A floresta jazia morta.

    Nenhum som de insetos, nenhuma brisa movendo as folhas – só o silêncio sufocante de algo que espreitava no escuro.
    As árvores, espectros retorcidos, erguiam-se como dedos carbonizados em meio à neblina. O cheiro de enxofre misturava-se ao ferro do sangue seco, saturando o ar denso. Cada passo de Jatyr esmagava folhas podres, seu corpo cansado um reflexo da paisagem.

    O guerreiro apertou a faca na mão direita. O cabo de osso estava escorregadio de suor e sangue. O braço esquerdo latejava – a ferida aberta por uma das garras de Kûara’ika ainda não havia coagulado por completo, pulsando como um aviso sombrio. Cada movimento era um lembrete de que estava vivo, mas apenas por um fio.

    — Einar certa vez disse que até a sombra mais densa teme o fogo…, mas o fogo que resta aqui é apenas a chama da minha vontade. Só me restam a faca e a esperteza. — Jatyr apertou a mandíbula, sentindo o gosto metálico do sangue na boca. Ele não tinha fogo, mas tinha o terreno. Tinha a faca. Tinha a mente.

    O vulto se moveu na escuridão. Não um movimento natural, não o deslizamento grácil de um felino. Era um arrastar irregular, um passo incerto, seguido por um estalo seco. Então veio o som: um rosnado baixo, gutural, vibrando no ar como se saísse das entranhas da terra.

    A onça estava lá, um amontoado de carne corrompida que outrora fora um predador soberano da mata. O ar cortou como uma lâmina quando Kûara’ika pulou.

    Jatyr jogou-se para o lado, mas não rápido o bastante. As garras negras cortaram o ar como adagas, e a ponta de uma delas passou arranhando as costelas. Quente – o sangue escorreu por seu flanco antes mesmo que a dor chegasse.

    Você está lento. — A voz de Anhangá não vinha da onça. Vinha de dentro dele, como um verme rastejando em seu crânio.

    — Fala muito para quem não consegue me matar. — Jatyr cuspiu no chão, os dedos apertando o cabo da faca.

    A fera riu – um som que começou como rugido e terminou como o choro de uma criança.

    — Você cansa, pequeno guerreiro. — A voz de Anhangá escorria das árvores, da terra, do próprio sangue em seus ouvidos. — Seus músculos tremem. Suas cicatrizes ardem. Eu ouço seu coração, um tambor fraco, prestes a silenciar. —

    Jatyr cuspiu vermelho.

    — Então venha calar ele.

    A fera mergulhou como flecha envenenada, garras dianteiras estendidas. Jatyr desviou para trás de um tronco, mas não viu a cauda preta que chicoteou seu braço esquerdo. O som foi de chicote em carne viva. A pele rasgou-se em quatro linhas paralelas, profundas o suficiente para expor o branco fantasmagórico do osso da cauda por um instante — antes que o sangue jorrasse, quente e vivo.

    Uma onda de náusea subiu pela garganta, o gosto de bile e metal enchendo sua boca. Ele apertou os dentes para não gritar.

    Mesmo com o braço esquerdo pendendo em choque, seu braço direito moveu-se por puro instinto. A faca riscou o pescoço da fera, mas onde deveria haver artéria, apenas treva espessa vazou.

    Anhangá riu.

    — Sangue por sangue, Jatyr. Mas o seu vermelho algum dia será negro como o meu? —

    A onça recuou dois passos, e Jatyr viu — ou quis ver? — uma fraqueza.

    O corpo de Kûara’ika estava perto, mas o que restava dele era pouco mais que uma casca carcomida. O pelo negro, outrora lustroso, agora se soltava em tufos, revelando carne enegrecida e ossos brancos.

    Seu corpo estava se desfazendo.

    A pele negra descamava como cinzas, os músculos expostos tremiam, e por um momento, ele jurou que o movimento da fera estava mais lento.

    — Está enfraquecendo… — Pensou ele.

    Jatyr pressionou os dedos ao cabo de sua faca. O suor escorria pela testa, misturando-se ao sangue seco que manchava sua pele. Seu braço esquerdo ardia pulsando como um aviso sombrio.

    Mesmo com tamanho sofrimento Jatyr manteve o olhar firme de quem conhecia a dança da morte como ninguém. Não era apenas força ou habilidade – era paciência, era esperar o momento certo para o bote.

    Ele apertou os olhos e concentrou-se no terreno ao seu redor. Havia uma pedra afiada meio enterrada no lodo, alguns galhos pontiagudos espalhados pelos lados. Se usasse o ambiente, talvez conseguisse atrasar a criatura. Mas precisava de tempo. Precisava fazer Anhangá errar.

    O vulto emergiu da penumbra.

    A onça. Ou o que restava dela.

    — Cada golpe que ela desvia a custo… cada espasmo nos músculos dela… talvez se eu forçar… ela não vai aguentar. —

    Ele deu um passo para trás, inclinando-se levemente para a esquerda, fazendo parecer que estava tentando fugir. Era um truque. Ele precisava que Anhangá acreditasse que estava vencendo.

    — Se eu sobreviver mais um pouco, ele mesmo se destrói. —

    A criatura se movia como um reflexo distorcido do que já fora. O peso das patas deixava buracos profundos no solo lamacento, e cada vez que dava um bote, o corpo vacilava, quase como se estivesse colapsando. Jatyr podia sentir que aquilo estava funcionando. Anhangá fingia dominar a luta, mas era o próprio hospedeiro que se consumia.

    A podridão avançava. Mas a fera ainda estava de pé.

    Jatyr semicerrou os olhos. Cada detalhe contava. Cada passo deveria ser calculado.

    Movendo-se devagar, ele usou o ambiente a seu favor. Tocou uma das raízes expostas com a ponta do pé, testando sua firmeza. Se conseguisse atrair a besta para ali, poderia fazê-la tropeçar. Mais alguns metros e havia um galho afiado, quebrado no ângulo certo para perfurar se uma queda fosse bem planejada.

    A onça se moveu, músculos travados em espasmos. O peso da corrupção sobre seu corpo era evidente.

    Jatyr recuou, conduzindo a criatura para o terreno traiçoeiro. Um passo errado, e as raízes poderiam selar o destino da fera.

    O momento veio como um sussurro no barro.

    A pata da onça afundou entre duas raízes úmidas, e Jatyr viu – com a precisão fria de um caçador – o desequilíbrio tomar o corpo da fera. O peso corrompido cedeu sob si mesmo. Houve um estalo, seco e cruel, quando o joelho da criatura falhou.

    Jatyr se lançou para o lado, saindo do alcance das garras, e usou o pé bom para empurrar com força uma das raízes para cima. O galho afiado que ele havia posicionado antes estava ali, como uma lança cravada na terra. O corpo da onça caiu sobre ele com o baque de uma árvore tombando.

    Um urro.

    Não de dor — de orgulho ferido.

    A lâmina de madeira atravessou a carne, mas não a matou. Kûara’ika ainda se debatia, tremendo como um animal tomado por vermes. O galho perfurava o flanco da besta, mas era pouco para um corpo possuído por algo além da vida.

    — Você quer me vencer com truques de caça? — Anhangá rosnou, sua voz ecoando no interior do crânio de Jatyr. — Eu já fui caçador antes que seus ancestrais aprendessem a temer o escuro.

    — E ainda assim você caiu, o grandioso anhangá sendo jogado em velhos truques.

    jatyr começou a lembrar das batalhas anteriores,

    — A cabeça. Sempre a cabeça. — Concluiu jatyr.

    Com a faca em punho, ele avançou.

    Três passos.

    A fera se ergueu aos tropeços, um dos olhos pendendo em uma cavidade de carne derretida.

    Dois passos.

    A cauda chicoteou o ar atrás de si, mas sem força. O corpo ruía por dentro. Como o muriqui. Como os ossos de um morto que ainda tenta caminhar.

    Um passo.

    Jatyr saltou, gritou com tudo que lhe restava, e cravou a faca direto na cabeça da onça, acima do olho esquerdo.

    A lâmina entrou com um som viscoso, cortando osso, cérebro e sombra

    A criatura estremeceu. Trevas saíram do ferimento, vivas, como cobras líquidas. Tentaram subir pelo braço de Jatyr, envolvê-lo, arrastá-lo.

    Ele largou a faca.

    Rapidamente.

    Deu um salto para trás, tropeçando, caindo de lado. A fumaça negra se ergueu como uma espora em brasa, e por um instante ele achou que fosse sumir.

    Mas não sumiu.

    A onça ainda estava em pé.

    — Você não aprendeu nada… — Anhangá sussurrou com uma calma que doía. — Nem tudo que mata o corpo mata o que habita dentro.

    — Já ouvi algo assim antes…, lembro de Einar me contando que espíritos teimosos perdiam sua existência quando seu hospedeiro morria… talvez anhangá esteja com medo disso, deve estar tentando me enganar… não vai funcionar — jatyr seguia pensando em tudo que pudesse usar contra anhangá.

    A criatura avançou.

    Lenta, porém decidida.

    Jatyr recuava, sangue escorrendo do braço e da perna, cada músculo gritando. Ele se lembrava. Lembrava de como o muriqui morria de dentro. De como os olhos da criatura alada não queimavam como os dessa onça. Ela estava… cedendo.

    O corpo vacilava. A pele se soltava em pedaços. O músculo tremia, falhava.

    — Está… está te matando, não está? — Jatyr arfou. — Esse corpo… não aguenta você. Nenhum aguenta.

    A onça parou. Só por um segundo.

    Jatyr riu. Fraco. Mas riu.

    — Vai morrer sozinho aí dentro, espírito velho. Sua fome é grande demais pro mundo em que nasceu.

    O rugido que veio em resposta não era animal. Era o som de rochas explodindo por dentro da terra.

    A besta avançou.

    Jatyr correu.

    Ele se movia em ziguezague, guiando a criatura por entre as armadilhas naturais — galhos afiados, raízes expostas, lama traiçoeira. Cada curva, um teste. Cada obstáculo, uma chance.

    A criatura tropeçou, vacilou, mas não caiu.

    Jatyr respirava pesado, os ombros subindo e descendo num ritmo desequilibrado. Suava frio. Mas havia algo novo em seus olhos: cálculo.

    Ele observou o tremor nas patas traseiras da onça, o modo como a respiração da criatura vinha em arfadas curtas, desesperadas. A pele pendia como pano molhado. O sangue… não, não era sangue. Era o colapso.

    Ele estava ganhando.

    Por um instante, Jatyr viu de novo o que aprendera sozinho: quando caçava uma anta doente, quando observava um macaco febril prestes a cair de uma árvore. O corpo diz antes da mente. A onça estava morrendo.

    — Tá vendo isso? — disse ele, dando um passo para o lado, os olhos fixos na fera — Ela vai morrer, e vai levar você.

    Silêncio. Mas a fera respirava como um fole velho.

    — Toda vez que você se esconde dentro de alguma coisa… ela apodrece. Lento. Fedendo. Igual agora.

    A criatura avançou meio passo, mas parou.

    Jatyr abriu os braços, zombeteiro. O sangue escorria do flanco, mas a voz tinha algo novo: orgulho.

    — Vai fazer o quê? Eu já te feri. A faca ainda tá cravada na cabeça dela. Vai arrancar e tentar de novo? Já era.

    Um som gorgolejou na garganta da onça. Meio rugido, meio suspiro.

    — E olha só, hein? Tô desarmado — Jatyr disse, erguendo as mãos vazias. — E ainda assim você tá ai parado… todo poderoso, mas sem coragem de encostar. O que foi? Medo de morrer junto?

    A voz veio baixa. Uma nota grave sem pressa:

    — Insolente.

    — Não. Esperto. — Jatyr sorriu. Um sorriso torto, mas cheio. — Eu entendi seu jogo. Não sou como os outros. Não corro. Eu espero. Analiso. Eu caço.

    A onça deu dois passos lentos para o lado, como se tateasse o terreno.

    Jatyr acompanhou.

    — Você devia ter ficado na escuridão como o espirito covarde que é.

    Um tremor percorreu a coluna da fera. Um estalo veio do maxilar. Um olho começou a escorrer como cera derretida.

    Anhangá ficou em silêncio.

    Jatyr, ofegante, deu um passo adiante.

    — Você errou, espírito velho. Acha que só porque tem mil nomes, mil vozes, mil sombras, vai vencer? Eu tenho só um. Jatyr.

    Fez uma pausa.

    — E ainda assim… tô ganhando.

    A onça baixou a cabeça.

    Cambaleou.

    Por um momento, pareceu afundar sobre os próprios joelhos.

    Jatyr avançou um passo, depois outro. O sorriso cresceu. Estava perto.

    É agora, pensou.

    Ele já conseguia ver o fim. Imaginava o corpo caindo. O cheiro da podridão se dissipando. Imaginava — pela primeira vez — vitória.

    Jatyr encarava. Cada fibra do seu corpo dizia: isso está acabando.

    As patas traseiras da onça tremiam como de um animal envenenado. O único olho que lhe restava, antes envolto em podridão e trevas, piscou uma vez… e então brilhou.

    Azul.

    O mesmo tom de antes, quando Kûara’ika ainda era fera livre.

    O corpo da criatura cambaleou mais uma vez, depois parou. Um suspiro longo escapou de suas narinas. As manchas azuis voltaram a emergir do pelo sujo, como se desabrochassem sob a carne morta.

    A corrupção no chão começou a recuar.

    Devagar. Como água voltando ao mar.

    A criatura tombou de lado. Quietamente.

    Então veio o som.

    Não um rugido. Não uma risada. Um gemido seco, quase… humano. Frustrado.

    — NÃO…!

    A voz de Anhangá reverberou como trovão contido, carregada de ódio, derrota e… medo?

    Então cessou.

    Do corpo da onça, uma fumaça negra começou a escapar — pelas narinas, pela boca, pelas feridas abertas. Como se fosse expurgada. Como se estivesse sendo… exorcizada.

    Ela se ergueu no ar, contorcendo-se, tentando resistir. Mas se desfez com o vento.

    Silêncio.

    A floresta ainda não cantava, mas algo estava diferente. Quase… calmo.

    Jatyr sentiu o peito afrouxar.

    Olhou ao redor.

    Nada.

    Só o corpo de Kûara’ika, deitado, sereno. O pelo ainda marcado, mas limpo da podridão. As patas juntas. O peito imóvel.

    Ele deu alguns passos à frente, o olhar oscilando entre alívio e desconfiança. A mente ainda armada.

    Mas o coração…

    O coração acreditou.

    Soltou o ar devagar.

    — Foi isso… — murmurou. — Você ficou demais dentro dela. E ela… te levou junto, justo.

    Olhou para o céu encoberto. Depois, para a onça.

    — Que você volte melhor. Livre. Como era antes.

    Fez silêncio por alguns segundos.

    Depois recitou, em voz baixa, os versos que Einar ensinara, aqueles que usavam para guiar os espíritos de volta à terra:

    “Que seu rastro não tema as sombras,
    Que sua alma encontre o frescor das folhas,
    Que o Espírito Velho te perdoe,
    E que, um dia… você corra de novo.”

    Ficou ali, de pé, respirando o silêncio.

    Ele havia vencido.

    Talvez Anhangá não fosse invencível. Talvez ele tivesse errado. Apostado demais. Esticado a corda até o fim.

    E pago por isso.

    Jatyr abaixou o olhar para a cabeça da onça. A faca ainda cravada entre os ossos do crânio. Era o presente de Einar. Um símbolo.

    Não podia deixá-la ali.

    Aproximou-se.

    Estendeu a mão.

    Quando os dedos tocaram o cabo da faca — as sombras se moveram.

    Primeiro um tremor sob a pele da onça.

    Depois, uma fissura escura que se abriu ao redor da lâmina.

    Deles, surgiram linhas negras. Finas como fios de cabelo. Longas como cobras. Enroscaram-se ao redor do braço de Jatyr, rápidas como chicotes, frias como gelo velho.

    — O quê…?

    Ele tentou puxar. Mas era tarde.

    A faca deslizou do crânio com um som seco — e foi como se tivesse puxado um gatilho invisível.

    A criatura se ergueu.

    Morta. E ainda assim de pé.

    A pele estalava. Os músculos rangiam. As manchas azuis sumiram de novo, afogadas por trevas ferventes.

    E então, com as sombras segurando firme seu braço, ela pulou.

    Então veio o bote final.

    Jatyr tentou girar o corpo, mas tarde demais.

    A pata o atingiu no peito com força suficiente para fazer seus ossos rangerem. Ele voou como um galho seco, caiu com um baque surdo, o ar arrancado dos pulmões como se um anzol invisível o puxasse de dentro para fora.

    A cabeça girava.

    E então… o peso.

    Kûara’ika cravou as garras no peito de Jatyr, não fundo o suficiente para matar, mas o bastante para prender.

    O fôlego virou um gemido sufocado.

    A névoa parecia apertar ao redor.

    E foi ali, no silêncio do bafo quente da onça podre, que ele se materializou.

    Do lado esquerdo de Jatyr, surgindo como sombra escorrida da própria fera, Anhangá se projetou — semi-humano, semi-algo. Os joelhos dobrados, um braço descansando no próprio joelho, o outro pairando sobre a cabeça da onça, como se acariciasse seu brinquedo quebrado.

    Ele parecia confortável. Um espectro em repouso.

    O rosto era um borrão de fumaça e ossos expostos, as feições flutuavam entre beleza ancestral e repulsa visceral. O olhar — se é que eram olhos — era um buraco que puxava memórias.

    — Olhe só pra você — disse a voz, baixa, arrastada, quase gentil. — Tão pequeno… tão persistente. Tão… interessante.
    — Rezar durante a batalha? Sua crença imunda nos espíritos é como a dele nos humanos… repugnante, mas algo que devo reconhecer.

    Jatyr tentou se mover. As garras pressionaram com mais força.

    — Você não venceu. Não importa o quanto finja que sim. — A mão que descansava sobre o crânio da onça apertou levemente.
    — Você sobreviveu… e isso nem sempre é a mesma coisa.
    — Acha mesmo que chegaria onde chegou se eu não tivesse deixado? Desde o começo eu estava lá jatyr, observando, manipulando, guiando… nada nessas terras existem sem minha permissão… e você deve se perguntar o porquê deixei você vir.

    O silêncio que se seguiu pareceu durar séculos.

    — Suas palavras, sua força em crer, esse sangue fedorento — continuou ele, tilintando a língua em um som oco — há algo nelas. Um eco. No começo eu pensei “Não… não é possível…” —

    A sombra inclinou a cabeça, encarando Jatyr como um estudioso encara um fóssil.

    — Agora vejo… algo dele vive em você. Não a carne. Nem o nome. Algo mais antigo. Queimado. Maldito. Hahaha… isso é… fascinante.

    Jatyr abriu a boca, mas só saiu sangue.

    — Ele quem?… do que ele ta falando? — Os pensamentos desesperados de Jatyr se cruzando com a curiosidade.

    Anhangá sorriu, ou fez algo que se assemelhava a isso.

    — Tantas vezes tentaram me apagar. Com fogo. Com oração. Com aço, até mesmo Deuses chamados de Reis. — Seus dedos pairaram acima da testa de Jatyr, mas não tocaram. — Você é o primeiro a rir comigo.
    — Sabe uma coisa bem engraçada? vejo você se agarrando aos ensinamentos desse tal de Einar, logo esse que sempre fugiu de mim, passou sua vida com medo, escondido, recuou mesmo com seus semelhantes, deixou que partissem sozinhos por puro medo, velho covarde, egoísta, diferente desse cara você enfrentou tudo que se colocou a sua frente, você tem seus méritos e isso eu respeito.

    Ele se aproximou. Tão perto que o cheiro invadiu os ossos de Jatyr — um fedor de terra molhada com sangue seco, de relâmpagos que nunca caíram.

    — Então… vou te dar algo em troca.

    A floresta segurou o ar.

    A criatura sobre Jatyr não se mexia mais. Era como um altar morto.

    Anhangá começou a recitar.

    A língua era tão antiga que o som dela feria mais que o significado. Era como se cada sílaba escavasse algo no mundo.

    Cada palavra cavava dentro de Jatyr.

    Ele gritou. Mas o som não saiu.

    Seus músculos enrijeceram. Os olhos giraram.

    A dor veio sem aviso — pura, afiada e total. Seu pulso direito se incendiou.

    Ele sentiu a pele abrir. Sentiu o cheiro de carne queimada. O sangue brotar.

    Uma forma estava sendo esculpida ali. Não por lâmina. Mas por palavra.

    Uma cabeça de cervo, feita de dor, ornada com galhos retorcidos e detalhes em branco que ardiam como sal. No centro, uma linha vermelha que parecia pulsar junto ao próprio coração.

    Anhangá observava em silêncio agora. Como quem aprecia uma obra.

    Quando terminou, ele não sumiu.

    Se ergueu, com elegância estranha. A sombra dele se estendia por cima de Jatyr como um eclipse.

    — Lembre-se — disse, baixo. — Não fui eu quem começou isso.

    Ele tocou levemente o centro da testa de Jatyr. Um toque leve. Quase um gesto de adeus.

    Mas Jatyr convulsionou como se tivesse sido atingido por relâmpago.

    Então, a sombra se desfez. Evaporou com o vento que não existia.

    A onça colapsou, seus restos caindo ao lado.

    Jatyr ficou ali.

    O corpo não obedecia. O braço direito tremia sem ritmo. O pulso ardia como se ainda estivesse sendo marcado. Seus olhos piscavam fora de tempo.

    E então ele rastejou.

    Não sabia por onde.

    Chorava. Não de dor — de algo além. Como se parte dele tivesse sido arrancada e ele ainda não tivesse entendido qual.

    Quando conseguiu se erguer, correu.

    Cegamente. Aos tropeços.

    A floresta era um borrão vivo, os galhos viravam mãos, as sombras pareciam rir.

    Nada tinha direção.

    Só fuga.

    A marca queimava. E não era só carne. Era alma.

    A Semente da Ruína havia brotado.

    E ele… ele era o solo.

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