Ato 1: O Despertar | Capítulo 1: Sussurros da Memória
[Floresta Amazônica – Ano 3115 D.C]
Mil anos haviam se passado desde o cataclismo que reescrevera a história do planeta em letras de fogo e destruição — um evento apocalíptico que varrera a civilização da face da Terra, deixando para trás apenas ruínas e memórias.
Até a outrora vibrante Floresta Amazônica fora transformada em grande parte em um ecossistema fantasmagórico.
Apenas um pequeno recanto sobrevivera: um santuário de vida onde árvores imensas se entrelaçavam numa teia viva e poderosa, criando uma redoma de beleza primordial.
O sol, tímido, despontava lentamente entre as silhuetas colossais. Sua luz tênue evocava a lembrança de uma beleza outrora gloriosa.
O cheiro de folhas molhadas e terra revirada se misturava ao perfume das poucas flores que ainda ousavam brotar, compondo uma melodia melancólica — o lamento silencioso de uma natureza que se recusava a ser esquecida.
Entre o esplendor selvagem, uma figura solitária movia-se com a destreza de um caçador nato. Jatyr, um jovem sobrevivente e resquício de um mundo esquecido, deslizava pelo terreno com a graça felina de uma onça.
Seus cabelos negros, desgrenhados pelo vento e pela selva, emolduravam um rosto bronzeado pelo sol e endurecido pela sobrevivência. Seus olhos castanhos escuros refletiam a luz filtrada pelas árvores gigantescas, cintilando com a chama persistente da curiosidade.
Criado nas profundezas da floresta sob a tutela de Einar, um eremita de cabelos prateados e olhos azuis profundos, Jatyr aprendera a sobreviver em um ambiente que outros considerariam hostil e mortal.
Einar era o último guardião de um conhecimento ancestral — um legado de um povo que florescera depois do cataclismo, mas que agora se esvaía em meio ao esquecimento.
Ele havia encontrado Jatyr quando o menino tinha apenas cinco anos.
Perdido e sozinho, vagava pelas margens do rio Amazonas como um filhote órfão, seus olhos marejados de medo e dor, o corpo pequeno coberto de machucados.
Em suas mãos trêmulas, segurava um amuleto de metal, um objeto enigmático que parecia pertencer a outra realidade.
Movido por uma compaixão que ele mesmo não sabia possuir, Einar o acolheu, oferecendo-lhe não apenas abrigo, mas também um nome e um propósito.
Nos anos que se seguiram, Jatyr aprendeu a caçar, pescar e construir abrigos. Com paciência e dedicação, Einar também o ensinou a ler os sinais da floresta, a entender a Mãe Yaci — como Einar chamava a floresta — e a respeitar seus espíritos.
Mais do que isso, Jatyr aprendera a ler os livros antigos que Einar preservava com tanto zelo, absorvendo fragmentos de uma sabedoria esquecida, carregada de histórias e lições sobre o mundo antigo.
A vida de Jatyr, no entanto, sofreu um golpe devastador quando ele completou treze anos.
A saúde de Einar, já debilitada pelos anos e pelas duras condições da floresta, começou a deteriorar-se rapidamente.
O ancião foi consumido por uma sede insaciável e feridas que não cicatrizavam, sinais de uma doença que o jovem não podia curar.
Jatyr fez tudo o que sabia, utilizando as ervas medicinais que Einar lhe ensinara, ele cuidou de Einar com devoção, oferecendo água fresca e ouvindo as histórias sobre o mundo perdido, absorvendo cada palavra como se fossem as últimas gotas de sabedoria que lhe restavam.
Mas nada parecia deter o avanço implacável da doença.
Einar, com um sorriso sereno, explicara a Jatyr que sua enfermidade pertencia a outro mundo, um ciclo natural que ele precisava aceitar.
E numa manhã fria, Jatyr encontrou seu mentor imóvel em sua rede, o rosto sereno, os olhos fechados para sempre.
O silêncio que seguiu àquela descoberta pesou sobre o coração do jovem como um fardo insuportável.
Por um tempo, ele permaneceu ao lado de Einar, as lágrimas escorrendo livremente enquanto o vazio se alastrava em seu peito. Ele recitou as orações que aprendera, repetiu as histórias que ouvira tantas vezes, tentando preencher o espaço que a morte deixará para trás.
Mas a natureza seguia seu curso, indiferente à dor humana.
O sol continuava a nascer e a se pôr, as chuvas caíam e os rios corriam.
A floresta, imponente e eterna, parecia lembrar-lhe de que a vida precisava seguir adiante.
Com o coração partido, Jatyr enterrou Einar sob a sombra da rainha da floresta, uma majestosa sumaúma que dominava o horizonte como uma sentinela antiga. Ele marcou a sepultura com pedras e flores silvestres, prometendo a si mesmo que honraria a memória de seu mentor.
Desde então a solidão tornou-se sua companheira constante, um fardo que ele carregava com resignação. Jatyr não sucumbiu ao desespero.
Em vez disso, encontrou forças na natureza ao seu redor. Ele continuou a viver conforme os ensinamentos de Einar, aprendendo a ser autossuficiente, a confiar em seus instintos e a respeitar os ritmos da floresta.
Sua rotina agora era um balé intrincado de sobrevivência, onde cada movimento, cada respiração, estava em sincronia com o pulsar da Mãe Yaci. Pela manhã, acordava antes do sol, sentindo o despertar silencioso da floresta.
A caça era uma arte que Jatyr passou a dominar com maestria nos últimos anos.
Agora com quinze anos, ele sabia construir armadilhas engenhosas com cipós e galhos, armar o arco com precisão mortal e mirar o coração da presa com a serenidade de um samurai.
Mas a caça, para Jatyr, não era apenas uma forma de obter alimento, era um ritual de respeito e gratidão pela vida que se entregava para nutrir a sua.
A sobrevivência física era apenas uma parte de sua existência. A leitura era um dos seus maiores prazeres, um legado do eremita que o ensinou a decifrar as palavras e a encontrar significado nos textos antigos.
Em suas horas de descanso, lia e relia os poucos livros que o eremita havia deixado, a maioria deles manuais de sobrevivência e guias de plantas medicinais, escritos em um português arcaico e desgastado pelo tempo.
Nas palavras e nas ilustrações desbotadas, Jatyr encontrava consolo e curiosidade. Longe de ser apenas uma busca por sobrevivência, sua vida se equilibrava entre o presente e o passado, entre a natureza e o conhecimento esquecido.
À noite, quando a selva mergulhava na escuridão, lembranças fragmentadas surgiam como ecos distantes.
O rosto de sua mãe, com olhos amendoados e uma voz suave, emergia em seus sonhos, cantando uma canção numa língua que ele mal podia recordar. Esses fragmentos, incertos e fugazes, aqueciam seu peito como brasas de um fogo antigo, mantendo vivo o mistério de sua origem.
Em meio a essa busca incessante por respostas, um objeto se destacava: o amuleto que ele carregava desde que fora encontrado pelo eremita.
Jatyr jamais se separava daquele pequeno disco de metal, frio ao toque e coberto por inscrições intrincadas que pareciam dançar sob a luz. Cada vez que o examinava, percebia novos detalhes, como se o objeto estivesse vivo, revelando seus segredos lentamente.
O amuleto resistia ao tempo, sem sinais de desgaste, como se fosse imune às forças naturais que moldavam tudo ao seu redor. Era um fragmento de um mistério que Jatyr ansiava por desvendar.
Ele passava horas estudando o amuleto, comparando suas marcas com as ilustrações dos livros que Einar deixara. Contudo, nunca conseguira encontrar um paralelo exato.
Einar, apesar de sua vasta sabedoria, também não conseguira decifrá-lo. O velho eremita acreditava que aquele artefato era algo muito além do que eles poderiam compreender — um vestígio de uma tecnologia avançada e perdida, um eco das eras anteriores ao cataclismo.
Às vezes, Jatyr sentia que o amuleto sussurrava para ele, chamando-o para algo maior. Era uma sensação instintiva, quase sobrenatural, que o acompanhava desde a infância. O disco parecia vibrar levemente em suas mãos, uma pulsação quase imperceptível, mas constante, como se estivesse à espera de um propósito desconhecido.
Com o tempo, Jatyr começou a se aventurar além dos limites seguros da Mãe Yaci. A floresta que ele conhecia, com sua exuberância e vida, terminava abruptamente nas Terras de Anhangá, um reino de sombras e desolação.
Aquele território parecia emanar uma energia maligna, como se a própria terra estivesse contaminada por algo sombrio e antigo.
O contraste entre as árvores mortas e retorcidas e a vitalidade da Mãe Yaci era tão extremo que Jatyr se perguntava se as fronteiras entre os dois mundos não fossem mais do que físicas — talvez fossem espirituais.
Ele nomeara aquele lugar de “Terras de Anhangá”, baseado nas antigas lendas que Einar lhe contava sobre um espírito das trevas. Anhangá, diziam as histórias, era uma criatura que assumia a forma de um cervo espectral com olhos de fogo, um prenúncio de destruição e caos.
As árvores enegrecidas daquelas terras, seus galhos retorcidos como mãos suplicantes, pareciam ecoar o espírito das lendas, erguendo-se em silêncio sepulcral contra o céu eternamente nublado.
A presença de Jatyr naquele lugar era sempre breve. O solo estéril, as águas contaminadas e os predadores mutantes tornavam a sobrevivência quase impossível.
Mas ele era atraído por elas, como um viajante que, embora consciente dos perigos, sente que sua jornada só estará completa quando atravessar o território amaldiçoado.
Vasculhando as ruínas de antigas construções, Jatyr encontrava símbolos estranhos, gravados em metal corroído ou desbotados nas pedras. Cada descoberta, por menor que fosse, despertava nele um misto de fascínio e terror.
Em uma de suas incursões pelas Terras de Anhangá, Jatyr se viu diante de uma estrutura semi-enterrada, seus contornos metálicos brilhando de forma espectral sob a luz fraca que penetrava o véu de cinzas no ar. Ele limpou a sujeira que cobria o objeto e sentiu o coração acelerar. Parecia uma máquina, talvez parte de algum tipo de sistema maior, embora suas funções estivessem além de sua compreensão.
Tudo ali parecia ter sido forjado por mãos humanas, mas a tecnologia, assim como o amuleto que ele carregava, era de uma era que ele mal podia imaginar.
Após horas de exploração, Jatyr sempre retornava à segurança da Mãe Yaci, onde o ar era puro e a natureza ainda florescia. Lá, ele encontrava consolo, como se a floresta o purificasse das energias sombrias que absorvia em suas viagens às Terras de Anhangá.
Ao final de cada expedição, ele parava à beira do rio e observava a correnteza contínua que refletia o céu e as árvores, como se o mundo estivesse se curando a cada gota de água que fluía.
“Rainha Iara,” murmurou ele certa vez, enquanto se ajoelhava na beira do rio. “Que suas águas lavem minhas dúvidas e me concedam clareza.”
Jatyr mergulhou o amuleto na água fria, na esperança de que, de alguma forma, aquele ato o aproximasse das respostas que tanto buscava. No fundo de seu coração, ele acreditava que o amuleto era a chave para algo maior, algo que poderia explicar seu passado e guiá-lo em sua jornada.
Recolhendo alguns frutos silvestres e raízes comestíveis, Jatyr preparou uma refeição frugal à beira do rio. Degustando cada mordida com gratidão. Enquanto comia, observava o balé dos pássaros que se preparavam para o descanso noturno, seus cantos melodiosos preenchendo o ar com uma serenidade que acalmava seu coração. “Irmãos alados,” sussurrou ele, “que seus sonhos sejam leves e seus voos sejam livres. Que a noite traga descanso e a manhã, novas aventuras.”
O sol desapareceu no horizonte, dando lugar à lua prateada que se erguia no céu estrelado. Jatyr se deitou sob a copa de uma árvore, envolvendo-se em sua manta. O amuleto, pendurado em seu pescoço, repousava sobre seu peito, como um talismã protetor.
“Espíritos da floresta,” murmurou ele, fechando os olhos, “protejam-me durante a noite e me guiem em meus sonhos. Que eu possa encontrar a paz e a sabedoria que busco.” Logo depois Jatyr caiu no sono.
Nessa madrugada, a floresta rompeu o silêncio em um grito de caos. Um rugido distante, como o de uma fera colossal, reverberou entre as árvores. O solo tremeu. O ar, antes fresco e úmido, tornou-se quente e seco.
Jatyr despertou com um sobressalto, sentindo o calor sufocante rastejar sobre sua pele. Quando abriu os olhos, viu o céu tingido de um laranja ameaçador. Línguas de fogo lambiam as árvores centenárias, transformando-as em tochas gigantescas que iluminavam a noite com um brilho infernal.
O canto dos pássaros deu lugar a um coro de barulhos desesperados, enquanto animais fugiam em pânico, buscando escapar da destruição.
Jatyr despertou com pressa, desceu rapidamente da arvore e viu as chamas se aproximarem com uma velocidade aterradora. Ele sentia o calor insuportável crescendo a cada segundo, ele sabia que precisava correr, mas por um momento ficou paralisado, suas pernas presas ao chão pela lembrança de outra tragédia.
Em meio ao caos que se desencadeava, uma imagem vívida irrompeu na mente de Jatyr, tão real e dolorosa quanto as chamas que lambiam a floresta ao seu redor: o rosto de sua mãe, os olhos amendoados marejados de medo, um grito silencioso que ecoava em seus pesadelos.
Ele a viu pela última vez em um dia fatídico, quando o fogo consumiu seu lar e o arrancou dos braços maternos, lançando-o em um mundo de incertezas e solidão. A lembrança era um punhal cravado em seu coração, uma ferida aberta que o tempo não conseguia cicatrizar.
O calor sufocante, o cheiro acre de carne queimada, os gritos dos animais em desespero que cortavam o ar como navalhas, tudo voltava com a força de um vendaval, assombrando seus sentidos. As lágrimas brotaram em seus olhos, quentes e salgadas, misturando-se ao suor e à fuligem que lhe cobriam o rosto.
“Mãe!”, ele gritou, sua voz rouca e desesperada se perdendo no rugido do fogo e no estrondo da mata que desabava ao seu redor. Não houve resposta, apenas o eco de sua própria dor e o crepitar implacável das chamas.
Um barulho ensurdecedor, como o de um trovão, o trouxe de volta à realidade. Uma árvore gigante, consumida pelas chamas, desabou a poucos metros de distância, seus galhos em brasa caindo como meteoros. Ele despertou do transe e rapidamente correu em direção a sua cabana, agarrou sua mochila, um presente do eremita que continha seus poucos pertences, e seu arco, sua única arma contra a fúria da natureza.
Seus olhos, antes nublados pelo medo, agora ardiam com a chama da determinação. Ele sabia que não podia ficar ali, que a floresta que o acolhera por tantos anos agora se transformava novamente em um inferno que ameaçava consumi-lo.
Com um grito de guerra que ecoou pela mata, Jatyr começou a correr, seus pés descalços encontrando o caminho mais seguro. Correu como nunca antes, impulsionado pela memória de sua mãe e pelo instinto de sobrevivência que pulsava em suas veias.
Ele saltou sobre troncos caídos, desviou de galhos em chamas e se esquivou de animais em pânico que corriam em todas as direções, seus olhos selvagens refletindo o terror que se apoderara da floresta. Seus pulmões ardiam, suas pernas tremiam, mas ele não podia parar.
Ele correu até chegar à beira de um penhasco, o rio Amazonas rugindo abaixo. Sem hesitar, ele se lançou no vazio, a água fria o envolvendo em um abraço que o aliviava do calor insuportável das chamas. Ele nadou com todas as suas forças, lutando contra a correnteza e o desespero, seus braços e pernas se movendo em um ritmo frenético que o impulsionava para a outra margem.
Quando finalmente alcançou a margem oposta, ele desabou na areia, exausto e ferido. Deitado ele contemplou o céu estrelado. Mais uma vez, ele havia sobrevivido, mas a que custo? Primeiro sua mãe, depois seu mentor, e agora seu lar.
Sua casa estava destruída, sua vida despedaçada mais uma vez, a solidão o envolvia, deixando apenas o vazio de um mundo que parecia se voltar contra ele.
O olhar de Jatyr vagava pelas estrelas, cada ponto luminoso tão distante e intocável quanto a própria esperança.
Mas no vazio daquele céu sem fim, algo cintilou diferente. Um brilho distante e suave, que não era uma estrela, reluzia além da linha das árvores atras dele, quase como uma promessa silenciosa.
Talvez fosse apenas uma miragem da exaustão, ou quem sabe um último presente dos deuses esquecidos que Einar lhe ensinara a reverenciar.
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