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    “Pra quem partiu buscando o fim do mundo,
    Qualquer lugar no mapa é direção.
    Se a vida é curta e o caminho longo,
    Que nossas vozes virem canção.”

    Cinco vozes cantavam alto e de forma duvidosa, preenchendo o silêncio quase sagrado da floresta com notas que jamais deveriam ser reproduzidas diante de um público. Ana, tal como antes, havia começado a melodia, escolhendo com precisão maliciosa uma música simples entre as que ela própria havia escrito. 

    Não era uma questão de exibicionismo musical; longe disso. Ela sabia que viagens a pé — sobretudo aquelas que se estendiam por centenas de quilômetros e duravam dias, semanas talvez — tinham a tendência irritante de azedar rapidamente o ânimo das pessoas. Nada como uma canção fácil para manter os espíritos elevados, ou pelo menos suficientemente distraídos para esquecerem que os pés doíam e que estavam bêbados demais para perceberem isso claramente.

    A ideia, para surpresa agradável de todos, havia dado muito certo. Mesmo Marina, normalmente tão reservada e cautelosa em revelar qualquer emoção que pudesse indicar que ela estava se divertindo, agora entoava os versos em voz alta, um pouco rouca, segurando uma garrafa de cerveja barata que Ana sabiamente havia trazido. Claro, a bebida não era infinita, já que a ausência de uma carroça limitava as opções de transporte de qualquer coisa que não fosse essencial — e mesmo assim, a cerveja barata tinha sido classificada, democraticamente, como um item indispensável à sobrevivência emocional daquela viagem.

    Os dias passaram sem grandes incidentes além da ocasional queda patética provocada pela combinação de álcool e raízes traiçoeiras. Tudo corria absurdamente bem, considerando a reputação da floresta de guardar criaturas pouco simpáticas. Ana chegou a desconfiar momentaneamente que havia algo errado justamente por causa dessa calmaria toda, mas preferiu não manifestar seus pensamentos pessimistas em voz alta. Estragar um bom clima não era exatamente sua ideia de liderança inspiradora.

    Mas até mesmo viagens descontraídas têm finais inevitáveis. A música cessou naturalmente quando chegaram às margens da floresta, onde uma visão intrigante roubou a atenção de todos e abafou qualquer vontade de continuar cantando. O cenário era abrupto: uma linha perfeitamente desenhada dividia a vegetação densa e úmida da floresta de uma região árida e pedregosa, onde o verde havia desistido de tentar prosperar. À frente, abria-se um imenso e intimidante desfiladeiro, profundo o suficiente para Ana imaginar que, se alguém caísse ali dentro, teria tempo de sobra para reconsiderar todas as decisões ruins já tomadas antes de chegar ao fundo.

    O grupo observava silenciosamente o cânion, a leve embriaguez agora se dissipando, substituída por uma mistura saudável de respeito e apreensão diante daquele marco que representava os limites do mundo civilizado — ou algo próximo disso.

    — O ambiente mudou demais… — Ana comentou baixinho, quebrando o silêncio e atraindo o olhar curioso de Marina.

    — Ambiente? — perguntou a manipuladora, franzindo as sobrancelhas e inclinando a cabeça com aquele jeito desconfiado de quem pressente que está prestes a ser educada contra a própria vontade.

    — É estranho termos uma região tão grande de caatinga bem no meio de São Paulo — Ana respondeu, pensativa. — Só devíamos ter lugares assim bem mais pro norte do país. Não que seja tão surpreendente, mas é geograficamente incoerente.

    O restante do grupo ouviu em silêncio educado, olhando uns para os outros numa confusão quase comovente. Ana suspirou suavemente; era óbvio que eles não tinham ideia do que ela estava falando. Geografia não costumava aparecer nas prioridades curriculares quando se crescia em meio a batalhas constantes pela sobrevivência. Afinal, conhecer mapas e climas não ajudava muito quando se precisava urgentemente derrotar algo grande com dentes que podiam te finalizar em um instante.

    Com um pequeno sorriso irônico, Ana decidiu encerrar ali a aula improvisada e encarar o grupo diretamente, adotando a expressão séria que havia ensaiado tantas vezes antes da viagem:

    — Bom, pessoal, última chance de vocês desistirem e voltarem atrás. Dessa vez é sério, não pretendo repetir a oferta.

    Havia repetido o mesmo aviso tantas vezes durante a viagem que já soava como um mantra cansado, tornando irritante até para si mesma. Não que acreditasse realmente ser capaz de persuadir o grupo a voltar para casa, mas ainda assim sentia-se na obrigação de reforçar o risco absurdo em que estavam se colocando. Era sua forma de aliviar um pouco a culpa que começava a se acumular na consciência sempre que olhava os jovens à sua volta.

    Arriscar a própria vida era algo compreensível, uma espécie peculiar de esporte pessoal. Mas arrastar adolescentes teimosos junto consigo beirava o cruel. No fundo, esperava que aceitassem e deixassem-na sozinha com suas decisões ruins e com uma quantidade maior de cerveja para administrar durante o retorno.

    No entanto, aquelas quatro cabeças-duras pareciam ter desenvolvido imunidade aos seus conselhos. 

    — Ô criatura, cê não cansa não? Já não ficou claro que não viemos só por causa da missão? — Júlia, por exemplo, era particularmente resistente à lógica ou bom senso, especialmente quando dinheiro e batalhas estavam envolvidos. — Lá perto de casa, aqueles lobos andam sempre em bando, é um saco enfrentar eles. Aqui, pelo relatório, parece que os bichos andam sozinhos e ainda são quase todos rank E. Se não é o lugar perfeito pra gente ficar mais forte, então não sei o que seria! Treinamento fácil e dinheiro garantido… que prejuízo que tem nisso?

    — Você sabe que não é só pelos monstros. É pelas Sombras que—

    Mas antes que pudesse completar a frase, Alex avançou com passos largos e excessivamente animados para alguém usando uma armadura tão pesada, envolvendo as duas num abraço tão apertado quanto desnecessário.

    — Relaxa aí, Ana! Você é a líder, né? Então aceita nossa escolha ou nos manda embora de uma vez, pô! Tem que confiar mais em nós, somos profissionais!

    As palavras eram encorajadoras, e o sorriso largo e confiante até que escondia bem, mas Ana podia sentir nitidamente o tremor sutil nos dedos do jovem lanceiro pousados sobre seu ombro. Aliás, não era só ele. Uma rápida inspeção visual no resto da equipe confirmou o mesmo diagnóstico: Marina mordia nervosamente o lábio inferior, Felipe apertava a alça da mochila como se ela pudesse fugir a qualquer instante, e mesmo Júlia, com sua fachada durona, batia levemente o pé no chão em um ritmo acelerado demais para significar tranquilidade.

    Não poderia ser diferente, claro, considerando a ameaça que enfrentariam.

    Sombras.

    O tipo de criatura sobre a qual se sabia quase nada, exceto que eram perigosas o suficiente para merecerem virar histórias infantis sádicas, daquelas que pais contam quando não conseguem mais suportar a rebeldia de crianças difíceis. Frases adoráveis como “Se não dormir cedo, as Sombras vão te buscar” ou “Não gosta de comer cenoura? Pois é, elas adoram crianças com deficiência de vitamina”, eram relativamente comuns, clássicas entre os preguiçosos demais para pensar numa ameaça mais criativa, embora pouco eficientes em termos pedagógicos.

    Mas a verdade — ou pelo menos a parte superficial dela, já que Ana tinha a certeza incômoda de que muito ainda era desconhecido — era menos folclórica e mais perturbadora. 

    Sombras eram indivíduos deteriorados, frutos retorcidos do estranho mundo pós-mana. À primeira vista pareciam humanos — embora “humanos” fosse uma palavra que nem todos estariam dispostos a usar para descrevê-las — mas a mana não circulava normalmente em seus corpos. Não era como em Ana, cujo interior permanecia numa ausência desconcertante. Em vez disso, fluía em seus organismos algo diferente: uma energia manchada, desagradável, capaz de provocar em qualquer um uma repulsa instintiva, daquelas difíceis de explicar, mas fáceis de sentir.

    Fisicamente, possuíam traços estranhos, pequenos detalhes grotescos que tornavam sua natureza evidente aos olhos mais atentos. Chifres pontiagudos, firmemente enraizados em seus crânios; unhas afiadas como garras, naturalmente afiadas demais para serem apenas descuido de higiene; peles extremamente claras ou escuras — sem jamais se dar ao trabalho de assumir tons intermediários, como se até nisso fossem propositalmente exageradas.

    Pelo relatório entregue a Ana, havia de uma a duas dessas criaturas perseguindo Margareth, o que significava que ela poderia morrer de uma a duas vezes, dependendo de como alguém preferisse fazer esse cálculo pessimista. Talvez essa matemática não fizesse muito sentido, mas a garota não estava interessada em questionar as leis absurdas da mortalidade naquele momento.

    O pequeno grupo quase mercenário não conhecia em detalhes todas as histórias assustadoras sobre tais seres, e Ana pretendia que permanecesse assim pelo maior tempo possível. Informá-los além do necessário parecia apenas um jeito particularmente cruel de destruir a confiança que ainda restava. Bastava que entendessem o básico: encontrar uma Sombra significava, em resumo, um encontro provavelmente fatal.

    — Certo, certo. Se vocês querem tanto insistir em ser idiotas, eu desisto — suspirou Ana, massageando as têmporas com um gesto quase teatral de quem já havia desistido da humanidade. — De qualquer forma, obrigada por virem até aqui comigo.

    Todos sorriram ao mesmo tempo, e em conjunto, viraram-se para o novo horizonte. Respirando fundo, deram o primeiro passo em Kurt. Um passo encorajador para o início da real aventura, o qual elevou os ânimos por incríveis três segundos, pois ao sentir as primeiras rochas na sola das grossas botas de couro, o chão vibrou.
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