Índice de Capítulo

    Quer apoiar o projeto e de quebra ter uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Dê uma olhada em nosso Apoia.se!

    Capa Volume 1 – Ironia Divina

    Capa Volume 1

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    div

    A música era estranha, mas instigante. Tinha aquele tom que deixava claro que alguém ali não estava apenas tocando: estava se divertindo. Não era alta, tampouco vibrante. Estava mais para um sussurro persistente, uma nota arrastada que deslizava pelos corredores como se quisesse se infiltrar nos tímpanos e, por consequência, na alma.

    Os seguidores, ainda com aqueles sorrisos largos demais para qualquer ocasião saudável, abriram espaço sem pressa. Havia uma reverência no gesto, mas não para eles. Pareciam apenas cumprindo seu papel. Hesitantes, mas com a nítida falta de alternativas, o Ironia Divina caminhou devagar em direção à única porta que parecia menos morta que as demais. Velas adornavam seu arco de pedra gasta, tremulando com uma displicência debochada.

    Do outro lado, a surpresa não era exatamente a grandiosidade, mas o contraste. Grandes bancos, daqueles que se vê em igrejas centenárias, estavam dispostos simetricamente entediantes, tomando o salão de ponta a ponta, abarrotados de fiéis que mantinham as cabeças abaixadas, como se em eterna oração ou profunda apatia. As paredes e o teto, no entanto, entregavam algo mais moderno: linhas limpas, duras, bem definidas, com aquele ar de alguém que tentou, em algum momento, inovar sem perder a pompa tradicional. Era como ver um museu tentando ser um prédio comercial. Ainda assim, não se furtaram de certos exageros estéticos. Não era a Capela Sistina, mas havia ali uma versão distorcida da Criação de Adão.

    Ao invés de Deus e seu dedo paternal, ali uma mulher de longas asas negras estendia a mão para o homem, enquanto o criador observava de longe, omisso e irrelevante na cena. A mulher ocupava o centro, e não havia traço de bondade em seu rosto calmo. Parecia estar deliberadamente mantendo a distância, brincando com a ideia de criação sem nunca realmente concedê-la. A posição do braço, ligeiramente retraído, sugeria não um gesto de dádiva, mas de provocação.

    Ana franziu o cenho. Não sabia o porquê, mas aquela imagem a incomodou mais do que deveria.

    No centro da câmara, deslocado de tudo, havia um piano de cauda. Preto, polido, tão brilhante que parecia uma poça de tinta. O homem sentado diante dele, parecia quase uma parte do próprio móvel, com seus cabelos castanhos caindo desleixados até pouco acima dos ombros, era magro demais para ser saudável, seus dedos ossudos dançando sobre as teclas com uma precisão que beirava o obsessivo. O manto negro que vestia parecia vivo, enrolando-se em suas pernas a cada movimento, forçando-o a ajustá-lo constantemente com gestos irritados.

    — Esse é o bispo? — sussurrou Júlia, o polegar pressionando inconscientemente o cabo da espada.

    Felipe fez um ruído no fundo da garganta que poderia significar qualquer coisa. Alex, por sua vez, já estava se inflando como um pavão, preparando-se para alguma declaração grandiosa.

    O homem no piano abriu os olhos lentamente, como quem acorda de um sonho muito interessante. Seu sorriso foi surgindo aos poucos, como se fosse uma coisa separada do resto do rosto.

    — Sim, criança! Maurice, quem guia os poucos fiéis dessa humilde diocese. Posso saber, afinal, quem tenho a honra de receber em nossa casa?

    Não se virou para falar. Não parecia preocupado o suficiente para isso.

    — Somos a Ironia Divina! — bradou Alex, uma expressão confiante apareceu em seu rosto ao dizer o nome do bando, com entusiasmo desproporcional, trazendo certa vergonha alheia aos demais, mas todos decidiram, em solidariedade, fingir que aquilo foi uma apresentação decente.

    — Oh, sim. Um nome realmente… irônico, visto onde estão. Seus dedos acentuaram a palavra com um acorde menor. — Vocês fizeram uma boa bagunça lá fora, não? Que energia. Que dedicação.

    Ana avançou um passo, os braços abertos em um gesto teatral.

    — Eles nos atacaram primeiro! Não pode nos culpar por isso, sabe? — Dois dedos atrás das costas fizeram um movimento quase imperceptível. Felipe, pegando o sinal, começou a se deslocar para a direita com a discrição de um gato.

    — Culpar? — Maurice inclinou a cabeça, como se considerasse a ideia pela primeira vez. — Não, não, por que culparia você por nos trazer tanta paz? — A palavra escorreu da boca dele com uma doçura que incomodava, e seus olhos piscaram, lentamente. — Que sejam bem-vindos, sentem-se! A missa estava prestes a começar.

    — Uma… missa? — Ana repetiu, os dedos fazendo outro gesto rápido. Alex girou, posicionando-se de costas para ela, seu corpo tenso como uma mola comprimida diante dos seguidores que começavam a se aproximar pelos flancos. 

    — É claro que sim! Como mais poderíamos adorar a Mãe?

    — A Mãe! — repetiram os fiéis, em coro, assim que ele pronunciou a palavra.

    Maurice sorriu, satisfeito com o fervor, e voltou a tocar. Desta vez não havia mais pretensão de suavidade. As teclas responderam como se suas cordas estivessem presas aos nervos do próprio ar. Uma melodia rápida, cortante, algo entre um louvor mal-assombrado e uma marcha fúnebre animada demais. À medida que seus dedos magros corriam pelo teclado, uma energia negra, viscosa e densa, começou a escapar das frestas do instrumento como fumaça de um motor antigo prestes a explodir.

    As sombras se moveram. Não no sentido figurado: elas, de fato, se ergueram, ondularam, espreitaram. Tomaram formas que o cérebro reconhecia tarde demais para desejar não ter reconhecido. O ar vibrou, pesado como um sino de igreja sendo tocado dentro da própria cabeça. Uma vertigem subiu pelas pernas de Ana, enroscou na espinha e fez sua visão dobrar por um instante.

    — Fiquem atentos! — gritou, avançando com a faca erguida. Mas seu primeiro passo foi também seu primeiro erro. O chão pareceu se mover sob seus pés, fazendo-a cambalear como uma marinheira em terra firme após meses no mar.

    Porém, assim que seu pé encostou no solo, cambaleou.

    “Vacilamos…” Riu de si mesma. O termo era perfeito – tanto para sua quase queda quanto para a burrice monumental de subestimar a situação.

    Devia ter percebido antes. As palavras calmas, o tom pastoral, a falta de qualquer hostilidade óbvia. Era sempre assim. Quem realmente sabia ferir, não precisava mostrar os dentes. Maurice tocava como quem guia um culto, não como quem prepara uma emboscada. Era pior. Muito pior.

    Outra nota, outra onda sonora atravessando seus corpos como um aríete invisível. Ana virou-se para os companheiros. Felipe rangia os dentes, lutando para se manter em pé. Júlia tremia, apertando os ouvidos com força. Alex… bom, Alex era Alex, resistindo por pura teimosia.

    Os fiéis batiam os pés no chão, compassados, ajoelhados na parte de trás dos bancos, alheios aos invasores.

    A música cresceu. E com ela, a primeira gota de sangue.

    Finos fios de um vermelho intenso escorreram dos ouvidos do grupo, um zumbido preenchendo o espaço entre um pensamento e outro. Ana cerrava os dentes, as pernas pesadas, o coração golpeando o peito como uma coisa desesperada por sair. Mas seguiu. Um passo de cada vez. Aproximava-se.

    O coro começou.

    Vozes suaves. Vozes vorazes. Vozes que gritavam e choravam e cantavam com igual intensidade. Uma cacofonia suja, profana, que arrepiava até as partes da alma que Ana já acreditava mortas. Seguidores batiam cabeças contra bancos, arrancavam cabelos, rasgavam roupas. Um espetáculo grotesco de fé crua. Ana não olhou mais para trás. Manteve os olhos no foco. Estava perto. Perto o suficiente.

    Ergueu a faca.

    Seu alvo era a nuca do bispo. A intenção era clara. O gesto, não.

    Porque, no momento em que a lâmina se preparava para descer, aquele sorriso gentil atravessou sua armadura emocional como uma lança. Não queria mais o acertar. Sentiu vontade de chorar, de erguer os braços ao céu e pedir desculpas por todas as grosserias ditas em voz alta ou guardadas em silêncio. Sentiu vontade de orar, e isso era o pior. A ideia de abrir a boca para falar com qualquer divindade lhe causava náuseas.

    — Me juntar… a eles? Sim… eu devia.

    A rainha mercenária grunhiu, prestes a reclamar para o além, mas a raiva lhe trouxe a clareza que precisava.

    — O que eu tô fazendo?

    Não fazia sentido. Por que não acabava logo com aquilo? Por que a mão tremia tanto? Por que a lâmina parecia pesar o triplo? Por que aquela dúvida existia? Por quê? Por quê?

    — Vai se foder.

    A faca desceu. Não onde devia. Não contra o bispo. Foi para o lado, como um acesso de raiva mal direcionado. Um golpe cego, frustrado. Não atingiu o próprio estômago só por um triz, mas, por sorte, acertou em cheio a tampa do piano com um estrondo que reverberou por toda a sala, rachando-a ao meio e fazendo a metade da direita se virar bruscamente para trás. Uma nota solta escapou das entranhas do instrumento, dissonante, desafinada, um soluço sonoro que ecoou na cabeça de Ana como um martelo. O impacto a derrubou de costas, enquanto finas rachaduras se espalhavam pelas paredes.

    O bispo parou. Finalmente virou o rosto para ela.

    — Como… ousa?

    Sua voz saiu baixa. Seu sorriso, ainda lá, se tornou desalinhado, efervescente. Ana sentia as notas ainda reverberando em seus ossos, fazendo uma bagunça em suas entranhas, mas se levantou. Atrás dela, seus companheiros tentavam se levantar, cuspindo bile e sangue em igual medida. O pianista, no entanto, continuou.

    — Você… você não ama a Mãe? Você não quer a fazer feliz? — Ele olhou para os próprios dedos, depois para Ana novamente. — A Mãe diz que não, mas eu sei! Ela quer a gente de verdade, sabia? ELA NOS AMA DE VERD…

    Um estalo agudo interrompeu sua frase.

    Os olhos de Maurice se viraram, irritados, para a esquerda. Júlia estava ali, com o arco finalmente montado e um sorriso sem jeito no rosto. Alex estreitou os olhos, já preparando a próxima ação. Não houve tempo para debate.

    — Matem ele.

    A ordem de Ana veio num sussurro tão baixo que ela própria duvidou de ter falado, mas seus companheiros entenderam perfeitamente. Ela se ergueu, a faca negra cintilando sob a luz vacilante das velas. Mas Felipe foi mais rápido. O disparo soou agudo, cortando o ar com velocidade demais — pelo menos para o velho mundo. 

    Era para ser o fim, mas Maurice deslizou os dedos que ainda repousavam no piano, e um tornado preto surgiu a uma velocidade absurda do chão, fazendo o homem flutuar para alguns metros de distância junto do instrumento.

    — Não deixem os hereges vivos, filhos — vociferou o bispo, voltando a tocar com uma fúria renovada. — Mostrem como é boa a bênção da Mãe!

    A resposta foi imediata. Como se uma só mente movesse todos os corpos, os seguidores ergueram os rostos. Os olhos, antes apenas insanos, agora eram vazios. Vazios como buracos na realidade, como poços fundos demais para ter fundo. Já não rezavam. Suplicavam. E, no instante seguinte, se jogaram sobre o Ironia Divina como marionetes sem cordas, só ódio.

    — Temos que pará-lo! — gritou Alex, desviando o tronco para aparar com o antebraço uma das seguidoras insanas.

    — Tô tentando! — rosnou Felipe, disparando de balas comuns a projéteis rúnicos em alternância, tentando abrir espaço na multidão para chegar até Maurice. Cada tiro abria uma brecha, mas nunca grande o bastante.

    Júlia disparou rapidamente duas flechas. Depois mais duas. Então já não tinha mais espaço, voltou a dobrar a arma em sua forma de lâmina. Em um giro limpo, três corpos se abriram ao meio. Ela parou por um segundo. As mãos tremiam. Chorava. Mas ainda assim, continuava. De certa forma, estava aliviada. Não era mais sobre certo ou errado. Era sobre sair dali viva.

    Os seguidores não eram fortes, mas lutaram até seus corpos não aguentarem mais. Arrastavam-se sem pernas, mordiam com maxilares pendurados, berravam com pulmões esmagados. Não havia lógica. Só uma vontade cega de entregar o corpo pela bênção prometida.

    Ana tentava alcançá-lo. Era como tentar agarrar o vento. Ele saltava, voava, rodopiava em direções aleatórias, sem pudor de esmagar seus próprios fiéis no processo. A música pesava nas pernas dela, como se as notas tivessem virado algemas. Estava começando a falhar.

    Então, a esfera azul passou raspando.

    Silenciosa. Limpa. Letal.

    Quando explodiu, foi como ver uma tempestade engarrafada se derramando. Eletricidade pulsou em todas as direções, e os corpos que vinham em sua direção caíram como marionetes desconectadas, tremendo em convulsões sincronizadas. Silêncio por um segundo.

    “Essa merda podia ter me acertado.”, pensou, mas logo riu, porque era o que restava fazer.

    Avançou pela brecha aberta na massa humana derretida, enquanto via Felipe, o autor do disparo, ao longe, curvado, a prótese exalando fumaça azul pelas frestas, cada engrenagem rangendo como se amaldiçoasse o dono. Estava no limite.

    Quatro seguidores o derrubaram. Depois seis. Depois dez. Um amontoado de carne, pernas e braços se fechou sobre ele como se o mundo tivesse decidido cobrar a conta.

    Precisavam terminar aquilo logo.

    No meio da correria, encontrou Alex. Ele ainda estava de pé. Ainda batia. A última vítima teve o crânio reduzido a um item decorativo no chão com uma precisão que quase dava orgulho.

    — Ei! Me dá um soco! — gritou, sem diminuir o ritmo das próprias facadas.

    Alex, confuso, hesitou por meio segundo. As runas da luva acenderam num tom terracota, meio relutantes, mas com as manoplas magnéticas vibrando pela energia acumulada. Com um suspiro de quem já havia aceitado que a lógica morrera há capítulos, girou o torso, seguido pelo braço num arco ascendente, e a acertou com toda força.

    A rainha mercenária colocou rapidamente a lateral da faca em frente ao golpe, mas ainda assim voou. Literalmente, como um projétil humano, suas costas arqueando no ar de forma que faria qualquer quiroprata chorar.

    O jovem guerreiro caiu de joelhos logo depois, os ombros tremendo tanto pelos resquícios da esfera de choque disparada por seu irmão quanto pela tontura provinda da música. Felizmente acreditava que não demoraria para se recuperar, afinal, mana não era um problema. As dezenas de corpos que o cercavam faziam questão de oferecer um estoque abundante, ainda que não solicitado.

    Com um último esforço, levantou os olhos.

    Júlia, ao fundo, não parecia mais estar consciente — pelo menos não mentalmente —, tinha tanta gente indo em sua direção que ela apenas balançava a pesada arma, abrindo carne e ossos a cada acerto.

    Ana, não tão longe, seguia voando em uma velocidade incrível. 

    “Podia ter sido um pouco menos doloroso”. O pensamento flutuou enquanto tentava manter as ideias no lugar. Grandes bocados de sangue saiam de sua boca, provindos do impacto, o qual havia piorado suas lesões de forma significativa.

    Maurice, apesar de sempre atento, arregalou os olhos. Tentou acelerar a música como quem força um clímax forçado numa peça mal escrita, mas a investida surpresa cortou o ritmo. O tornado negro começou a se erguer, mas não teve tempo. A pancada veio pelas costas, jogando-o ao chão de forma brusca.

    A música cessou. O mundo pareceu inspirar aliviado.

    Sem o som, os seguidores perderam o norte. Alguns desmaiaram. Outros apenas pararam de se mexer. A energia que os mantinha em frenesi parecia ter sido drenada num estalar de dedos.

    Maurice tentou recuar, se arrastando pelo chão, os dedos cravando as tábuas como se pedissem ajuda a um Deus que não respondia. Ana não lhe deu essa chance. Uma estocada rápida e precisa atravessou a coxa, pregando-o no lugar. Puxou-o pelo tornozelo e, sem dar espaço para dramatizações, moveu a faca até seu coração.

    Pôde ver a vida se esvaindo devagar. Não havia ódio no rosto dele. Na verdade, havia… carinho?

    — Quem diria, quem diria… — suas palavras eram animadas, mas não passavam de uma rouquidão baixa. — Um fim abençoado! A maior das honras!

    Ana arqueou uma sobrancelha, os pulmões ardendo enquanto tentava entender o roteiro alternativo que ele parecia seguir.

    — Do que você tá falando? — perguntou, cansada demais para dar ênfase.

    — Disso, é claro! — exclamou, olhando para a faca como quem vê a face da divindade. — É uma verdadeira bênção poder sentir o toque da Mãe tão de perto em meus últimos suspiros…

    Os olhos dele escureceram, a pele ficando pálida num tom que lembrava cera. As palavras morreram em uma última lufada de ar. A rainha mercenária encarou o cadáver fixamente por longos segundos, com mais perguntas do que respostas.

    Maurice estava morto. 

    E em sua já não tão pequena lâmina negra, tão acostumada com desgraças, mais uma marca branca apareceu. Mais uma lembrança. Mais uma conta na dívida.


    div


    Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟

    Venha fazer parte dessa história! 💖

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p

    Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

    Curtiu a leitura? 📚 Ajude a transformar Eternidade de Ana em um livro físico no APOIA.se! Link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota