Capítulo 53 - Viagem
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Ana mal percebeu sua própria mão puxando a faca, um reflexo cultivado em ocasiões em que sobreviver exigia agir antes de perguntar. Seu corpo protestou contra o movimento súbito, lembrando-a dolorosamente de que a surra que levara ainda estava fresca demais para movimentos heroicos. Um golpe rápido dissipou parte da adrenalina, permitindo-lhe uma visão menos ameaçadora do inesperado visitante.
— Calma, minha filha, calma! — disse Madame, interpondo-se com uma pressa quase cômica entre Ana e a criatura, as mãos erguidas como se pudesse realmente impedir um conflito armado daquela forma. — A bichinha é meio desastrada, mas é nossa!
Ana não se convenceu por completo, mantendo a arma negra em riste enquanto avaliava o invasor com olhos críticos. Era uma criatura estranha: um corpo grande demais para uma simples ave, talvez metade da altura de um adulto mediano, com um formato esguio e desproporcional que parecia um insulto às leis naturais do bom senso.
As penas tinham uma textura fibrosa e opaca, com veios que oscilavam entre o azul-escuro e o arroxeado, como se alguém tivesse decidido costurar o céu noturno numa fantasia improvisada. As asas eram estreitas e, apesar da posição dobrada disfarçar bem, exageradamente longas. As pontas rasgadas das asas conferiam à criatura um aspecto de quem não teve a gentileza de pousar suavemente em lugar nenhum. Ana ponderou brevemente se aquela falta de aerodinâmica tinha sido o motivo do desastre aéreo recém testemunhado.
As articulações, angulosas e protuberantes, eram a assinatura de uma vida gasta em viagens intermináveis e manobras violentas. Seu peito branco era interrompido por uma faixa escura, semelhante à sujeira que insiste em não sair, estendendo-se até uma cauda dividida em “V”, que Ana julgou imediatamente ser menos decorativa e mais uma lâmina improvisada, adequada para uma luta aérea.
Mas foram os olhos que realmente capturaram sua atenção. Profundos e escuros, como se fossem meros buracos desenhados à tinta, carregavam uma inteligência alarmante e desconfortável. Mesmo imóvel, havia algo perturbadoramente determinado na postura da ave.
Vista de longe, não passava de uma andorinha super crescida, mas os detalhes denunciavam que aquela criatura fora alterada para funções específicas. Ana notou pequenos envelopes encaixados cuidadosamente em cavidades naturais ao longo das pernas, como bolsas orgânicas perfeitamente esculpidas. Dentre eles, um pergaminho maior, enrolado com precisão quase obsessiva, se destacava. Na asa, quase escondida entre as penas, uma discreta marca em forma de coroa parecia queimada em uma bruta tatuagem.
Só então, com um suspiro mais exausto do que aliviado, Ana baixou finalmente as mãos.
— Meio desastrada? — comentou ela, um sarcasmo leve, mas afiado, na voz. — Estraçalhou a janela. É surpreendente que não tenha morrido na entrada.
— Ela é um bicho treinado pra entregas, mas ficou meio sem prática desde que a mana corrompeu a pobrezinha — começou Madame, agora mais tranquila, até ser interrompida pelo súbito movimento da garota. — Ôxente, o que tu tá fazendo, criatura?
A taverneira ficou sem palavras ao ver Ana sacando um pequeno caderno artesanal do nada, rabiscando freneticamente como alguém possuído por um espírito particularmente dedicado à documentação zoológica.
A rainha mercenária sequer percebeu os olhares incrédulos em sua direção; estava completamente mergulhada em capturar cada mínimo detalhe da criatura. Ao terminar o último traço, ergueu a cabeça como quem sai de um transe, fechando o caderno com um leve estalo.
— Só… tomando notas. É um belo animal — disse, com um sorriso que Madame imediatamente classificou mentalmente na categoria dos mais perturbadores que já vira.
A taverneira não parecia convencida, mas também não insistiu em saber. Ajudando o pássaro a estabilizar, carinhando suavemente sua cabeça e removendo os cacos de suas penas, pegou diretamente o maior dos pergaminhos.
— Como eu tava dizendo, não deveria ter uma dessas por aqui — comentou, rompendo o pequeno lacre de cera que selava a mensagem e passando os olhos pelas poucas linhas. — A menos que… Oh, isso é bom… muito bom.
Ana sentiu um desconforto imediato. “Muito bom” era o tipo de frase que só soava realmente positiva quando dita por pessoas confiáveis. “Muito bom”, saindo da boca errada, geralmente significava tudo, menos um “muito bom” real.
— “Mexer uns pauzinhos” — murmurou, fingindo uma tosse exagerada para disfarçar a irritação — “…não vai se repetir…”.
Madame gargalhou, claramente se divertindo com o ceticismo.
— Eita, que desconfiança é essa! Eu nem disse nada ainda!
— Mas sei que vai dizer!
Madame ergueu as sobrancelhas com teatralidade, como se estivesse ponderando a melhor forma de dar más notícias disfarçadas de ótimas oportunidades. Seu sorriso era largo demais para ser sincero, e Ana se preparou mentalmente para qualquer absurdo que pudesse sair daquela boca.
— Bem, pelo menos não tem sombras no meio dessa história… Então, me diga uma coisa… tu gosta de viajar?
Ana abriu a boca pronta para emitir um protesto rápido e incisivo, mas parou no meio do caminho. Seu cérebro interceptou a reclamação antes que esta pudesse sair, e seus olhos, agindo por conta própria, brilharam com um interesse impossível de esconder.
— Uma cidade móvel…
As palavras escaparam baixinho da boca de Ana enquanto caminhava lentamente até a saída do Madame Eclipse. Era um conceito absurdamente estranho, embora tivesse algo de brilhante nele. Cidades deveriam, por definição, permanecer paradas; era parte essencial de sua identidade geográfica. Mas tais definições pareciam ser mais flexíveis do que o esperado.
Ao atravessar o salão, sentiu uma mudança perceptível na atmosfera. Não era paranoia; os olhares dos frequentadores estavam realmente diferentes. Uma mistura complicada de curiosidade, temor e algo vagamente próximo à inveja que pairava no ar com a consistência de uma neblina densa. “Rumores não são contidos por paredes”, Ana pensou amargamente. Considerou por um breve instante a possibilidade de alguém ter grudado a orelha contra a porta para escutar sua conversa com Madame. Mas, conhecendo bem a taverna, o mais provável era que um dos guardas tivesse espalhado a notícia.
Aqui e ali, alguns mercenários erguiam suas canecas numa saudação discreta, um reconhecimento sutilmente respeitoso, apesar de carregado de certo ressentimento silencioso. Ana acenou de volta, com um sorriso suficientemente educado para não ser ofensivo, mas suficientemente falso para indicar claramente que preferiria não fazer parte daquela interação.
Para sua felicidade — que, é claro, nunca vinha desacompanhada de uma saudável dose de desconfiança — a missão que Madame lhe dera era surpreendentemente simples. Assim como a andorinha que havia atravessado o vidro da janela, Ana deveria levar alguns pacotes de documentos até os mercenários de Leviathan, a tal cidade móvel.
Madame havia se recusado obstinadamente a fornecer detalhes extras, o que fez Ana catalogá-la imediatamente como uma pessoa particularmente desagradável, embora admirasse discretamente seu método eficaz de gerenciar informações. O essencial, contudo, estava claro: devido ao teletransporte inesperado ao novo mundo e à lenta construção das torres necessárias para uma comunicação minimamente funcional, Madame havia perdido contato com os outros “donos de taverna”.
Ana considerou por um instante a ideia de uma sociedade secreta de taverneiros mercenários. Estranho, sim, mas estranhamente lógico, considerando o papel das tavernas como lugares de negócios, segredos e cerveja suspeitosamente diluída.
De qualquer forma, a única vantagem real era que, como Ana tinha menos que os quinze dias inicialmente combinados para se preparar, receberia uma recompensa maior. Ser melhor paga por algo tão simples quanto imitar uma ave migratória lhe parecia bastante justo.
Claro, simples não significava rápido. Uma cidade móvel, afinal, tinha sua bagagem de problemas: seria obrigada a passar um longo tempo longe de Barueri. De certa forma, era um alívio, mas o curto prazo para saírem — dois curtos longos dias — era um incômodo.
Tinha dinheiro, mas tempo insuficiente para reforjar a armadura que tanto prezava. Tinha companheiros que no momento mal andavam e que não estavam armados nem para enfrentar uma briga de bar. Tinha uma mãe que mal podia respirar por conta própria e uma irmã que era mais mistério que parente, pois mal trocou um par de palavras com ela, então se apoiava na esperança de que pudesse cuidar de si mesma.
E antes de tudo isso, tinha alguém que precisava ver com certa urgência. Sacou o celular com uma gratidão silenciosa por ter tido o raro momento de lucidez ao pedir o número da jovem comerciante quando lhe entregou a escopeta pouco tempo atrás.
Discou rapidamente o número, suspirando enquanto aguardava o tom de chamada com uma leve impaciência.
— Alô, Maria?
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REESCRITA – TEMPORARIAMENTE SEM IMAGEM
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