Os passos de Jatyr eram cautelosos, a respiração pesada enquanto o mundo ao seu redor se contorcia em sombras. O cheiro da terra úmida se misturava ao gosto metálico do sangue em sua boca, um lembrete cruel de que ainda estava vivo.

    O ar pareceu prender o fôlego. O mundo à sua volta parou. O vento se calou. Nem as folhas se atreviam a balançar.

    Entre os troncos retorcidos, movendo-se como um sussurro entre o mundo dos vivos e o dos mortos, Kûara’ika emergiu da escuridão. Seu corpo era um espectro vivo de músculos que se moviam em harmonia brutal, deslizando entre as sombras como uma prece esquecida.

    Sua presença era majestosa e terrível ao mesmo tempo, como um espírito ancestral encarnado.

    “Os antigos chamavam de Yaguaraté — aquele que mata de um salto. Mas o verdadeiro nome deles é Kûara’ika,” Einar dissera certa vez, enquanto desenhava formas primitivas na terra. “Não são apenas caçadores. São sentinelas. Onde um deles pisa, a floresta se dobra em respeito. O dia teme enfrentá-los, e a noite os chama de irmãos.”

    Jatyr ficou imóvel. Seu coração bateu forte sentindo o peso do olhar da fera.

    Um azul profundo, intenso. Vivo.

    Mas algo estava errado.

    A fera balançou a cabeça, um movimento brusco, instável. Como se estivesse presa em um pesadelo do qual não conseguia acordar. Algo dentro dela lutava.

    O brilho ancestral piscou, trêmulo. Fragmentado. E então, a mudança começou.

    Uma onda negra, como tinta dissolvendo-se na água, escorreu lentamente sobre a íris azul de Kûara’ika. O brilho foi engolido, transformando-se em algo denso, pulsante. Como se uma sombra ganhasse carne e respirasse.

    A escuridão não apenas cobria os olhos da onça — ela escorria por sua pele, impregnando seus músculos como veneno. Por um instante, Jatyr teve a nítida impressão de que algo tentava sair de dentro dela, como se a fera fosse apenas um invólucro prestes a se romper.

    O coração de Jatyr trovejou em seu peito.

    Ele já tinha visto aquele brilho antes.

    — Anhangá… — O nome escapou de seus lábios como um sussurro amaldiçoado.

    A fera tremeu, as patas afundando no solo. Sua respiração transformou-se em um som gutural, carregado de dor. Ela estava resistindo.

    Mas o espírito das sombras não cedia.

    Um rugido.

    O chão tremeu. Os ossos de Jatyr vibraram. O ar ao seu redor se fragmentou, carregado por uma fúria ancestral.

    Não era um chamado de caça.

    Era um grito de guerra.

    Kûara’ika avançou.

    Seus instintos assumiram o controle, fazendo-o erguer a lança no último instante. Mas a fera era rápida. Rápida demais.

    O ataque veio como uma tempestade. Ele tentou desviar, mas a garra passou perto demais. O vento quente do golpe cortou sua pele antes que ele conseguisse girar o corpo e saltar para trás.

    Ele tentou reagir. Mas não havia espaço.

    Cada golpe desferido contra a fera encontrou apenas vazio e sombras. Kûara’ika era um vulto em movimento, um fantasma negro que se dissolvia e renascia a cada instante.

    Ele não podia vencer.

    Não havia honra em morrer ali. Somente um fim inglório e esquecido.

    O golpe da pata negra veio com uma força devastadora, arrancando a lança das mãos de Jatyr. O impacto reverberou por seus ossos enquanto a arma era lançada para longe, tornando-se inútil na escuridão do solo.

    Ele mal teve tempo de reagir.

    Recuando, pegou o arco. Seu movimento era rápido e ensaiado, um reflexo treinado desde a infância. Mas antes que pudesse sequer mirar, um golpe certeiro esmagou sua arma.

    O estalo foi ensurdecedor.

    A madeira cedeu. Quebrou-se em duas.

    Seu arco, a extensão de sua própria sobrevivência, agora era nada mais do que fragmentos de madeira inúteis. Um símbolo de sua impotência diante daquela força selvagem.

    Jatyr caiu de costas. O céu e a terra trocaram de lugar enquanto ele rolava sobre folhas secas e pedras afiadas. Um instante antes que as garras encontrassem sua carne, ele lançou o corpo para o lado.

    O solo explodiu onde ele estivera.

    Ele se ergueu em um salto, puxando a faca.

    Mas hesitou.

    Kûara’ika tremia.

    Não por raiva. Por algo mais profundo.

    Seus músculos vibravam, contorcendo-se em espasmos irregulares. A respiração era entrecortada, errática, como se cada sopro fosse uma luta para manter-se no próprio corpo.

    Ela não estava ali por vontade própria.

    Jatyr viu.

    A guerra dentro dela.

    O azul de seus olhos debatia-se contra a maré negra, relutante. As patas afundavam na terra, como se estivessem tentando se segurar no mundo real.

    — Lute! — Jatyr gritou, os olhos fixos nela. — Não deixe esse espírito podre roubar o que você é!

    Jatyr avançou um passo. Seu coração martelava dentro do peito, mas sua voz permaneceu firme.

    Por um instante, a fera hesitou.

    A respiração dela ficou irregular, e um grunhido baixo escapou de sua garganta — não de ameaça, mas de dor.

    Kûara’ika baixou a cabeça. Seus olhos piscavam freneticamente, os músculos de seu corpo tremiam em espasmos.

    Jatyr engoliu em seco. Talvez estivesse funcionando.

    O rugido que veio a seguir foi diferente. Mais gutural. Mais bestial.

    Desta vez, não era dela.

    Jatyr apertou a faca na mão. Poderia atacar agora, mirar em sua garganta e acabar com isso antes que Anhangá assumisse o controle total.

    Mas algo dentro dele se recusava a agir.

    Aquela não era sua inimiga.

    A verdadeira batalha não era entre ele e a onça, mas entre a fera e a entidade maligna que tentava corrompê-la.

    Ele sentiu um aperto no peito. Qualquer outro naquela situação teria matado a fera sem hesitação. Teria visto apenas o perigo, apenas a ameaça. Mas Jatyr não conseguia.

    “Todo espírito que caminha pela terra é testado. Alguns caem, se perdem no caminho e tornam-se apenas sombras do que foram. Outros lutam até o fim, e o que resta deles se transforma em lenda.”

    “Se um dia você cruzar o olhar de um deles, lembre-se: você está diante de algo maior que a carne. Maior que você. Respeite-o.”

    Ele deu um passo para trás. Depois outro. Seus olhos não deixavam os da onça. Ele via a dor ali, o desespero preso em sua expressão animalesca.

    Se atacasse, estaria apenas matando uma vítima. Mais uma…

    — Eu não vou te matar. — Sua voz era baixa, mas firme. — Você não merece isso.

    Por um breve instante, Kûara’ika hesitou.

    E então, como se enfurecido pela resistência da fera, Anhangá tomou controle outra vez.

    A escuridão se retorceu. As sombras pulsaram.

    E o que restava de Kûara’ika foi arrancado de dentro dela.

    A batalha foi perdida.

    Agora, não era mais ela que olhava para ele.

    Você achou mesmo que seria tão fácil? — A voz de Anhangá ecoou na escuridão, reverberando pelo ar como um trovão abafado. O som estava em toda parte. No sussurro das folhas, na respiração ofegante da floresta, no próprio coração de Jatyr. Era um som antigo, profundo, carregado de um rancor silencioso e frio — não um rugido de fúria, mas a voz de algo que já não precisava gritar para ser ouvido.

    A escuridão que envolvia Kûara’ika se retorceu, pulsando como um organismo vivo, e então, a fera caminhou. Seu corpo não mais movia-se apenas com a graça de um predador, mas com um peso sobrenatural, como se a própria terra se dobrasse sob suas patas.

    Seus olhos, antes um reflexo puro da noite estrelada, agora eram poços de trevas líquidas, incandescentes em seu próprio horror. Cada passo da criatura fazia o chão ranger, como se a terra protestasse contra.

    — Você achou que minha presença era apenas um sussurro? Que minha essência se curvaria diante da sua mera persistência? — Anhangá avançou. — Eu sou o guardião destas terras, o ciclo eterno de morte e renascimento… mas agora, renasço apenas para trazer a ruína.

    Jatyr não recuou. Seu coração martelava no peito, seus músculos gritavam em exaustão, mas ele não desviou o olhar da fera à sua frente. A presença de Anhangá era sufocante, esmagadora, mas ele já enfrentara outros horrores — e sobrevivera.

    — Eu não temo suas sombras, Anhangá. — Sua voz era rouca, cansada, mas firme.

    — Sei exatamente o que você é. Você veste essa forma de fera, espalha sua escuridão como uma maldição, mas no fundo… você não passa de um espectro quebrado, uma voz que ecoa sem propósito, um espírito que se esqueceu do que era. Você tenta me fazer temer, mas tudo o que vejo é algo que já esteve perdido muito antes desta noite.

    Ele cerrou os punhos, a respiração pesada. — Sua corrupção é apenas um véu, e toda a névoa se dissipa diante da luz.

    A escuridão ao redor pulsou, reagindo às palavras de Jatyr como se tivesse sido afrontada.

    Anhangá riu.

    Não foi uma explosão de fúria, mas algo baixo, arrastado, cruel — um som que carregava o peso de séculos de desprezo e decepção.

    — Luz? — A voz deslizou pelo ar como lâminas frias. — Ah, Jatyr… Você ainda não entende. Eu fui luz.

    A onça ergueu a cabeça, e por um instante, seus olhos brilharam com algo que quase poderia ser saudade.

    — Eu fui a promessa de um amanhã. O farol dos que caminhavam na noite sem nome. — Sua voz baixou, tornou-se mais profunda, mais íntima. — Eles me chamavam quando estavam à beira do abismo. Eu os guiava para longe do medo. Eu os ensinava a ouvir a floresta, a respeitar os ciclos da terra. Eles erguiam cânticos ao meu nome, me honravam com suas oferendas, me viam como o guardião daqueles que vagavam sem destino.

    O brilho em seus olhos se apagou, e então veio a escuridão novamente, engolindo qualquer traço de humanidade que um dia existira.

    — E então…

    A voz de Anhangá se tornou um sussurro cortante, venenoso, mas carregado de uma tristeza corrosiva.

    — Quando os ventos frios varreram as tribos, quando a doença e a fome consumiram suas esperanças, quando suas preces já não eram atendidas, eles buscaram culpados.

    As sombras ao redor se remexeram, como se refletissem a dor e a fúria contidas em cada palavra.

    — “Onde está Anhangá?”, perguntaram. “Por que nosso guardião nos abandonou?” Mas eu estava lá. Sempre estive. Só que eles não viam, não sentiam. Quando o medo se tornou maior que a fé, os mortais me amaldiçoaram. Rasgaram meus símbolos. Queimaram meus totens. Diziam que eu era a causa do sofrimento, que minha presença não era bênção, mas maldição.

    A risada de Anhangá ressoou, um som vazio, um eco de algo quebrado para sempre.

    — E eu os observei. Eu os vi gritarem meu nome em súplica… e depois em ódio. Vi seus líderes rasgarem minhas imagens, pisotearem minha memória, me enterrarem sob o esquecimento. Eles me mataram, Jatyr. Mas espíritos como eu… não morrem tão facilmente.

    — Você quer falar sobre luz? — A voz de Anhangá vibrou no ar, mais profunda, mais forte, mais sombria. — Você acredita que sua “resistência” tem algum significado? Que sua vontade pode dissipar as sombras que se espalham por esta terra? O que você entende sobre o peso de carregar uma eternidade de traição? O que você sabe sobre ser arrancado do mundo que jurou proteger, sobre ser moldado pelo rancor até que cada fibra de sua existência se tornasse um sussurro de destruição?

    — Eu fui o escudo, o guardião, o elo entre os homens e os espíritos. — Anhangá avançou um passo, e as sombras pareceram se erguer atrás dele como um manto vivo. — Mas a luz se foi. O que restou? Nada além da fome insaciável do vazio. Você acredita que pode me enfrentar, Jatyr? Você acredita que pode mudar um destino já escrito? Você não é nada além de um fio frágil no tear da existência. Eu sou a lâmina que corta esse fio.

    Jatyr não desviou o olhar. O peso das palavras de Anhangá era como correntes invisíveis tentando envolvê-lo, apertá-lo, arrastá-lo para as sombras.

    Mas ele não cederia.

    Seu peito subia e descia com a respiração pesada. Sua mente ecoava as palavras do espírito, as imagens que ele pintava de um mundo traidor, de um passado em ruínas, de um destino inevitável. Mas Jatyr conhecia a verdade.

    Ele ergueu o queixo, a faca firme em sua mão suja de sangue seco. Não havia medo em seus olhos. Apenas uma convicção cravada no próprio espírito.

    — Eu entendo a dor que carrega, Anhangá. — Sua voz saiu baixa, mas cortante. — Sei como é ter tudo arrancado de você. Sei o que significa ser traído pelo mundo, sentir o chão se abrir sob seus pés e perceber que nada nunca foi seu de verdade. Eu já vi a vida cuspir nos que mereciam a eternidade e poupar aqueles que deviam ter sido esquecidos.

    Ele deu um passo à frente.

    — Mas não é a dor que nos define.

    O vento soprou entre as árvores mortas, como se a própria floresta tivesse prendido o fôlego.

    — Você acha que é o único que já foi abandonado? O único que perdeu tudo? O único que olhou para o céu e não encontrou respostas? — Sua voz ganhou força, sua postura se tornou mais firme.

    — Você se veste com essa armadura de sombras, se enche dessas palavras pesadas como se fosse o único a carregar um fardo impossível. Mas olhe ao seu redor, Anhangá! O mundo inteiro foi traído! Cada pedra que desmorona, cada árvore que apodrece, cada espírito que definha na terra seca! Você não é a única vítima aqui.

    As sombras ao redor tremularam, como se a presença de Anhangá estivesse sendo desafiada pela primeira vez em eras.

    — Você fala de ciclos, de destruição inevitável. Mas se o mundo sempre desmorona, se tudo está fadado a ser engolido pelo vazio, então por que ainda lutamos? — Ele apontou a faca para a onça possuída. — Por que estamos aqui, agora, se tudo já está decidido?

    A terra sob seus pés tremeu levemente, mas ele não cedeu um único passo.

    — Porque sempre há escolha.

    As palavras saíram como uma lâmina cortando a escuridão.

    — O mundo pode ruir um milhão de vezes, os deuses podem nos abandonar, as memórias podem ser rasgadas do tempo. Mas enquanto houver alguém que se recuse a se ajoelhar diante da ruína, ela nunca será completa.

    Seu peito queimava, seus músculos gritavam em protesto, mas seus olhos brilhavam com algo que nem a noite de Anhangá poderia apagar.

    — Você pode se vestir de maldição, pode gritar para os ventos que é o fim inevitável de tudo. Mas você não passa de um espírito quebrado que não sabe onde mais existir. E eu… — Ele apertou os punhos, respirou fundo. — Eu sou aquele que segue em frente.

    — Não importa quantas sombras me cerquem, não importa quantos rostos me assombrem. Eu já perdi tudo uma vez, e mesmo assim estou aqui. Porque a dor não define o homem, Anhangá. O que nos define é o que escolhemos fazer com ela. — Ele ergueu a faca, apontando-a para a fera corrompida. — Você quer o fim? Venha tomá-lo. Mas saiba disto: eu não me ajoelho para a ruína. Se o destino destas terras é ser consumido pelo vazio, então eu lutarei contra o próprio destino

    A brisa soprou, carregando consigo o silêncio que se seguiu.

    E então, Anhangá riu.

    A risada começou como um sussurro.

    Baixa, arrastada, como folhas secas roçando umas nas outras. Mas então, cresceu.

    Ecoou na escuridão. Se espalhou pelo ar. Não era um riso comum. Não havia alegria ali. Era o som de algo que desprezava a própria existência, algo que ria não por diversão, mas por desprezo absoluto.

    O som reverberou entre as árvores mortas, subiu como um trovão distorcido que se partia em fragmentos, ecoando como múltiplas vozes dentro da mesma garganta.

    Então, a risada parou abruptamente.

    — Ah, Jatyr… Você é mesmo um tolo fascinante.

    O tom era puro desdém, mas havia algo mais. Uma frieza antiga, algo que vinha de um lugar muito além do tempo.

    A onça possuída inclinou levemente a cabeça para o lado, observando-o como se analisasse uma criatura menor, irrelevante.

    — Você acredita que suas palavras podem me ferir? Que sua convicção, esse fogo patético que arde em seu peito, pode me apagar?

    A voz de Anhangá se aprofundou, densa e fria. As sombras ao redor ondularam, não como algo ameaçador, mas como devotos diante de um deus sombrio. Cada movimento das trevas era uma reverência silenciosa, um culto à ruína.

    — Você fala de escolha. Fala de resistência. Mas me diga, Jatyr…

    Ele deu um passo à frente, e a terra pareceu gemer sob suas patas.

    — Onde estavam essas palavras quando sua aldeia queimou?

    O ar esfriou instantaneamente.

    — Onde estava sua esperança quando aqueles que você amava eram esmagados sob o peso de um destino cruel? Onde estava sua força quando a lâmina do tempo cortou aqueles que juraram proteger você?

    A presença de Anhangá parecia crescer. Expandia-se ao redor, esmagadora, sufocante, como uma neblina que se infiltrava na própria alma.

    — Eu já ouvi essas mesmas palavras antes. — Sua voz oscilava, ora um sussurro cruel, ora um rugido profundo. — “Ainda há esperança”, “a luz sempre retorna”, “não importa quão escura seja a noite”…

    Ele cuspiu as palavras como veneno, carregadas de ódio e ironia.

    — E sabe o que aconteceu com aqueles que ousaram acreditar?

    As sombras ao redor se contorceram, assumindo formas trêmulas e difusas. De repente, rostos surgiram na penumbra, rostos que Jatyr conhecia tão bem quanto seu próprio reflexo. Einar, o olhar sereno tingido de tristeza. Os aldeões, suas expressões congeladas no medo eterno. Sua mãe, a voz dela sussurrando promessas que nunca poderiam ser cumpridas. As visões flutuavam como espectros, cada uma um fio de realidade tecido na tapeçaria da culpa.

    — Eles foram consumidos. Rasgados pela realidade. Suas vozes foram silenciadas e agora não passam de ecos fracos no tempo.

    O silêncio caiu sobre a floresta.

    Mas os olhos de Anhangá brilhavam na escuridão, profundos como o próprio abismo.

    — E você… — Sua voz agora era um sussurro baixo, cortante.

    — Eu senti sua determinação, Jatyr… — Anhangá continuou, a voz deslizando como lâminas pela pele. — Mas de que adianta? Sua força é um sussurro na tempestade. Um eco apagado em um mundo que já foi consumido pelo vazio.

    Jatyr mantinha a faca firme nas mãos, mas o peso das palavras parecia dobrar seus ombros. A respiração estava pesada, o suor escorrendo pela testa enquanto seus olhos tentavam seguir os movimentos sinuosos da onça possuída.

    — Saia dela, Anhangá. — Jatyr finalmente falou, a voz rouca, mas firme. — Kûara’ika merece mais do que ser um fantoche da sua corrupção.

    A criatura parou, o pescoço se contorceu de forma antinatural, e a cabeça da onça inclinou-se para o lado, observando-o com uma curiosidade que parecia quase humana. A risada que seguiu foi baixa e arrastada, como uma corrente de ar gelado.

    — Ah, mortais e sua misericórdia envenenada… Merece? — Anhangá debochou. — Merecimento… uma palavra vazia em um mundo onde tudo é ceifado pela mesma lâmina. Diga-me, Jatyr, o que você merece? O que merece um homem que carrega o peso do fracasso em cada cicatriz?

    Jatyr cerrou os punhos. As lembranças de Einar, as visões distorcidas pela névoa, tudo aquilo voltava com o peso de uma maré negra. Mas ele não desviou o olhar.

    — Eu luto pelo que resta deste mundo. — respondeu ele, cada palavra uma âncora contra o turbilhão. — Eu luto pela vida, pela esperança.

    A criatura avançou alguns passos, as sombras ao redor pareciam crescer e se enrolar em suas patas, como serpentes de escuridão. Quando falou novamente, a voz de Anhangá parecia sussurrar dentro da própria mente de Jatyr.

    — Esperança? — O tom era quase divertido, mas carregado de veneno. — O destino dessas terras já foi selado muito antes de você nascer, Jatyr. Eu sou o oblívio, a marcha inevitável que reduz tudo a cinzas. Você pode lutar, pode gritar, pode resistir até seu último suspiro… mas nada disso importa. Seu corpo irá ruir. Sua voz se perderá. Seu nome será varrido como poeira ao vento. Eu existo além da sua vontade, além do tempo, além das suas crenças infantis. Eu não posso ser detido. Eu sou o ciclo natural, o fim inevitável.

    A voz do espírito se aprofundou, carregando um tom melancólico, quase resignado. — Eu trilho o caminho da morte como seu emissário, eu vou extinguir a luz, vou moldar cada vida à minha própria imagem nefasta, vou fazer o seu sofrimento florescer, Jatyr, até que mesmo a esperança grite por misericórdia, até que tudo retorne ao pó, até que cada chama se apague e o mundo sussurre meu nome… como um epitáfio.

    Jatyr respirou fundo, seu corpo inteiro doía, mas ele se forçou a se erguer, a manter o foco.

    — Então me ataque, espírito. Mostre-me o verdadeiro horror que carrega. — Jatyr ergueu a faca, a ponta refletindo a luz pálida das estrelas.

    — Se você é o ciclo, Anhangá, então prove-me que o destino dessas terras é o desespero — Jatyr ergueu o queixo, o olhar firme. — Mas não pense que vou cair sem lutar.

    Um silêncio denso se instalou. As sombras ao redor pareceram pulsar, como se o próprio mundo prendesse o fôlego.

    — Você é apenas uma lembrança fragmentada — Jatyr cuspiu as palavras. — Uma ferida que precisa ser curada.

    — Eu sou o eco de um grito que nunca termina. Minha existência é uma corrente, e cada passo meu arrasta o som do vazio. — A voz de Anhangá era um lamento distorcido, uma mistura de escárnio e dor. — Veja o que restou de mim. Veja a casca vazia, o espírito profanado.

    A onça deu mais um passo, a pele se contorcendo, as sombras pingando como se o próprio corpo sangrasse escuridão.

    Jatyr cerrou os dentes, a faca tremendo em sua mão. — Se tudo o que deseja é destruição, por que não acaba logo comigo? Por que prolongar esse jogo?

    — Porque você ainda não entendeu. — Anhangá sussurrou, a voz deslizando por entre as árvores, ecoando como um vento frio. — Eu não quero apenas o seu corpo, quero a sua alma. Não é a sua morte que eu busco, Jatyr. É a sua rendição. É o momento em que seus joelhos tocarem o chão, quando seu espírito se dobrar sob o peso do desespero. Eu quero que você veja o mundo arder e, enquanto as chamas lamberem o horizonte, que sinta a esperança se esvair como fumaça entre os dedos. Eu quero que você implore pelo fim… e então, eu o negarei.

    As sombras ao redor de Jatyr começaram a se mover, formando rostos distorcidos, olhos vazios e bocas abertas em gritos silenciosos.

    — Se você é o herói, Jatyr, então prove-me. Mostre-me que ainda existe algo além do vazio… ou eu devorarei não apenas sua carne, mas seu nome, sua memória, sua existência. Quando o mundo se dobrar diante do silêncio, não restará nada além de sombras, e seu espírito será apenas mais um eco esquecido no vento.

    O silêncio tomou conta do mundo ao redor. O confronto não era apenas físico, mas de almas. Anhangá não buscava apenas a morte de Jatyr, mas sim destruir tudo o que ele representava.

    E, pela primeira vez, Jatyr sentiu o verdadeiro peso do desafio que tinha pela frente.

    A terra parecia respirar junto à criatura, cada movimento da onça fazia o solo pulsar, as raízes se contorciam como serpentes sob a pele da terra. O ar ao redor de Jatyr ficou denso, como se cada respiração fosse filtrada através da morte.

    A pele de Kûara’ika começou a se distorcer. A corrupção de Anhangá avançava como fogo invisível, queimando de dentro para fora. Pedaços do pelo negro caíam em cinzas, as patas deixavam um rastro de escuridão líquida que evaporava antes de tocar o solo. As garras da fera se esticaram, rachando, os ossos estalavam com um som seco e profundo.

    Jatyr observou em silêncio, o peito subindo e descendo, tentando manter o controle da respiração. A imagem da onça se fragmentava diante dele, cada espasmo era um lembrete de que nada vivo suportava a presença de Anhangá por muito tempo.

    Os olhos estreitados, cada detalhe da corrupção gravando-se em sua mente. Havia uma verdade escondida naquelas chamas sombrias. Algo que ele precisava entender antes que fosse tarde demais.

    Anhangá murmurava para si mesmo, as palavras deslizando no ar como óleo negro.

    — Finque suas garras neles… — Sua voz era baixa, quase um sussurro. — Rasgue suas carnes frágeis… Arranque cada fio de vida… Nossa vingança pulsa nas veias deles…

    As sombras ao redor pareciam responder, ondulando, puxadas pela melodia sombria de suas palavras.

    — Eles vão cair… — continuou o espírito. — Tão patéticos quanto nasceram… Tão frágeis quanto sempre foram.

    — Avante… carne fraca… — A voz de Anhangá era um lamento e um comando ao mesmo tempo. — Para a morte, para o caos… Temos horrores a cumprir, vidas a arrancar, medos a semear. Eles devem se arrepender de cada suspiro, de cada passo, de cada sonho tolo de liberdade.

    — Corte… Mutile… — Anhangá sussurrava, mas suas palavras pareciam ecoar de dentro do próprio corpo de Jatyr. — Transforme-os em nada… Faça o vazio se alimentar deles…

    Jatyr deu um passo para trás. Seu corpo todo doía, a exaustão fazia suas pernas tremerem, mas ele não permitiu que o medo dominasse sua expressão. Ele sabia que precisava resistir. Sabia que Anhangá esperava uma fraqueza, um deslize.

    A fera avançou novamente, sombras saíam de suas feridas como fumaça de carvão, se dissolvendo no ar.

    A criatura abaixou o corpo, os músculos tensos sob a pele dilacerada, sombras dançantes surgiram ao redor de ambos.

    E então, a fera avançou junto das sombras.

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