Capítulo 12: O Filho do Fogo e as Guerreiras da Lua
O mundo se dissolvia ao redor de Jatyr.
Ele corria. Não por escolha — por impulso. Por puro terror gravado nos ossos. As pernas queimavam, os pulmões imploravam por ar, mas ele não parava. Os galhos riscavam sua pele como agulhas, o vento cortava as feridas abertas. O gosto metálico do sangue ainda dançava em sua boca.
A floresta não o deixava esquecer.
As árvores pareciam se fechar à sua frente, distorcendo-se em formas que lembravam garras, presas, bocas. A terra era lama viva, sugando os pés a cada passo. O cheiro — ainda aquele mesmo fedor de carne podre e enxofre — colava nas narinas como uma praga. Cada sombra parecia se mover. Cada ruído era Anhangá sussurrando de novo.
Mas ele havia desaparecido. Tinha dito adeus.
Jatyr sabia disso.
Mas seu corpo não acreditava.
O pulso latejava como se carregasse um coração novo. Um coração que não era seu. A cicatriz da marca ardia a cada batida, como se fogo derretesse os ossos por dentro. Era uma dor que rasgava mais do que a pele — era como se queimasse a alma.
E a marca chamava.
Chamava de volta.
Jatyr não queria ouvir. Não queria pensar.
Então corria.
Mas a verdade era outra.
Ele queria parar.
Queria cair de joelhos na lama, gritar, arrancar a própria pele. Queria dormir e acordar anos antes, quando a floresta ainda era lar, e Einar ainda respirava. Queria ser ninguém.
Mas as pernas não deixavam.
Elas o arrastavam como se tivessem vida própria, como se tentassem fugir dele mesmo.
Tropeçou. Recuperou o equilíbrio. Escorregou sobre raízes expostas. Sentiu o joelho raspar em pedra. O sangue novo se juntou ao velho.
O tempo não existia mais. Apenas a fuga.
Como se algo ainda o perseguisse.
Mas não havia som atrás dele. Nenhum rosnado, nenhum passo. Nem mesmo o eco da onça podre.
Isso era o pior.
Porque o silêncio dizia: Você não escapou. Só está sendo poupado.
A floresta se abriu de repente.
Como uma boca que se escancara no último segundo.
Jatyr quase não conseguiu frear. Deslizou na terra úmida, os pés buscando aderência que já não existia. Quando parou, estava à beira de um penhasco.
Abaixo, um rio serpenteava por entre pedras negras e vegetação cerrada. As águas batiam contra os rochedos com fúria — não como um convite, mas como um desafio.
O vento uivava ali. Frio. Fino. Como uma lâmina na pele exposta.
Jatyr caiu de joelhos.
Segurou o próprio braço com força, o antebraço marcado, como se tentasse arrancar a dor à força. Mas não havia como conter. A marca queimava como metal em brasa. A dor subiu pelo ombro, atravessou o pescoço e mordeu o crânio.
Ele gritou.
Um grito seco, brutal, tão humano quanto primitivo. Um som de quem não pedia ajuda — pedia trégua.
E então chorou.
A força saiu do corpo, Jatyr tremia. Os olhos inundaram, a respiração virou soluço. Não era fraqueza. Era colapso.
O céu, além da neblina, dava sinais de azul. Um tom pálido. Estranho. Quase esquecido. Como se ele tivesse vendo o mundo real depois de anos embaixo da terra.
Ele fechou os olhos por um momento.
O peso de tudo o alcançou de uma vez só.
Ele falhara.
Falhara com Mãe Yaci. Falhara com Echo. Falhara consigo mesmo.
— Não sou mais inteiro — pensou.
A dor. A marca. O terror de não saber se ainda era ele.
E então, ali na borda, ele sentiu.
A presença não atrás. Não ao redor.
Dentro.
A marca no pulso latejou mais forte. Não como dor — como voz. Um sussurro mudo, tentando lembrar à carne que ela já não era livre.
Jatyr abriu os olhos.
E viu o brilho.
Echo.
A luz do sol, por entre as nuvens, tocava a superfície metálica da esfera presa ao seu cinto. Um brilho fraco, mas visível. Como se o companheiro silencioso chamasse por ele.
Ele levou a mão ao metal. Suja de sangue. Trêmula.
Jatyr afrouxou a respiração.
— Eu não… — tentou dizer. A voz falhou. Engoliu em seco. — Eu não sei mais quem sou. Não sei o que ele está fazendo comigo.
Fez silêncio. O vento respondeu por ele.
Desprendeu Echo com as duas mãos. Apertou a esfera contra o peito, como se abraçasse o último pedaço de um mundo que já não existia.
— Acho que… não vou conseguir te ajudar — sussurrou. — Cumprir o que prometi…
— Me perdoa, Echo… — sussurrou. — Eu… queria ter te levado comigo. Queria ter aprendido mais. Te ajudado mais.
A dor no pulso pulsou outra vez. Forte.
O som que veio de Echo foi um estalo fraco. Quase um chiado.
Ele sorriu. Ou tentou. Era mais um tremor de dor nos lábios.
Com dificuldade e tristeza, Jatyr afastou Echo e o colocou na beira do penhasco, onde o sol banhava com força.
— Vou te deixar no sol. Aqui em cima. Você ainda tem chance. Confio em você espírito da tecnologia… —
— Você vai ficar bem… amigo. —
Seus olhos marejavam, mas ele não chorava mais. Agora era só vazio.
Jatyr apertou os dentes. Se ergueu. Um passo à frente, os olhos voltados para o vazio abaixo.
Ele encarou o abismo.
Lembrou de Kûara’ika. Da fera possuída, do fim que teve, se para ele, aquela bela fera nomeada de guardião sucumbiu ao toque de anhangá, imagine ele, o que aconteceria com ele? sua confiança foi despedaçada pelo espírito profano, ele lembrou do momento em que achou ter vencido, sentiu raiva de sua propria Inocencia.
Em sua mente veio a imagem do toque na testa, da risada de Anhangá e principalmente, do sussurro:
“Você sobreviveu… e isso nem sempre é a mesma coisa.”
Respirou fundo, ele não se sentia mais inteiro, mas estava aguentando tudo aquilo com o que acreditava restar.
Então olhou para monstruoso rio la no fundo.
E disse, com a voz seca, rouca, marcada pelo que restava de si:
— Eu não vou ser terra pro teu verme, espírito velho.
Endireitou o corpo.
Fez silêncio dentro de si.
E saltou.
O vento gritou nos ouvidos de Jatyr.
Era um grito sem nome, sem origem — só o som nu da queda. Seu corpo girava no ar como um fragmento lançado pelos deuses, e por um instante, tudo ficou em suspenso: o medo, a dor, o tempo.
A marca em seu pulso ardia como uma brasa viva, mas ali, no vazio entre o salto e o impacto, a dor parecia distante. Menor que o silêncio.
Menor que a altura.
O mundo girava. O céu e a terra se alternavam em flashes tortos, e ele não sabia se caía ou se era puxado por algo maior. O coração golpeava o peito como tambor em ritual de guerra. E por um instante — só um — ele abriu os olhos e viu.
A luz.
O azul aberto do céu, sem névoa. Sem sombra. Sem maldição.
Era como sair de dentro de um cadáver e sentir o sol pela primeira vez.
Não era salvação.
Era outra coisa.
Era o que vinha depois da morte.
O rio se aproximava, rápido como um inimigo. Suas águas espumavam entre pedras negras, refletindo a luz dourada do céu como uma lâmina quebrada.
Jatyr puxou os braços para perto do corpo, tentando cortar o ar em vez de colidir com ele. Um ajuste instintivo. Não para sobreviver — para cair direito.
O impacto veio.
Brutal.
A água não cedeu fácil. Foi como cair contra um muro líquido. O ar fugiu de seus pulmões em um estalo. O peito se fechou. As costelas gritaram.
A corrente o agarrou sem piedade.
A escuridão o tragou.
Ele girou, foi puxado para baixo. As águas rodavam como uma serpente de braços, e cada uma delas queria mantê-lo ali. O peso da marca latejava. A dor do corpo era um borrão. Mas a mente…
A mente lutava.
Ele não sabia onde era cima ou baixo. A luz do céu parecia dançar em distorções quebradas acima de si. Quando tentou respirar, engoliu água. Ela entrou como veneno. Queimou os pulmões. Ele tossiu. Não havia ar. Não havia som. Só a fúria do rio.
A água o engoliu como uma boca faminta. O ar fugiu. Os ossos estremeceram. A marca no pulso explodiu em dor — uma dor que parecia gritar algo que ele não entendia.
O corpo já não obedecia. Nem precisava.
Ele deixava ir.
E foi no meio desse abandono que a ouviu.
Não um som — uma canção.
Vinha de algum lugar entre as águas e a alma. Uma melodia sem palavras, calma como a respiração do mundo.
A música o envolveu como um cobertor leve, dissolvendo o medo. Por um instante, ele sentiu como se estivesse de volta ao útero da terra, antes da dor, antes da perda.
Seus olhos semiabertos viam apenas vultos e distorções. A luz se fragmentava em prismas líquidos. Bolhas subiam como pequenas orações silenciosas. O tempo perdeu o ritmo.
Ele não sabia se sonhava.
Mas sentiu.
Um vulto.
Luz fluindo em cabelos negros. Um vestido branco que não devia existir ali, tremulando como véu em um rio sem fim. E olhos — olhos verdes — os mesmos de antes. Intensos. Silenciosos. Impossíveis.
Ela se aproximava sem pressa. Não nadava. Não lutava contra a corrente. Era como se o rio abrisse caminho para ela. Como se ela fosse a origem das águas, e não apenas sua filha.
Jatyr piscou — ou talvez tenha apagado por um instante.
Quando tornou a ver, ela estava mais próxima.
Quando chegou perto de Jatyr, parou.
O rosto dele, ferido e pálido, os olhos meio abertos e ainda confusos.
Ela o segurou.
As mãos tocaram seu rosto com uma delicadeza que o mundo esquecera. Como se ele fosse feito de vidro ou saudade. Um gesto antigo, primordial — quase materno. Ela o olhou nos olhos. Longo. Profundo. Como quem tenta lembrar.
Ou reconhecer.
E então, com um movimento suave, encostou a testa dele com os dedos.
Um toque só. Leve.
Tudo parou.
A corrente cessou.
O rio emudeceu.
O tempo perdeu nome. O corpo perdeu peso. E o rio, antes fúria e afogamento, agora não o engolia.
O toque dela dissolveu tudo.
Jatyr flutuava num casulo líquido, onde a luz se quebrava em cintilações verdes e douradas, como se o sol filtrasse pelas folhas de uma árvore submersa. O som do mundo — gritos, correnteza, o próprio coração — sumira. Restava só um zumbido grave, antigo, que ecoava dentro dele como um canto esquecido.
O ar era impossível. Mas ele respirava.
Não com os pulmões — com a alma.
A marca em seu pulso, antes incandescente de dor, pulsava agora num ritmo calmo. Como se tivesse encontrado uma frequência que compreendia.
A mulher — ou o que quer que fosse — pairava sobre ele. Seu cabelo flutuava ao redor como algas vivas. A luz vinha dela. Ou a atravessava. Não era possível dizer. O vestido branco parecia feito de água sólida. Seus olhos, duas pedras líquidas, guardavam a memória do tempo.
Ela não dizia nada.
Mas Jatyr sentia.
Sentia como se tivesse voltado para um lugar que conhecia antes de nascer.
Um redemoinho de lembranças o tomou. A mãe, o fogo, o cheiro de fumaça, o medo de nunca mais ser visto. Tudo aquilo escorria dele, como um peso dissolvido na água.
E no meio disso, um símbolo: uma serpente mordendo a própria cauda, traçada em luz líquida, contornando o pulso onde a marca repousava. Não era tatuagem. Não era sonho. Era visão.
A mulher tocou o símbolo com a ponta do dedo.
O símbolo brilhou. Depois desapareceu.
Então, Jatyr afundou — mas sem medo.
Ela o puxou.
Com cuidado. Como quem recolhe algo que caiu do céu e que não devia ter caído.
Jatyr não viu o caminho de volta à superfície. Sentiu em lapsos de consciência: uma luz que atravessava as pálpebras fechadas, depois o escuro de novo. Depois o som abafado da água. Depois, um instante de paz que talvez não fosse real. Sentiu o calor do toque dela persistir na pele, mesmo submerso. Ouviu a canção de novo, mas agora parecia embalada pela respiração do rio. A água parecia viva. Pulsava com ela.
Sua mente piscava como vela no fim.
Luzes. Escuro. Silêncio. A canção. Os braços dela.
O mundo era um borrão abençoado.
Quando a luz se fez constante e o ar voltou, ele se engasgou. Tossiu. Tentou falar — mas já não havia voz que coubesse ali.
Porque ela o levava.
Pés descalços na água rasa. Passos lentos. O vestido escorrendo como neblina líquida. O mundo estava quieto demais. Real demais. Irreal demais.
Ele abriu os olhos uma última vez antes de apagar de novo.
Viu o céu.
Viu o rosto dela contra a luz. Viu os olhos.
E viu algo mais.
Seus olhos, agora fixos na marca em seu pulso, não carregavam alegria, nem pesar.
Carregavam verdade.
Havia ali uma compreensão silenciosa — como se ela soubesse o que aquilo significava. Como se já tivesse visto outras marcas antes. Como se soubesse que aquela dor não era a primeira, nem seria a última.
Ela olhou a marca como quem olha uma ferida que não pode curar. E então, olhou para ele.
Não com pena.
Não com amor.
Mas com fé.
Como quem diz: “Agora é com você.”
A expressão dela era firme. Trágica e serena. Um reconhecimento amargo do destino que o aguardava — e, ao mesmo tempo, uma confiança profunda de que ele poderia suportar. Não por ser forte. Mas porque ninguém mais poderia.
Porque era ele.
E só ele.
Então, com a mão ainda úmida, tocou sua testa uma última vez. Como um selo. Um silêncio. Um voto.
E então… a dor diminuiu.
A queimadura se calou.
A última imagem antes do escuro foi dela ajoelhando-se. Baixando o corpo dele com lentidão até que tocasse a margem. Como quem devolve algo ao lugar certo.
Jatyr fechou os olhos.
A água recuou. O vento voltou. O mundo respirou de novo.
Mas Jatyr já dormia.
Com o peso da marca.
E o início de uma força que ainda não sabia ter.
Um tempo depois, Jatyr acordou.
Ou achou que acordou.
— Eu… apaguei. — Murmurou, sem saber se pensava ou falava. — Isso foi… real?
O céu era azul. As folhas tremiam no alto. O som do rio fluía ao lado.
Ele estava deitado em areia úmida. Vento leve. Sol morno.
Não havia mais corrente.
Nem grito.
Nem Anhangá.
A marca ainda estava ali. Mas… diferente. A dor era um sussurro baixo. Como se… estivesse adormecida. Ou escutando.
Ele se sentou com esforço. O corpo pesava como se estivesse voltando de outro mundo.
Olhou ao redor.
Ninguém.
Nenhum vulto na água. Nenhum passo na margem. Nenhuma sombra que indicasse que aquilo acontecera.
Nada.
Mas a sensação… persistia.
Como um perfume que se recusa a ir embora.
Como o toque de um sonho bom que insiste na pele.
Ela o havia salvo.
Ou… talvez ele tivesse imaginado.
Ele levou a mão até o pulso.
O símbolo ainda ardia.
Mas não com dor.
Com significado.
Jatyr fechou os olhos.
Respirou.
O mundo voltava devagar.
Jatyr sentiu primeiro o peso do próprio corpo. Depois, o calor — tímido, real — sobre a pele encharcada. Um calor que não queimava, apenas lembrava. Lembrava que ele ainda estava ali.
O cheiro da terra molhada subia com o vento. Cheiro de folha, de raiz, de rio que corre sem pressa.
Ele piscou. Uma vez. Duas.
O céu, acima, era azul.
Não o azul morto das visões. Não o azul preso atrás de névoas e promessas. Era vivo. Imenso. Aberto como uma resposta.
Jatyr moveu a cabeça com esforço, sentindo os músculos protestarem como se não fossem mais dele. As mãos tocaram a areia úmida, e ele se ergueu aos poucos, como quem não queria acordar de um sonho — ou de um pesadelo que finalmente acabara.
Seu corpo doía em lugares que nem lembrava ter. A pele, cortada em dezenas de pontos. O lado esquerdo latejava. O pulso ainda ardia, mas não como antes.
A marca… dormia.
Ele olhou em volta.
A floresta ali era outra.
As árvores eram altas, sem fungos ou galhos mortos. As folhas pendiam como mantos verdes, e a luz do sol atravessava seus vãos em fios dourados que pareciam querer tocar tudo. Borboletas voavam próximas ao chão. A brisa vinha suave, carregando o perfume de flores que ele não conhecia. O chão era fértil. As sombras eram sombra — e só.
Jatyr respirou fundo.
Depois de tanto tempo, aquela respiração parecia nova. Como se estivesse respirando vida pela primeira vez.
E então, ele riu.
Uma risada curta, rouca, entrecortada por cansaço. Mas limpa. Quase absurda naquele silêncio bom. E foi ficando mais forte, até virar uma gargalhada leve, solta — como se o corpo, por um instante, tivesse esquecido do mundo inteiro.
Ele ergueu os braços ao céu. A luz bateu em sua pele como bênção.
E gritou.
Um rugido de vitória. Um urro de quem foi até o fundo e voltou. Sozinho.
Mas não tão sozinho assim.
Seus olhos caíram sobre algo ao lado.
Echo.
A pequena esfera metálica repousava sobre uma pedra coberta de musgo, a poucos passos dali. Parada. Silenciosa. Recebendo a luz do sol em cheio, como se dormisse em paz.
Jatyr congelou por um instante.
— Mas… — sussurrou.
Lentamente, se aproximou. Ajoelhou-se ao lado da pedra. Estendeu a mão, como se temesse quebrar o momento com o toque.
— Eu deixei você no penhasco… — disse, quase em dúvida. — Achei que fosse… ficar lá.
Passou os dedos com delicadeza pela superfície de Echo. Ainda fria. Mas inteira.
O pensamento veio como um sussurro.
Ela.
Jatyr olhou para o rio.
A corrente seguia tranquila. Nem sinal de passos, nem pegadas, nem sombra alguma. Mas a resposta estava ali — na ausência. No gesto.
Ela havia salvado Echo também.
— Mas… — ele riu, balançando a cabeça. — Você nem gostava dele…
O sorriso ficou. Depois sumiu devagar, dando lugar a uma reverência muda. Ele fechou os olhos, curvou-se levemente em direção ao rio, e disse baixo:
— Obrigado.
A palavra se perdeu na brisa. Ou talvez tenha sido levada.
Ficou ali por um tempo, em silêncio.
O sol avançava no céu. A luz se deitava sobre ele com gentileza. Nada parecia urgência. Nada parecia morte.
Por um instante raro, o mundo estava quieto.
E ele… estava em paz.
Jatyr observou o pequeno corpo metálico por mais um instante, depois sorriu.
Jatyr passou os dedos mais uma vez pela carcaça metálica de Echo.
Ainda frio.
Mas ali.
Ele suspirou.
Ajoelhou-se com esforço, os músculos cansados protestando, como se devolvesse algo sagrado ao altar. Ele colocou Echo de volta sobre a pedra — onde o sol o tocava em cheio. Uma luz limpa, constante. Sem julgamento.
— Vai ficar bem aqui, parceiro. Você gosta de sol, certo? — murmurou, ajeitando-o levemente para que o brilho atingisse bem o centro.
Lentamente, Jatyr se colocou de pé, os joelhos vacilando, mas firmes. Seus olhos vasculharam o horizonte, absorvendo cada detalhe do novo território onde agora se encontrava.
E viu o novo mundo.
Era viva. Intensa. As árvores altas dançavam com o vento. As folhas tremulavam como uma multidão de pequenas vozes. A luz filtrada pelas copas criava manchas móveis no solo, como se o chão respirasse. O ar era limpo. Fresco. De verdade.
Ele passou a mão pelo rosto, sentindo a aspereza da própria pele, e então riu.
Uma risada curta, rouca, quase incrédula.
Riu porque estava de pé. Porque ainda respirava. Porque, pela primeira vez em muito tempo, havia algo ao seu redor que não tentava matá-lo.
A risada tornou-se mais forte, como se precisasse escapar, como se fosse um exorcismo silencioso das sombras que ainda o perseguiam. Ele se permitiu aquele momento, uma celebração solitária e honesta.
Então, ergueu-se cambaleante. Jogou a cabeça para trás e gritou para o céu aberto, um rugido de liberdade, um uivo primal que ecoou pela terra como um desafio à própria existência.
Mas antes que pudesse se perder naquele momento de vitória, seus olhos caíram sobre Echo.
— Você também conseguiu… — murmurou, quase como se falasse com um companheiro que havia dividido o fardo daquela travessia.
Os instintos, aguçados pela sobrevivência, não o deixariam se perder naquele alívio por muito tempo. Ele não sabia onde estava. Não sabia se realmente havia escapado do alcance de Anhangá ou se aquilo era apenas uma ilusão antes da próxima provação.
Endireitou a postura, os olhos voltando a se estreitar em análise cuidadosa. A floresta ao seu redor era bela, sim, mas também era um território desconhecido. E nenhum território desconhecido era inteiramente seguro.
Jatyr respirou fundo, buscando clarear os pensamentos. A fuga terminara. A sobrevivência imediata estava garantida. Mas a jornada?
A jornada apenas começava.
E ele se sentia… pronto.
Jatyr cambaleou um passo para frente, e então, o cansaço finalmente o alcançou.
Foi como se a alma tivesse dito “agora basta”.
O corpo desabou com lentidão, sem resistência. Seus joelhos fraquejaram. O mundo girou, os sons ao redor se tornaram abafados, e antes mesmo que pudesse reagir, ele caiu lentamente para frente.
Seu rosto encontrou a grama macia e úmida, sua respiração desacelerou, e um sorriso apareceu em seus lábios antes que a inconsciência o tomasse por completo.
Echo permaneceu em silêncio sobre a pedra, como uma sentinela observando seu guerreiro descansar.
A exaustão o havia vencido. Jatyr dormiu.
E, por ora, isso era o suficiente.
[Alguns minutos depois]
O corpo de Jatyr jazia imóvel sobre a grama úmida, sua respiração lenta e profunda, como se estivesse submerso em um sono sem sonhos. O mundo ao seu redor seguia seu curso, indiferente à sua presença.
Sobre a rocha aonde fora cuidadosamente colocado, Echo brilhou.
A princípio, um único pulso de luz oscilou em sua superfície metálica, fraco e instável, como uma brasa reacendendo após quase se apagar. Em seguida, outro. E mais outro. O ritmo foi se tornando constante, como batidas de um coração que despertava de um longo torpor.
Um lampejo tênue. Tremeluzente.
Depois outro. Mais firme.
E outro. Até que se tornaram regulares, constantes — como batimentos de um coração metálico.
A estrutura vibrava. Um zumbido profundo corria por dentro.
Inicialização.
A pequena esfera tremeu levemente, um zumbido discreto reverberando em seu núcleo enquanto seus sistemas iniciavam um processo de reinicialização. Dados começaram a percorrer sua interface em uma sequência frenética de códigos e leituras.
Diagnóstico…
Status: Operante.
Danos detectados. Sistemas comprometidos. Energia em nível crítico.
Echo processou as informações em frações de segundo, ajustando-se à sua nova realidade. Mas antes que pudesse lidar com suas próprias limitações, outro dado capturou sua atenção.
Sinal de vida detectado.
O sensor se expandiu. A lente abriu-se como um olho antigo.
Ali estava ele. Caído, imóvel, mas respirando.
Echo se ergueu levemente. Um halo de luz azul correu por seu anel central. Os escaneamentos começaram.
Seu sensor escaneou o corpo de Jatyr. Batimentos cardíacos instáveis. Arranhões e hematomas cobrindo boa parte do corpo. Pequenos cortes e lacerações. E então, algo mais.
Batimentos irregulares. Respiração instável. Ferimentos múltiplos.
Anomalia no sangue. Substância não identificada.
Echo ampliou a análise, cruzando informações em sua base de dados até encontrar a correspondência. Resíduos tóxicos. A origem era evidente: o rio. Vestígios de microtoxinas presentes em organismos aquáticos haviam se infiltrado na corrente sanguínea de Jatyr. O dano não era letal imediato, mas prolongado poderia enfraquecê-lo consideravelmente.
Além disso…
Presença de organismos parasitas.
Pequenas sanguessugas estavam presas à pele de Jatyr, sugando-lhe as forças de maneira lenta, quase imperceptível.
Protocolo de emergência: ativado.
Primeira etapa: remoção e desinfecção.
De uma das frestas laterais, um braço fino emergiu. Echo ajustou seus emissores térmicos e liberou um pulso preciso de calor direcionado à superfície do corpo de Jatyr. A temperatura elevada fez com que os parasitas se soltassem de imediato, caindo inertes sobre a grama. Um segundo pulso cauterizou os ferimentos menores, impedindo qualquer risco de infecção.
Segunda etapa: análise e formulação de antídoto.
Um pequeno dispositivo se desprendeu do núcleo de Echo e se fixou no braço de Jatyr, coletando uma amostra mínima de seu sangue. Em questão de segundos, a composição química foi processada, e o robô identificou os componentes exatos necessários para neutralizar os efeitos da toxina.
Microtoxinas aquáticas. Substâncias não catalogadas. Potencial efeito degenerativo.
Era preciso criar um antídoto, mas havia um problema.
Recursos indisponíveis.
Os elementos necessários para o antídoto não estavam armazenados dentro de sua estrutura. Ele precisaria encontrá-los no ambiente.
Sem hesitar, Echo ativou seu sistema de propulsão e subiu ao ar em um disparo silencioso, deixando para trás um rastro de luz tênue. Ele subiu em linha reta, emergindo no céu aberto. Seu banco de dados tentou, por reflexo, cruzar coordenadas com mapas conhecidos, mas falhou. Tudo ali era diferente.
Nada fazia sentido. Sem mapas. Sem referências, tudo era novo. Mas ele era feito para isso.
Protocolo planetário Kleper12: Analisar o terreno em busca dos componentes necessários.
Seu sensor varreu a floresta enquanto ele descia, escaneando cada planta, cada fragmento de musgo, cada gota de seiva exposta. Em um rápido desvio, deslizou entre os galhos baixos, coletando pequenas porções de folhas escaneou raízes, liquens, partículas no ar. Detectou enzimas compatíveis em três organismos diferentes. Voou baixo, coletou. Separou.
Dentro de si, iniciou o processo.
Ao identificar os elementos compatíveis, compactou os ingredientes e processou uma solução líquida de restauração.
Luzes brilharam no interior da esfera. O líquido resultante — dourado, espesso — foi armazenado num compartimento lateral.
O tempo era curto.
Retornando para Jatyr, pousou sobre a rocha ao seu lado. Um pequeno dispositivo se estendeu de sua estrutura e, com precisão cirúrgica, administrou o antídoto diretamente na corrente sanguínea do garoto.
A substância foi injetada.
O corpo respondeu.
Os batimentos começaram a se regular. A pele ganhou calor. A respiração se aprofundou.
Mas Jatyr ainda não despertava.
Echo permaneceu ao lado dele. Firme. Monitorando.
O olho central reduziu a intensidade da luz, adaptando-se ao ambiente. Silêncio absoluto. Apenas os dados correndo — em ciclos, em diagnósticos, em estatísticas. E mesmo assim, algo… não batia.
Echo girou.
E viu.
A marca.
Um símbolo sobre o pulso de Jatyr. Incandescente em traços tênues. Irregular. Instável. Como se tivesse vida própria.
Echo aproximou-se, cauteloso. A lente ajustou-se ao nível microscópico. Análise espectral. Mapeamento térmico. Nada correspondia a padrões conhecidos.
Nenhuma assinatura térmica consistente. Nenhuma fonte catalogada de energia.
Mas era energia.
Ecoando em ciclos — não elétricos, não biológicos. Algo entre vibração e intenção.
Ele projetou um feixe discreto sobre a marca.
Leitura: falha. Estrutura não identificável.
Tentou de novo.
Mais potência. Frequência ajustada.
Leitura: inconsistente. Dados corrompidos.
Echo recuou levemente.
— O que… é você?
A pergunta não deveria ter sido dita. Ele sabia. Não era relevante, nem útil. Era… humana.
E mesmo assim, fez.
Silêncio.
E então, uma reação.
A marca pulsou. Lenta. Como se tivesse ouvido.
Echo congelou. Seu núcleo interno emitiu uma vibração sutil, como um estremecimento. Era impossível. A marca não possuía interface. Nenhuma rede. Nenhum chip.
Mas havia… algo.
Um eco. Como se a marca, de algum modo, também o tivesse percebido.
E não soubesse o que ele era.
Confusão mútua.
Echo voltou ao braço de Jatyr. Reabriu o registro da amostra de sangue.
Buscou vestígios conectados à marca. Correntes moleculares. Interações químicas.
Encontrou anomalias.
Altas concentrações de proteínas reestruturadas. Reações enzimáticas que não deveriam existir. Sequências de RNA que dançavam como sinais em código vivo.
Tentou simular um antídoto.
Falha.
Processamento parcial.
Resultado: incompleto. Componentes desconhecidos. Requer análise profunda. Tempo estimado: 11 horas. Energia necessária: 78% da reserva total.
Echo avaliou.
Solução alternativa: contenção.
Um braço retrátil deslizou, pronto para iniciar o processo de estabilização local da área da marca.
Mas então… parou.
O olho de Echo piscou uma vez, lento.
Na análise periférica, um dado novo surgiu.
Movimento na floresta.
Seus sensores detectaram fontes de calor ao longe, múltiplas assinaturas térmicas se deslocando em velocidade constante, aproximando-se da clareira. Pequenos pulsos irregulares, distintos dos de um predador comum.
Ele girou. Escaneou.
Falha na categorização.
Origem: desconhecida.
Seus sensores não reconheciam. Como se algo na presença as fizesse escorregar entre as classificações.
Probabilidade de risco: elevada.
Ele desviou o foco da marca.
A ameaça era imediata.
Jatyr ainda estava vulnerável.
Echo analisou a energia restante. Calculou danos futuros. E decidiu.
Com os sistemas de comunicação danificados, restavam-lhe apenas métodos diretos. O tempo estava se esgotando.
Tomando uma decisão drástica, sem hesitar, concentrou um pulso elétrico.
A luz brilhou em seu núcleo como uma gota de sol líquido.
Então disparou.
Um feixe concentrado. Preciso. Frio. Mas quando tocou o peito de Jatyr — algo aconteceu que Echo não previu.
O corpo reagiu antes da consciência, o garoto se arqueou violentamente, como se tivesse sido atingido por um raio. Seu peito se expandiu em um suspiro forçado, e seus olhos se arregalaram em um sobressalto brusco. Sua respiração veio em ondas curtas e aceleradas, seus músculos contraídos em uma prontidão primitiva.
A adrenalina queimava em suas veias, acendendo algo instintivo dentro dele. Seu corpo se moveu antes que sua mente processasse completamente a situação, empurrando-se para cima em um único movimento.
Não o de um homem acordando.
Mas o de um animal em alerta.
Jatyr virou-se. Rápido. Instintivo.
Do supino à posição de ataque, como um felino caído que reencontra o chão com os olhos acesos. Seu corpo se erguendo, o olhar fixo.
A floresta à frente.
Echo flutuou a poucos metros, observando.
Algo… estava errado.
Ou diferente.
A marca no pulso de Jatyr brilhava — de forma quase imperceptível. Um traço tênue, pulsando num ritmo que não era cardíaco. Algo ancestral. Rítmico. Quase tribal.
Ele se ergueu.
Mas não como antes. Não com esforço. Não com dor.
Seus músculos, ainda há pouco exaustos, responderam com firmeza.
O peito inflou.
Os olhos… não estavam normais.
Ainda eram dele. Mas ardiam. Como brasa sob a pele.
Echo emitiu uma leitura silenciosa. O sinal vital estava… alto demais. Forte demais. Além dos limites humanos normais. Temperatura elevada. Cortisol no sangue em níveis extremos.
Mas Jatyr não parecia sofrer.
Pelo contrário.
Ele estava… presente.
Por completo.
Como se tivesse acordado para um novo corpo.
Echo aproximou-se devagar. Seu núcleo acendeu em azul suave.
— Jatyr? — a voz saiu metálica, mas com nuance — quase cautela.
O garoto não respondeu.
Não virou.
Ele apenas permaneceu em pé, as mãos semi-fechadas, o peito arfando em ritmo irregular. Os olhos atentos.
Echo escaneou novamente. Tentou medir a marca mais uma vez.
Nova falha.
A frequência de energia agora interferia nos sensores.
A marca… reagia ao despertar.
Mas de forma imprevisível.
Um sussurro metálico escapou de Echo.
— O que está acontecendo com você?
Nenhuma resposta.
Só o som da floresta.
Mas mesmo isso soava diferente.
Tudo ao redor parecia conter o fôlego.
E então, Jatyr deu um passo à frente.
Só um.
Mas foi o suficiente para Echo detectar o deslocamento sutil do mato adiante. As presenças. Os corpos.
Silhuetas camufladas na vegetação. Vários. Rente ao chão. Avançando devagar. A passos contidos.
Echo não os reconhecia.
Não podia nomear o que eram.
Mas Jatyr… sentia.
Ele não via. Nem ouvia.
Mas sabia.
E ele estava pronto.
O peito subiu uma última vez, inflando com o ar quente da floresta.
As veias do pescoço latejavam.
Os dedos se abriram, como garras se preparando para segurar o mundo.
Echo, pairando ao lado, captou o silêncio absoluto do momento — como a pausa de uma música antes da nota mais alta.
A marca queimava baixo.
Jatyr não piscava.
Echo recuou discretamente, projetando silêncio. Seus sistemas acompanhavam o garoto, prontos para qualquer resposta.
Jatyr então sussurrou. Não para si. Não para Echo. Nem para ninguém em particular.
— Tô vendo vocês…
Jatyr cerrou os punhos.
E ali, onde termina a floresta morta e começa a terra dos vivos,
o menino que atravessou as trevas foi visto.
As mãos vazias. O peito em brasa.
As garras do velho mundo ainda queimavam em seu pulso.
Mas era o novo que se aproximava — com olhos de guerra e silêncio nos pés.
Echo piscou uma última vez.
Naquele dia, a floresta segurou o fôlego.
A mata se fechou em círculo — como quem deseja testemunha.
O menino que outrora fugia do fogo,
naquele instante, o vestiu como armadura.
Suas veias queimavam com algo antigo.
As filhas da noite, armadas de silêncio e verdades cortantes,
vieram buscá-lo.
Não para matá-lo.
Mas para perguntar:
Por que você ainda está vivo?
FIM DO ATO 1.
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