Capítulo 66 - Disputas
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Não muito longe dali, Júlia brandia um martelo de aparência duvidosa, adquirido numa compra apressada antes de saírem de Barueri. Não era elegante. Não era mágico. E, tecnicamente, era para construção civil. Mas estava nas mãos dela, e isso bastava para transformá-lo — segundo palavras da própria — na arma mais perigosa da rua.
Ela tentava, com determinação levemente desesperada, acertar a cabeça de um pirata esguio. O homem, com seus quase dois metros de altura e zero gramas de modéstia, exibia o peito nu decorado com uma coleção indecente de adagas presas por fios finos e estrategicamente posicionadas ao longo do torso. Mais à frente, outro praticamente idêntico em tudo — altura, postura e falta de camisa — mantinha Alex e Felipe ocupados com uma dança igualmente caótica.
Era uma daquelas lutas que prometiam muito, mas entregavam pouco. Uma estocada da espada mediana que Alex improvisara, um recuo. Uma adaga lançada com gosto, uma esquiva por pouco. Um tiro da escopeta de Felipe — quase mais decorativa que funcional, já que a recarregar era um sacrifício — e outra fuga. Repetia-se o padrão como se todos tivessem assinado um acordo tácito de não machucar ninguém até o fim da coreografia.
Os piratas pareciam ter mais habilidade — ou ao menos mais experiência —, e um observador atento notaria que a diferença entre viver e virar estatística estava, curiosamente, nas palavras sussurradas por Brayner, que, do canto da rua, lia seus próprios escritos como se estivesse tentando exorcizar o mundo em vez de descrevê-lo.
Podia gritar, mas aprendera que a realidade escuta melhor quando se fala baixo.
— In adversis, virtus latet.
A virtude se esconde na adversidade.
Alex sentiu uma ponta de dor, e então, como que lembrando da existência das próprias pernas, avançou num ímpeto digno de aplauso.
— Tempus fugit, ferrum manet.
O tempo foge, mas o ferro permanece.
Felipe se esquivou segundos antes de uma adaga fincar o espaço onde esteve. O tipo de movimento que parece treinado, mas que simplesmente surgiu em seu corpo antes que notasse.
Não havia brilho mágico, nem aura divina — só um eco, surdo e antigo, que se arrastava sob os versos latinos, moldando os acontecimentos como se cada sílaba já estivesse prevista.
Infelizmente, a voz não criava milagres realmente milagrosos, e o Ironia Divina ficou preso neste impasse.
Isso até a primeira das muitas adagas espalhadas pelo chão começar a emanar uma luz branca. Suas runas, antes só decoração, se acenderam com uma geometria impossível de ignorar.
E então, a névoa.
Fria. Densa. Voraz.
Espalhou-se com uma pressão gélida que empurrou Júlia violentamente contra uma casa próxima. Seus lábios, num piscar de olhos, ficaram roxos. O hálito formava gelo, o tipo de efeito que pareceria belo se não significasse que ela estava prestes a congelar por dentro.
Tentou se levantar. Tentou xingar também. Nenhuma das duas tentativas foi bem-sucedida.
Felipe, que lutava mais afastado, teve a infeliz sorte de ver tudo com nitidez: o pirata sorriu. E foi um sorriso sem pressa, desses que avisam que o jogo só começou agora. Segurando a linha ainda conectada à adaga brilhante, mesmo depois de toda a dança e enrosco entre barracas, paredes e pés, ele canalizou sua mana com precisão irritante. Fluiu primeiro como um fiapo sutil, depois como a correnteza de um rio, iluminando o fio pouco a pouco.
E então, a explosão. Mas não parou ali. A energia seguiu percorrendo a linha como quem segue trilhos antigos, prestes a tocar a próxima adaga. Felipe entendeu. Não era só um truque. Era uma cadeia. Uma armadilha em espiral.
— Saiam daí agora! — gritou, sem pensar. A voz falhou na garganta, mas o suficiente para romper o torpor dos outros.
Tarde demais.
Uma segunda adaga, agora brilhando em tom terroso, começou a vibrar. Runas pulsaram em sua lâmina, como uma sentença antecipada. O solo respondeu primeiro com um tremor discreto, depois com fúria: rachaduras serpentearam o chão e blocos de pedra foram cuspidos para o céu, criando uma explosão de detritos que não só eram dolorosos, mas também obscureceram a visão de todos.
O impacto jogou o grupo para trás. Júlia, que mal tinha se recuperado da onda gélida anterior, foi arremessada de novo, agora para um monte de barris que tinham a decência de estar vazios. Ela bufou entre dentes trincados, mas ficou novamente de pé.
Brayner continuava sussurrando, quase como se rezasse para um deus do qual nunca ouviu falar, com palavras velhas demais para estarem vivas.
— Terra tremit. Aër lacerat. Vis tecta surgit.
A terra treme. O ar se rasga. A força oculta se ergue.
O que quer que significasse — e ele mesmo não fazia ideia — funcionava. Mas por pouco.
Alex recuperou o equilíbrio em um instante, mas não teve tempo de se preparar. Uma adaga atirada com precisão cruel atravessou o ar e cravou-se entre as placas de sua armadura improvisada, prendendo-se como um parasita. Pequenas rachaduras de energia se abriram em sua pele, expondo a carne em tons que não deviam existir fora de uma aula de anatomia. Ele caiu de joelhos, praguejando com a força de quem queria muito, mas muito mesmo, estar em casa.
Felipe correu. Nem pensou — só reagiu. Mirou no chão e atirou. O estampido da escopeta cortou o ar, rompendo a linha que ligava as adagas ainda adormecidas. A corrente de mana perdeu a conexão, e por um segundo, sentiu que havia vencido. Não parou para confirmar, pegou a pequena bolsa de munição com a boca — o quanto tinha treinado isso não estava escrito — e encaixou o cartucho final. Engatilhou com um tranco do braço e deslizou para o lado, onde o pirata mais próximo se preparava para terminar o serviço.
A mira estava certa. O dedo também.
Mas a sorte, velha amiga volúvel, decidiu espirrar justo naquele instante. Uma adaga vinda de longe, emitindo um brilho azul intenso e arremessada com elegância quase cômica, desviou sua mão no momento exato do disparo, fazendo a eletricidade que passou por seu braço ser liberada em um grito de agonia. O projétil acertou um cesto de maçãs. As maçãs não agradeceram.
O pirata, rindo secamente, deu dois passos à frente. Estava prestes a falar alguma frase de efeito idiota quando Felipe sentiu — sem ver, sem ouvir — o poder de Brayner envolvendo o ar.
— Ex improviso, victoria.
Da surpresa, a vitória.
Felipe sentiu algo se formando em seu âmago. Uma vontade desenfreada de fazer algo que a um instante atrás sequer havia cogitado. A sensação era amedrontadora, mas ainda assim, a obedeceu. Se jogou. Literalmente. Para frente, como um projétil humano. O pirata não teve tempo de reagir — foi derrubado pelo jovem sem braço, sem munição e aparentemente sem freios morais.
Não houve glória no impacto. Só o som de dois corpos se embolando no chão.
Mas não precisou de mais nada.
Júlia apareceu como um argumento irrefutável. Mancando, trêmula, e segurando o martelo como se fosse a última palavra numa discussão muito longa, ela ergueu o instrumento e, sem poesia ou refinamento, esmagou o peito do pirata com força o suficiente para silenciar qualquer monólogo.
O corpo cedeu. Ela também.
— Temos que acabar com isso logo — murmurou, limpando o sangue do rosto com as costas da mão, evitando olhar por muito tempo para o que havia acabado de fazer. Havia algo desconfortável em ver o resultado prático da própria força quando ela funcionava bem demais.
O segundo pirata congelou com a próxima adaga já a meio caminho do ar. Seus olhos marejaram, mas ele, com um grunhido, tentou completar o movimento — e teria conseguido, se não fosse surpreendido por uma adaga alheia perfurando seu pescoço. Foi um golpe limpo executado por Brayner, que a essa altura, suando e ofegante, já havia fechado seu caderno.
— É isso — disse ele, com um sorriso pequeno. Não de alegria. De alívio.
— Nós conseguimos — disse Alex, tentando sorrir apesar da dor no ombro.
— Foi por pouco — concordou Felipe, meio encolhido pelos espasmos que seu corpo ainda estava tendo, mas com um olhar de alívio.
Sem pressa, e também sem muito entusiasmo, os dois irmãos começaram a recolher as adagas rúnicas espalhadas pelo chão. Eram bonitas, bem trabalhadas, com detalhes que sugeriam mais do que simples utilidade. Foi então que um chiado veio de um dos corpos.
— Ei, idiotas — a voz disse, irritada. — Podem me ouvir?
Júlia, que já voltava a si aos poucos, se aproximou. Com a ponta da bota virou o corpo de um dos piratas e encontrou o pequeno rádio ainda funcionando. Pegou com cuidado, como quem lida com uma cobra peçonhenta.
— Ana?
— Não, sua mãe. Claro que sou eu! — respondeu a voz, seguida de uma risada amarga. — Vocês fizeram bem, mas não acabou. Tem outro grupo se aproximando pela rua do portão. Repitam a estratégia. E corram.
Eles se entreolharam. Exaustos, sujos, feridos. Mas vivos. E, de alguma forma, ainda de pé. Olharam então para a taverna alta, e ali, onde o capitão inimigo estava alguns minutos antes, Ana se prostrava, avaliando com olhos ferozes o campo de batalha. Suspiraram, sentiam o ar carregado de mana dispersa. Restos dos piratas, de suas técnicas, de suas intenções. Era quase um desperdício deixá-la evaporar — perderiam a chance de roubar a essência desses guerreiros de classe alta —, mas uma ordem era uma ordem.
Seguiram para onde sua líder indicou.
A batalha não terminou naquela noite, mas sim quando os primeiros raios de sol tocaram o céu — aquele azul intenso demais para ser real.
A luz filtrou as nuvens com delicadeza absurda, e a cidade ficou bonita. Não devido à paz, mas sim pela guerra. O povo dos céus, aquele aglomerado de viajantes exóticos, ergueu bandeiras, tocou tambores e riu alto como se não houvesse corpos pelas esquinas.
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REESCRITA – TEMPORARIAMENTE SEM IMAGEM
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