria, não especialmente bonita, mas muito satisfatória. As batidas eram firmes, ritmadas, cada uma impondo ao aço a forma e a função exata que ela desejava.
“Não é algo que qualquer um possa fazer, isso é certo”, refletiu Felipe, acompanhando com um fascínio quase religioso cada movimento da garota diante da bigorna.
As horas implacavelmente passaram, e o canto dos pássaros logo chegou aos seus ouvidos, junto com raios amarelos que criavam desenhos abstratos pelo chão.
Felipe se manteve calado o tempo todo, com o receio razoável de que qualquer palavra sua pudesse interromper aquele delicado e poderoso processo. Quando o quinto ou sexto bocejo irrompeu de sua boca, mesmo contra sua vontade, Ana finalmente parou.
Respirou profundamente e com dedos já acostumados ao calor intenso, tomou um pedaço de carvão e começou a desenhar no aço moldado. Cada símbolo era meticulosamente posicionado, traços que pareciam vivos, esperando somente o incentivo certo para despertarem. Apesar de concentrada, a jovem milenar franzia o cenho, perturbada pela lembrança dos malditos livros, os quais insistiam em afirmar que ferramentas mágicas exigiam o uso de mana. Uma grande limitação, diga-se de passagem.
— Ei, preciso da sua ajuda agora — sua voz saiu rouca e áspera, resultado inevitável das horas passadas diante do calor impiedoso.
Felipe saiu do estado quase hipnótico em que estava, aproximando-se com cautela da bigorna, como quem teme esbarrar em algo muito importante.
— Claro. O que exatamente você precisa que eu faça?
Ana hesitou, buscando as palavras certas para explicar um processo que nem ela própria entendia completamente.
— Hmmm… quero um fluxo constante de mana pela prótese enquanto finalizo as runas. Você consegue?
O ex caçador ficou pensativo por alguns instantes, mas logo acenou com a cabeça.
— Imagino que sim. Se for parecido com o que faço para fortalecer armas durante as lutas, deve dar certo…
Sem mais explicações, Ana limitou-se a um aceno curto — um gesto simples, mas que parecia implicar um mundo inteiro de expectativas mal explicadas. Felipe, por sua vez, fechou os olhos com uma solenidade exagerada que a situação não exigia, mas que parecia agradá-lo. Em pouco tempo, um brilho sutil, entre o azul e o cinza, espalhou-se pelo metal recém-forjado. Ana observou o fenômeno com atenção crítica, mas decidiu não comentar; afinal, criticar a forma que cada um conduzia a mana nesse novo mundo parecia quase tão educado quanto reclamar da decoração da casa de outra pessoa. Melhor deixar para lá.
Aproveitando o fluxo de energia que o rapaz fornecia, retornou ao trabalho com murmúrios ritmados, repetindo cuidadosamente cada passo, cada detalhe necessário. Percorreu com a ponta dos dedos cada uma das linhas desenhadas na peça, conferindo vértices, ângulos e curvas com uma precisão que ela gostava de chamar de “profissional”. Então, com o pequeno maçarico em mãos, aqueceu cada uma das dezenas de runas individualmente — um trabalho que exigia uma paciência quase infinita e o otimismo cego daqueles que acreditam que tudo dará certo no final. Por sorte, ela possuía ambos, ainda que nem sempre ao mesmo tempo.
Aos olhos desinformados, aquelas marcas gravadas no metal poderiam parecer rabiscos sem lógica, fruto de uma criança inquieta com acesso a ferramentas perigosas. Mas a verdade, claro, era mais interessante e menos irresponsável: as runas eram frutos do talento humano em observar minuciosamente coisas que não entendiam e depois fingir que sabiam exatamente o que estavam fazendo. A humanidade tinha uma longa e ilustre história nesse departamento.
Em essência, as runas funcionavam como circuitos lógicos esculpidos diretamente na matéria, transportando mana como se fossem pequenas veias metálicas. Cada uma, com sua própria função, simulava o funcionamento interno de um corpo humano, traduzindo desejos vagos em ações concretas. No fundo, talvez fossem apenas a maneira humana de dizer ao universo como ele deveria se comportar — ainda que o universo normalmente não estivesse muito interessado em escutar.
Ana havia lido que, em Aurórea, criar padrões novos era uma tarefa restrita aos leitores — com aquela clara e irritante visão profunda da mana. No entanto, após a reintrodução das tecnologias antigas (como ultrassons e venoscópios, instrumentos maravilhosamente práticos que permitiam a qualquer um fingir ser um mini leitor), novas runas passaram a surgir em velocidade alarmante, muitas vezes testadas de maneira precipitada e perigosamente otimista.
A partir daí, surgiram rabiscos bastante úteis, como os de controle, que permitiam que objetos fossem comandados com o simples poder do pensamento (uma ideia que sempre causava arrepios em qualquer um preocupado com questões éticas), e a de movimento, que fazia materiais rígidos se comportarem de maneira bastante flexível, poupando os engenheiros do trabalho ingrato de construir engrenagens complexas.
Ana, porém, não se importava muito com isso. Desde que o metal à sua frente fizesse exatamente o que precisava, ela estava satisfeita. E se não fizesse — bom, ela simplesmente começaria de novo, praguejando internamente contra todos os acadêmicos, leitores, equipamentos de precisão que não fizeram bem o suficiente o seu trabalho.
Quando finalmente terminou, inesperadamente exausta, Ana mergulhou a prótese quente em um tanque de óleo próximo. A reação imediata produziu um chiado satisfatório e, talvez, até musical, como uma orquestra em miniatura. Não era exatamente uma sinfonia clássica, mas algo igualmente gratificante. Após esperar que as últimas bolhas terminassem seu tímido espetáculo, retirou-a com cuidado, e dedicou-se então a um meticuloso polimento.
Queria algo impecável — não apenas funcional, mas também belo à sua própria maneira pragmática. Após tantas horas de esforço, permitiu-se sorrir de forma quase triunfante, ainda que discretamente. Afinal, nem sempre ela tinha o prazer de ver suas criações correspondendo às altas expectativas que estabelecia.
— Pronto. Essa coisa tá bonita demais… testa!
A peça, agora fria e reluzente sob o amanhecer indiscreto, parecia muito mais do que um simples substituto mecânico para um braço ausente. Felipe tomou-a cuidadosamente e encaixou-a no ombro vazio. No instante em que o metal tocou sua pele, sentiu uma pressão estranhamente acolhedora, como se o braço tivesse decidido voltar após uma pausa prolongada e inexplicável.
— Isso é surpreendente — murmurou, incapaz de esconder a admiração em sua voz. Os dedos da mão artificial tremiam levemente. — Só que… acho que não tá funcionando.
Se encararam por um longo segundo, o tempo necessário para que a realidade se acomodasse confortavelmente no ambiente. Lentamente, um sorriso sem graça surgiu no rosto de Ana e foi logo espelhado pelo de Felipe. As risadas vieram logo em seguida, um riso genuíno, alimentado mais pelo cansaço acumulado do que por qualquer outra coisa.
— É claro que não ia funcionar logo de primeira — comentou Ana, balançando a cabeça enquanto soltava um suspiro exageradamente dramático. — Desde quando as coisas são fáceis pra mim?
Sem cerimônia, atirou a peça incompleta de volta à fornalha. Felipe observou com uma expressão entre divertida e resignada enquanto ela retornava aos foles para reacender o fogo.
— Parece que vai ser um daqueles dias intermináveis — continuou ela, resmungando consigo mesma.
Ainda assim, enquanto observava as chamas renascerem obedientemente, Ana sentia que tudo estava bem. Afinal, eram justamente esses pequenos desafios, esses “quase acertos”, que davam sentido à sua busca contínua.
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