Índice de Capítulo

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    — Você podia ter nos dado pelo menos uma semana…

    Alex resmungava enquanto estalava os ombros como se a culpa do mundo recaísse diretamente sobre eles. Andava com um semblante tão amuado que era difícil decidir se era dor física ou pura birra. Provavelmente uma mistura funcional dos dois. Felipe, já acostumado à arte milenar de ignorar o irmão, apenas revirou os olhos e seguiu em frente, resignado.

     — Já disse que não temos tempo. A gente parte hoje à noite — respondeu Ana, sem sequer virar a cabeça.

    Adentraram o covil entre discussões sem grande propósito. Ninguém ali estava em condições ideais para outra missão, mas, curiosamente, ninguém se deu o trabalho de recusar. Nem mesmo um protesto simbólico.

    A ganância, afinal, movia montanhas. E aparentemente corpos com costelas quebradas também. Especialmente agora que, graças ao novo emblema de Prata Patrono, o salário deles havia saltado para três moedas de ouro cada. Um valor alto para o padrão de um pequeno bando… mas Ana sabia que a melhor forma de comprar lealdade não era com discursos inspiradores. Era com dinheiro vivo e brilhante. Preferia não economizar com quem poderia, em breve, carregar sua vida nas mãos.

    Antes que qualquer outra reclamação brotasse — e Ana sabia que brotaria — ela ergueu uma mão em comando silencioso e apontou um dedo para os lábios, pedindo silêncio.

    Havia algo errado. O tipo de errado que o corpo percebe antes da mente formular. O cheiro do ar, o peso dele contra a pele… nada encaixava.

    Sacou sua faca com movimentos lentos e começou a rondar a pequena barraca, passos leves, como quem já conhecia a dança.

    Foi então que o viu.

    No jardim dos fundos, um homem a aguardava.

    Quando Ana se aproximou, ele se curvou de forma teatral, como se fosse o anfitrião e ela, a convidada descuidada.

    — Olá, rainha! — bradou, com uma voz alta o suficiente para ser ouvida, mas ainda assim controlada. — Eu formalmente peço que me enfrente!

    O homem era alto, de cabelos loiros e curtos. Seu rosto era gentil, quase convidativo, mas os olhos… os olhos eram ocos. Não de malícia — pior —, ocos de quem não se importava. Como quem pede um café ou um duelo com a mesma intensidade emocional.

    Duas espadas curvas repousavam nas suas costas, tão polidas que Ana podia jurar que nunca haviam sentido o gosto de sangue ou de suor. As empunhaduras pareciam ter saído da loja naquele mesmo dia, sem o desgaste natural que uma arma real deveria exibir.

    Ana apertou as têmporas com dois dedos, respirando fundo.

    Madame havia avisado. Era inevitável.

    A realeza mercenária não era construída apenas na força; era construída no mito. E onde há mito, há caçadores de lendas tentando se promover às custas dos outros. A etiqueta não escrita ditava que só se desafiava quem estava no mesmo nível — pelo menos na teoria. No fundo, todos sabiam que uma vitória era uma vitória, e quem se importava com o contexto?

    — Estou de boa — respondeu Ana, guardando a faca de volta na bainha sem qualquer pressa ou cerimônia.

    Não tinha tempo para duelos inúteis. Nem paciência para alimentar ciclos de idiotas querendo subir um degrau às suas custas. Aceitar era fácil. Ganhar, provável. Mas a cada vitória, outro viria, e depois outro. E o que começava como honra terminava como escravidão.

    Preferia o rumor de covardia ao peso de uma corrente dourada no pescoço.

    — Agora sai da porra do meu terreno — disse por fim, com a mesma entonação que usaria para espantar um pombo inconveniente.

    E virou-se, já decidida a fingir que aquela interrupção nunca havia acontecido, porque alguns absurdos não mereciam nem o registro da memória.

    Havia uma regra bem definida pelas guildas para lutas dentro da cidade: se um não quer, dois não lutam. Era simples. Lutas improvisadas tinham o péssimo hábito de arruinar propriedades, demolir mercados e, ocasionalmente, matar civis — coisas que davam muito trabalho para arrumar depois. E quando o caos começava, a punição vinha rápida: multas do tipo que fariam um nobre reconsiderar a própria existência, seguidas de um agradável período de reclusão obrigatória atrás das grades.

    As autoridades, ávidas para manter a aparência de civilização na nova sociedade, levavam essas infrações a sério. Afinal, um ataque mágico fora de hora, hoje, tinha o mesmo impacto de um ataque terrorista na velha Terra. E, como sempre, o mundo precisava de vilões fáceis para manter o teatro da ordem pública funcionando.

    Infelizmente, o caçador de rosto gentil parecia decidido a ignorar o manual de etiqueta urbana. Se Ana tivesse mostrado medo — qualquer medo — ele provavelmente teria se vangloriado de sua “vitória psicológica” e ido embora contar vantagem. Mas o que encontrou no rosto dela foi um desprezo relaxado, como quem vê um cachorro latindo para o vento. E, para um ego mal calibrado, isso era imperdoável.

    — Mercenariazinha de merda! Olhe para mim enquanto eu falo com você!

    O grito foi acompanhado de um gesto estranho — não amador, mas estranho. Um giro com as mãos, cheio de firulas, como se estivesse lançando algo que só ele pudesse ver. Ana, por puro instinto de preservação, saltou para trás. Girou o corpo em sua direção com a faca já meio erguida, só para, imediatamente, erguer uma sobrancelha num misto de curiosidade e tédio.

    — O que você está fazendo? — perguntou, com a cabeça inclinada como quem observa um peixe tentando andar em terra firme.

    Não houve resposta. Só um silêncio constrangedor.

    Ana se aproximou devagar, ainda cautelosa — não porque temesse perigo, mas porque desconfiava que qualquer interação com aquele ser humano específico diminuiria sua inteligência em dois pontos. Encostou a ponta dos dedos na testa dele. O grandalhão oscilou como uma árvore que perdeu o interesse em continuar de pé, mas permaneceu ali, imóvel, encarando o vazio.

    — Que cara estranho…

    — Esse aí não é o Luiz? — disse Júlia, surgindo no local com a casualidade de quem viu de tudo e não se impressionava mais com nada. — O que cê fez com ele?

    — Eu? — Ana respondeu, genuinamente surpresa. — Eu não fiz nada. O cara simplesmente travou. Luiz? Era pra ser importante?

    — Importante não. Mas ouvi uns boatos… dizem que ele é um tipo de variante que mexe com a mente. Um troço meio doido. Bem raro.

    Ana olhou novamente para o sujeito, que agora parecia mais uma peça de decoração duvidosa do que uma ameaça.

    — Bom… não parece tão perigoso no momento.

    Deu de ombros, como quem não tinha tempo a perder com erros de fabricação ambulantes, e voltou a mexer nos bolsos do moletom cinza. De lá, tirou cinco pequenos montes de moedas douradas, com o brilho discreto das coisas boas demais para durar.

    — Isso aqui foi o que sobrou da missão — anunciou, entregando uma pilha para cada membro do grupo. — Não faz parte do salário combinado, mas achei mais justo dividir.

    Júlia pegou as moedas com a expressão de quem preferia ter recebido dois tapas na cara. Olhou para o último punhado, aquele que não tinha dono.

    — Não acho que valeu a pena — murmurou.

    O jardim, iluminado pelo sol da tarde, parecia mais frio do que antes. As palavras de Júlia não foram altas, mas se espalharam no ar feito poeira pesada, grudando na pele e nos olhos de todos.

    Com movimentos silenciosos, Ana se ajoelhou. Pegou uma pequena caixa de madeira rústica, a colocou sobre o solo e depositou as moedas destinadas à Marina lá dentro. Não fez discursos bonitos, nem promessas piegas. Só deixou o gesto falar o que as palavras não precisavam dizer.

    No fim das contas, às vezes era o bastante apenas lembrar que certas perdas não eram esquecidas. Mesmo que a vida continuasse arrastando todos eles para frente, sem cerimônia nem pausa para luto.

    Parecia que ficariam ali em silêncio para sempre, se o desconforto não tivesse vencido primeiro. Felipe, distraidamente tocando o fim do braço onde antes havia uma mão, foi quem quebrou o momento.

    — Chefe… a gente não deveria ter um nome?

    — Sim! — exclamou Júlia, enquanto um brilho de entusiasmo atravessou seus grandes olhos. — Precisamos de algo que nos lembre por que estamos juntos. Especialmente agora. E, claro, algo que faça a gente parecer mais importante do que realmente é.

    Ana bufou.

    — Só “grupo” não tá bom? — questionou, o tom seco como uma estrada de terra no meio do verão. — É o que somos: um grupo.

    Os outros se entreolharam, sem saber como explicar que chamar um grupo de apenas grupo era o ápice da chatice.  Ana viu a expressão coletiva e revirou os olhos.

    — Tá. Vamos lá. O que sugerem, então?

    — Que tal… “Ironia Divina”? — sugeriu Alex, hesitante — Porque, bom… tudo tem dado errado nas nossas missões. Parece que os céus tão rindo da nossa cara.

    Ana sentiu um canto da boca puxar para cima ao ouvir as palavras do jovem caçador. Ainda não gostava de batizados desnecessários, mas tinha que admitir que não parecia haver nome melhor. Os demais, vendo que sua líder pareceu gostar,  também acenaram em concordância. Um consenso, enfim.

    — Ótimo. E é bom que tenham decidido rápido, porque temos mais coisa pra fazer. — Deixando-os sem explicação, Ana acenou em direção à entrada do covil. — Ei, Brayner! Chegou na hora certa! 

    Os outros viraram-se, atentos. Um homem de mochila absurdamente abarrotada — o tipo de bagagem que poderia, em caso de queda, enterrar uma criança de porte médio — entrava, coçando a nuca com a expressão típica de quem perdeu três vezes o caminho antes de encontrar o destino.

    — Desculpa o atraso… esse lugar é mais no meio do nada do que pensei…

    — Não esquenta. Vem logo pra cá.

    — Quem é esse? — perguntou Alex, já pronto para iniciar uma sessão de perguntas provavelmente inconvenientes.

    — Depois eu explico. Agora, olhem pra cá.

    Antes que pudessem reagir, Ana deslizou algo em direção a Júlia. A arqueira, ainda processando o movimento, agarrou o objeto no reflexo: um quadro pequeno, com um desenho surpreendentemente detalhado — Marina, capturada com seu sorriso tímido, quase perfeita demais para a confusão que carregava.

    — Digam “X”! — anunciou Ana, estalando os dedos.

    No mesmo instante, um flash disparou de um pequeno tripé montado discretamente ao lado de uma das árvores. Nenhum deles estava preparado. O resultado foi uma bagunça gloriosa: caretas, olhos semicerrados, poses desajeitadas. Tudo que uma primeira foto de verdade deveria ser.

    E ali, naquele pedaço de segundo e de caótica perfeição capturado em luz, nasceu o Ironia Divina.


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