Capítulo 2: O Conselho Sob a Filha da Lua
Poucos minutos depois, que pareceram uma eternidade para os corações ainda acelerados das guerreiras, o *Abaeté Rekó*, o Círculo dos Anciãos, estava reunido na base da Yaci’na. O ar ainda vibrava com a energia residual do evento celestial, uma mancha fantasmagórica na retina e uma profunda inquietação na alma da floresta. Antes de iniciarem a deliberação, cada um dos três anciãos tocou o tronco colossal da árvore-mãe, um gesto de reverência e busca por centramento, como se extraíssem dela a sabedoria para o que viria.
As guerreiras, agora limpas da poeira do treinamento e envoltas em seus mantos cerimoniais tecidos com fibras naturais de buriti e tingidos com pigmentos da terra, esperavam em um semicírculo respeitoso diante de três figuras idosas. Cada um dos anciões era um repositório vivo da história da tribo, seus rostos marcados pelas linhas profundas da sabedoria, pelos rituais ancestrais e pelas cicatrizes invisíveis da vida espiritual.
A mais velha entre eles, Havaene, cujos olhos eram ritualisticamente pintados a cada alvorada com um círculo de argila branca sagrada, simbolizando a visão além do véu, ergueu a voz. Esta soava como o farfalhar de folhas secas, mas carregada de uma autoridade que o tempo apenas apurara. Em suas mãos, segurava um pequeno bastão de jacarandá, liso pelo uso, com uma única pena de arara azul presa à ponta.
— O céu gritou, Filhas da Lua — começou Havaene, seu olhar translúcido varrendo o rosto de cada guerreira. — As estrelas se agitaram. A canção sagrada de *Yaciara* está dissonante, ferida por uma nota que não lhe pertence. Uma incursão precipitada poderia rasgar ainda mais esse tecido. O que viram?
— Uma luz que rasgou o entardecer, vinda do Sul, Anciã — respondeu Nayara, a voz firme, mas respeitosa. — Como uma lança dos céus. Poderosa. Antiga.
— Aquela luz… não era de tempestade comum, nem fogo celeste conhecido — disse Kael, o segundo ancião, cuja voz era um baixo profundo como o ribombar de um rio subterrâneo. Ele era o guardião das histórias, seu corpo adornado com colares de sementes de tucumã que, segundo a tradição, guardavam as memórias dos tempos. Em sua mão direita, apoiava-se em um cajado de vinhático, com inscrições que contavam a linhagem da tribo desde a Grande Queda. — Foi… como uma lâmina de justiça divina. Ou o despertar de um julgamento. Lembram-se das canções sobre o *Ybytu-Tata*, o Vento de Fogo que anunciou o fim do Primeiro Povo? E que, segundo contam os contos mais raros, foi desafiado por um rei cujo nome se perdeu no esquecimento.
O terceiro ancião, Miran, o mais calado, conhecido por sua conexão com os espíritos animais e por usar um amuleto de osso de harpia ao pescoço, assentiu, seus olhos penetrantes fixos na direção sul.
— Os *Mairu*, os espíritos menores da mata, estão agitados — ele finalmente falou, a voz áspera como casca de árvore. — A onça que cruzou vosso caminho… ela não fugiu. Ela cedeu o território. A Yawara-eté só se curva a um poder que ela sabe que não pode enfrentar. Senti o medo dela em meus ossos. O perigo já respira em nossa fronteira, Havaene. Ignorá-lo é convidar a sombra para dentro de casa.
Havaene então se dirigiu ao grupo, e uma sombra de preocupação cruzou seu semblante.
— *Anamã Cy*, nossa Matriarca e farol, partiu ao romper da aurora em uma jornada urgente. *Pytuuna ybyty-pe* (Noite nas montanhas), ela não estará conosco. — Um suspiro coletivo e quase inaudível percorreu as guerreiras. A ausência de Kainoa, especialmente agora, era um peso a mais. — Ela foi chamada pelos Ro’ysanga para mediar um antigo impasse com os clãs das Estepes Geladas que ameaçam fechar as únicas passagens seguras para as Montanhas, isolando nossos aliados. A palavra de nossa *Anamã Cy* é a única que pode tecer a paz onde as lâminas já foram desembainhadas. Assuntos que não podiam esperar e que, infelizmente, exigiram a companhia de algumas de nossas mais experientes rastreadoras e guardiãs para sua escolta.
Ela fez uma pausa, seu olhar varrendo as guerreiras presentes.
— Sua ausência é sentida, mas sua sabedoria nos alcançou. Lyra, partilhe a mensagem que os ventos, e a fiel Arani, lhe trouxeram.
Lyra deu um passo à frente, segurando uma pequena pena azul, a marca da arara mensageira.
— A Matriarca Kainoa envia estas palavras, Anciões, Comandante: ‘O céu sangra uma luz estranha ao sul. O coração de Anhangá pulsa com um ritmo desconhecido. Que quatro espelhos da lua, guerreiras de visão clara e coração firme, desçam com cautela até a margem onde os espíritos da mata já não ousam cantar. Observem. Relatem. Não enfrentem o que ainda não pode ser nomeado.’ — Lyra fechou os olhos por um momento. — A Arani estava exausta, voou sem parar. A mensagem… carrega a urgência da Matriarca.
Os olhos dos três anciãos pousaram em Nayara, que assentiu gravemente. Ela compreendia a responsabilidade e o perigo. A menção direta a Anhangá e seu “ritmo desconhecido” era um mau presságio. Observar e relatar. Mas como relatar o que não se compreende de perto?
— Comandante Nayara — disse Havaene, a voz mais formal. — A mensagem é clara, e a necessidade é premente. Escolha três guerreiras para acompanhá-la. As melhores para olhos atentos, pés ligeiros e um coração que não se deixe enganar pelas sombras.
O olhar de Nayara moveu-se lentamente sobre suas guerreiras. Anara, com sua força inabalável. Lyra, com sua percepção sobrenatural. E Hanna… a mais nova, a mais inexperiente, mas aquela cujos sentidos pareceram vibrar em sintonia com o evento da noite. Houve um breve instante de hesitação, um micro movimento em sua mandíbula, enquanto pesava o risco. A Primeira Ventania teria arriscado? Ou teria visto a prudência como a maior arma?
— Anara — anunciou Nayara, a voz firme. — Pela força do seu instinto e a resiliência do seu corpo. Lyra, pela sua escuta aguçada dos segredos do vento. — Ela fez uma breve pausa, e seus olhos encontraram os de Hanna, que prendeu a respiração, o coração martelando contra as costelas. — E Hanna.
Um murmúrio quase imperceptível, como o roçar de folhas, percorreu o pequeno grupo de outras guerreiras presentes, rapidamente silenciado pelo olhar de Havaene. Hanna arregalou os olhos, surpresa e intimidada. Eu? Mas… por quê? Havia outras…
Havaene ergueu uma sobrancelha fina, seus olhos pintados parecendo ver além da surpresa da jovem.
— Hanna, a Luz que Desperta… uma escolha que demonstra confiança, Comandante, especialmente considerando que algumas de nossas mais experientes estão com *Anamã Cy*.
Nayara manteve sua postura.
— Hanna possui uma percepção que se provou singular esta noite, Anciã — ela justificou, o respeito em sua voz, mas também a convicção de sua decisão. — Seus olhos pareceram antecipar o sinal antes mesmo que ele rasgasse o céu. Além disso, a missão da Matriarca nos privou de outras opções de igual calibre. É tempo de Hanna transformar seu potencial em experiência. Ela aprenderá sob minha liderança. — Nayara fez uma pausa, e seu olhar encontrou o de Kael. — A Primeira Ventania me ensinou que em uma guerra contra as sombras, a lâmina mais afiada nem sempre é a mais forte, mas sim aquela que vê a fresta na escuridão. Hanna… vê as frestas.
Kael, o contador de histórias, ponderou, acariciando as inscrições em seu cajado.
— Os Antigos ensinam que, por vezes, os mais jovens, cujos espíritos ainda não foram endurecidos, são capazes de ouvir as canções mais sutis do universo, aquelas que os ouvidos calejados já não distinguem. Se a Luz que Desperta viu o prenúncio, talvez ela seja a chave para entendê-lo.
— Aceitas esta jornada e esta responsabilidade, Hanna? — perguntou Havaene diretamente à jovem, seu olhar penetrante.
Um turbilhão de emoções – medo, honra, dúvida e uma estranha excitação – percorreu Hanna. Mas ela pensou na confiança de Nayara, nas palavras de Kael, e no brilho estranho que sentira. Endireitou os ombros.
— Sim, Anciã — respondeu, sua voz surpreendentemente firme. — *Amombe’u* (Eu contarei o que vir).
— Então vão — disse Havaene, e Kael e Miran ecoaram em uníssono grave. — Partam com a bênção da Yaci’na e a astúcia da serpente. Observem nas sombras. E que seus passos sejam leves e seus olhos, verdadeiros. Antes que o feixe de luz retorne, talvez, em forma de uma sombra ainda maior.
A alvorada ainda hesitava em romper o véu da noite quando as quatro guerreiras escolhidas se reuniram na plataforma de pedra polida pelo tempo, um patamar que antecedia os portões cerimoniais da tribo, marcados com os símbolos ancestrais da Lua (*Yaci*) e da Serpente (*Mboîa*), guardiã dos caminhos. Atrás delas, o Coração de Anani permanecia em um silêncio profundo, quase fúnebre. O canto melodioso do uirapuru, que normalmente saudava os primeiros raios de sol, estava ausente, e uma névoa mais densa e fria que o habitual agarrava-se ao solo, como se a própria floresta estivesse em luto pela partida de suas filhas para o desconhecido.
Nayara permanecia em um silêncio que não denotava incerteza, mas uma profunda concentração. O Sul está diferente, pensou, a mandíbula levemente tensa. Mesmo o vento parece hesitar antes de cruzar aquela fronteira. Já vestia sua armadura leve, tecida com fibras escuras de açaí selvagem e placas de couro de anta cerimonial. Cada placa trazia gravado um único símbolo lunar: a lua nova para invisibilidade, a crescente para o ataque incisivo. Sua temível naginata, herança de cinco gerações de comandantes e marcada com um pequeno entalhe para cada ameaça significativa vencida por suas portadoras, descansava embainhada em um estojo de couro de capivara, enfeitado com penas raras de gavião-real e contas de âmbar polido, atravessada diagonalmente em suas costas. Seus olhos, escuros como a terra fértil, observavam as outras três. Que Yaciara nos guie, e que a prudência da Matriarca ecoe em nossas decisões.
Ao seu lado, Anara ajustava com movimentos firmes e econômicos os tirantes de seu arco longo. Havia um ritual em cada gesto: checava a ponta de cada flecha, testava o peso do arco. Que minhas flechas voem retas, e que meu pé não falseie, pensou, batendo levemente a prótese de madeira da Yaci’na contra a plataforma. Os entalhes rúnicos, símbolos de força da terra, brilharam com uma fraca luz esverdeada. Ela sentiu a vibração subir pela madeira viva, um eco da força da árvore-mãe. Cada batida era uma afirmação de sua resiliência, um lembrete de que ela não pertencia às sombras do sul, mas as dominava com a fúria da terra viva. Mas havia outra ressonância ali, mais fria, mais antiga… o toque da Cuca. Um poder que não pedi, mas que aceito como arma. Cada batida era uma afirmação de sua resiliência, um lembrete de que ela não pertencia às sombras do sul, mas as dominava com a fúria da terra viva.
Lyra murmurava palavras em uma língua gutural e melódica, uma mescla de sua herança Ro’ysanga e dos cânticos da Tribo. Era uma conversa íntima com os espíritos do ar. Com os olhos fechados, seus dedos traçaram os amuletos em seu cinto, um por um, ativando suas intenções. Terra, ancore-nos, pensou ao tocar o dente de anta. Céu, dê-nos clareza, ao roçar a pena de águia-harpia. Água, lave nosso medo, ao segurar a concha marinha. Sangue ancestral, proteja-nos do Sul, ao apertar a tira de tecido vermelho de sua avó. Os caminhos estão turvos. Mostra-nos a senda segura, ou a fúria necessária.
Hanna mantinha-se de pé com uma rigidez consciente, a lança curta de duas pontas firmemente segurada. Havia uma tensão elétrica em seu olhar – não mais o temor da noite anterior, mas a prontidão de um animal de caça. Em sua pequena mochila, carregava folhas de *ka’apixuna* (erva-de-santa-luzia) para ferimentos, dobradas com esmero, pedaços de carvão de cumaru para desenho ou marcação, e o colar simples de casca de ipê amarelo que sua mãe adotiva, Kainoa, lhe dera. Ela tocou o colar instintivamente, um pedido silencioso de força. A lança de guerra em suas mãos, uma herança de treinamento, refletia a primeira e pálida luz nascente com um brilho tênue e promissor. Sua alma ardia em expectativa – mas ela ainda não sabia discernir se era a chama da fé em sua missão ou o ardor frio do medo primordial. Eu vou conseguir. Eu preciso.
Diante delas, na borda da plataforma, Miran, o ancião calado e guardião dos caminhos, traçou lentamente no chão com a ponta de um galho seco o símbolo espiralado da trilha perigosa. Em silêncio, ele ergueu a mão enrugada e soprou sobre elas um pó fino e esverdeado – feito de folhas secas de Parietaria, a erva-que-quebra-pedras. O pó dispersou-se no ar como uma bruma efêmera, exalando um aroma agudo e purificador. Hanna sentiu um leve calor na pele, como um toque de sol em uma manhã fria. Lyra, por sua vez, sentiu uma onda de clareza em seus sentidos, como se um véu sutil tivesse sido erguido de sua visão.
— Nenhuma rota é verdadeiramente segura ao sul — disse Miran então, a voz baixa como o ranger de raízes antigas. — Apenas aquela que se desenha sob os pés firmes de quem caminha com propósito. Que a floresta as guie e os espíritos as protejam da sombra que se alonga.
Havaene surgiu por entre as sombras da mata como um espectro, envolta em seu manto de folhas secas e pequenos ossos de pássaros polidos, que tilintavam suavemente. Sua voz, ao contrário da noite anterior, soava mais firme, mais resoluta. Ela se aproximou de cada guerreira, pousando uma mão enrugada em seus ombros.
— A ti, Vento Silencioso — sussurrou para Nayara. — Que teu fardo não a prenda à terra quando precisar voar.
— A ti, Coração Verde — disse a Anara, seus olhos pintados parecendo ver a fúria sob a calma. — Que tua raiva seja a forja de tua lança, não tua pira funerária.
— A ti, Luz que Desperta — falou para Hanna, a voz um pouco mais suave. — Que tua luz não a cegue para as sombras que ela atrai.
Por fim, parou diante de Lyra, e sua voz foi quase inaudível.
— A Que Ouve o Vento… que a canção da terra não a ensurdeça para o silêncio da serpente.
— Ireis como os olhos e os ouvidos da tribo, mas também como suas raízes mais profundas que buscam a verdade no solo incerto, — ela proclamou, seu olhar branco varrendo cada uma das guerreiras. — Não há vergonha em recuar se as águas se mostrarem escuras demais, ou se a sombra se adensar a ponto de cegar. A floresta fala, mesmo em seu mais profundo silêncio. Escutem seus sussurros, suas advertências. E que a Mãe Yaci ilumine seu discernimento. —
As quatro guerreiras assentiram em uníssono silencioso. Não havia mais nada a ser dito. As palavras dos anciãos eram como sementes; agora cabia a elas cultivá-las com suas ações. Nayara liderou os primeiros passos para fora da proteção da aldeia, e as demais a seguiram em uma formação triangular compacta, Hanna protegida no centro. A trilha logo se estreitou, afunilando-se até se tornar um fio tênue serpenteando entre as árvores colossais. O mundo ao redor mudou quase que instantaneamente, os sons familiares da aldeia engolidos pela imensidão verde e pela quietude expectante da floresta primordial.
O dia se esvaiu como a água preciosa de um cântaro rachado, e a noite desceu sobre a floresta com uma pressa sombria. Após horas de uma marcha tensa por uma mata que começava a exalar o cheiro sutil de mofo e decadência, Nayara, com seu instinto infalível para o terreno e a percepção aguçada dos perigos ocultos, guiou suas companheiras a uma pequena reentrância rochosa, um abrigo natural formado pelo abraço de três imensas pedras cobertas de um musgo espesso como veludo. Era um local defensável, com boa visibilidade da trilha estreita e tortuosa por onde haviam chegado e protegido dos ventos cortantes que sopravam implacavelmente do sul, carregando consigo o fedor sutil e metálico das Terras de Anhangá, um aroma que se agarrava à garganta e aos pulmões.
Enquanto Anara com a força silenciosa e a vigilância de um urso da montanha protegendo sua cria, verificava o perímetro do improvisado acampamento – quebrando com cuidado os galhos secos sob seus pés para eliminar quaisquer ruídos traiçoeiros que pudessem denunciar sua presença e procurando por rastros frescos de predadores noturnos ou, pior, de criaturas corrompidas, o resto do grupo deu início ao ritual de proteção.
A cena se desenrolou como uma coreografia silenciosa, uma demonstração da perícia e sinergia da unidade. Lyra com seus movimentos fluidos e precisos, uma dança ancestral passada de geração em geração pelas mulheres de sua linhagem sensitiva, um balé silencioso entre o mundo físico e o véu dos espíritos. começou traçando no chão com um punhado de cinzas da última grande fogueira cerimonial dedicada à Yaci’na – cinzas que ainda guardavam o calor espiritual da árvore-mãe – misturadas com sal grosso para purificação e pétalas ressecadas de flor-de-lua, cuja fragrância sutil e prateada, mesmo seca, dizia-se acalmar os espíritos errantes, ela traçou símbolos complexos no chão ao redor do pequeno refúgio. Eram espirais representando o ciclo eterno da vida, da morte e do renascimento, frequentemente vistas nos entalhes da própria Yaci’na e nas pinturas corporais das xamãs; triângulos interligados, símbolo da força e unidade inquebrável da tribo; e, no centro de cada proteção, o olho onividente da Mãe Yaci, destinado a afastar os espíritos malévolos e as sombras errantes.
Em cada um dos quatro pontos cardeais, ela depositou com reverência um pequeno amuleto de seu cinto, cada um imbuído de um propósito específico: o dente amarelado de uma anta ancestral, para invocar a força e a estabilidade da terra ao leste; a pena negra e lustrosa de uma águia-harpia, para a visão clara e a sabedoria dos céus ao norte; a concha marinha iridescente, uma relíquia de seus antepassados que navegaram por mares desconhecidos, para a purificação e o fluxo das águas sagradas a oeste; e a tira de tecido de um vermelho vibrante, tingida com urucum e sangue de uma caça ritual, presente de sua avó, para a proteção contra as sombras insidiosas que emanavam do sul.
— Que a terra nos sustente, o céu nos guie, a água nos purifique e a vida nos defenda. — Pensou Hanna, observando a lógica por trás da escolha de cada amuleto e sua respectiva direção.
Lyra murmurava uma melodia baixa e hipnótica, uma canção entoada em uma língua que fundia a cadência gutural do Tupi ancestral com os ecos rúnicos e sibilantes do idioma perdido dos Roy’sanga. Para Hanna, que só conhecia a língua da tribo, o som era estranhamente dissonante e, ainda assim, harmonioso, como se duas correntes de rio se encontrassem e se entrelaçassem. Era uma prece para que os espíritos guardiões da Floresta, os Encantados benevolentes, estendessem seu manto protetor sobre aquele pequeno e frágil refúgio.
Nayara veio em seguida, reforçando a sintaxe da proteção; com um pó ritual de sua bolsa, contendo fragmentos moídos de cogumelos *Amanita-Yaci*, ela traçou uma segunda linha dentro da de Lyra. O cheiro terroso que subiu do pó pareceu aguçar os sentidos, afiar as bordas da percepção contra ameaças invisíveis.
Então, Anara retornou, cumprindo sua parte no ritual, posicionou quatro flechas especialmente preparadas, fincando-as firmemente no solo logo após os amuletos de Lyra. Cada flecha possuía uma tira de pele de surucucu trançada em sua haste, embebida na seiva leitosa e potente da yvyra-poxy – a árvore-purga, cujas folhas eram raras e cuja seiva exigia um ritual de coleta perigoso, realizado apenas por guerreiras experientes. Acreditava-se que essa seiva queimava a carne de seres impuros. Se alguma criatura corrompida ou espírito malévolo ousasse cruzar o limite do círculo, os talismãs nas flechas se incendiariam instantaneamente com uma luz roxa e crepitante, alertando as guerreiras e consumindo a ameaça.
Hanna observava cada gesto, cada palavra sussurrada, com uma fascinação que beirava o temor reverente. A seriedade e o poder palpável que emanavam de Lyra e das outras durante o ritual eram algo que ela ainda estava aprendendo a compreender, uma força que ia muito além do treinamento físico. Sob a orientação silenciosa de Nayara, que apenas indicava os locais com um movimento sutil do queixo, Hanna acendeu pequenas velas feitas com a gordura purificada de anta e pétalas esmagadas de araticum silvestre – um fruto cuja polpa adocicada era alimento comum, mas cujas pétalas, quando queimadas, liberavam uma fumaça com conhecidas propriedades de limpeza espiritual. Ela as distribuiu em pontos calculados com exatidão dentro do círculo, suas chamas trêmulas adicionando uma camada de luz bruxuleante à proteção.
Com a barreira espiritual finalmente estabelecida e o perímetro assegurado, Anara usou sua habilidade ancestral com a pederneira e um feixe de palha seca para acender uma pequena fogueira na depressão escavada no centro do abrigo. As chamas nasceram tímidas, quase hesitantes, mas, alimentadas por gravetos secos e resina de copaíba, cresceram com rapidez controlada, lambendo o ar pesado com estalos que, estranhamente, soavam tranquilizantes naquele ambiente carregado de tensão. A fogueira era pequena, discreta, o suficiente para afastar o frio penetrante da noite que se aprofundava e para cozinhar as poucas raízes amargas e nutritivas que haviam conseguido coletar durante a marcha, mas não tão grande a ponto de se tornar um farol para atenções indesejadas naquelas paragens hostis e desconhecidas.
As quatro guerreiras se acomodaram ao redor das brasas, a luz dançando em seus rostos sérios e marcados pelo cansaço da jornada. Os olhos de cada uma refletiam as chamas, mas também carregavam as sombras profundas da floresta e a incerteza do que estava por vir. Era um momento raro, quase roubado, naquela missão de reconhecimento em território inimigo, poder baixar as armas e permitir que os músculos tensos relaxassem minimamente – mesmo que por pouco tempo.
Por um longo instante, nenhuma delas falou. O som do fogo, com seus estalos e sussurros ígneos, era a única voz no refúgio. Fora, o silêncio da floresta era mais denso, mais pesado do que o normal.
Foi Hanna quem, impelida pela curiosidade que lhe era característica e pela necessidade de dar sentido aos eventos extraordinários do dia anterior, quebrou a quietude. Sua voz, embora baixa, soou clara e um pouco trêmula na atmosfera carregada.
— Comandante… guerreiras — ela começou, a voz baixa. — Vocês acham… que aquele feixe de luz que vimos… era mesmo algo da terra? Ou… teria vindo de cima? Do céu?
As outras três olharam para ela, suas expressões variando da contemplação silenciosa de Nayara à intensidade focada de Anara.
Lyra foi a primeira a responder, os olhos fixos nas chamas como se lesse presságios nelas.
— O ar já estava estranho muito antes do feixe, Hanna — disse ela, a voz suave. — As folhas das árvores mais altas viraram suas faces para o sul, como se estivessem se curvando. Os galhos da Yaci’na sussurraram entre si…, mas não havia vento algum que justificasse tal canção. Para mim… foi algo que desceu dos céus superiores. Como uma resposta a um chamado que não ouvimos.
— Uma resposta? — murmurou Anara, virando uma raiz na brasa com a ponta de sua faca. — Ou um aviso, Lyra? As respostas dos céus raramente chegam sem um preço.
Nayara permaneceu em silêncio, os olhos escuros e penetrantes fixos no coração da fogueira. Aquele feixe carregava o peso de eras, uma energia que ela sentira poucas vezes em sua vida.
Finalmente, ela falou, a voz calma e ponderada.
— Seja o que for, não era uma criação de agora. Aquilo… era antigo. Muito antigo.
Hanna abraçou os joelhos, a postura tensa revelando sua inquietação interna.
— Poderia ter sido… um dos deuses esquecidos? — Ela engoliu em seco antes de pronunciar o nome que ecoava em sua mente, um nome sussurrado nas histórias de Lyra sobre seu povo do Norte. — Vocês já… já ouviram as histórias mais velhas sobre Tupã?
O nome, uma vez pronunciado, pareceu vibrar no ar. Carregando consigo um eco poderoso, um resquício de um tempo em que os deuses caminhavam mais próximos da terra. Lyra ergueu os olhos, e uma luz estranha, quase reverente, acendeu-se em sua pupila vidente.
— Tupã… — ela repetiu, o nome quase um cântico. — O Pai do Trovão, o Senhor do Céu em Chamas… Sim, Hanna. Os mais antigos contadores de histórias de meu povo, os descendentes dos homens de gelo que buscaram refúgio em nossas montanhas há muitas gerações, contavam que ele moldou os primeiros deles com o sopro do raio e o barro retirado do leito do Grande Rio das Origens, muito antes de chegarem aqui. Seu grito de guerra era o trovão que abalava as montanhas, e sua lança de caça, um raio incandescente que tanto podia purificar a terra com fogo sagrado quanto destruir os que desafiavam a ordem cósmica. Diziam que ele observava o mundo do alto de uma montanha de nuvens, esperando o momento certo para intervir.
— E então ele se foi — disse Anara, cruzando os braços, a voz com um tom de praticidade amarga. — Como todos os outros Grandes Espíritos da Primeira Era. Como os Encantados mais velhos, cujos nomes hoje são apenas ecos em canções tristes. Como o próprio céu, que já não responde às nossas preces como antes.
— Ele não partiu por completo — corrigiu Lyra suavemente. — Ele… adormeceu. Assim como o Pai-de-Todos de minhas ancestrais, que dorme um sono de sabedoria. As lendas contam que Tupã entristeceu-se com o que viu após o Grande Grito que quebrou os céus e silenciou os primeiros povos. Decepcionado com a fragilidade e a corrupção que se seguiu, ele se retirou para o sul celeste, para um lugar além da última estrela visível, onde o tempo, contam, sangra ao contrário, esperando o dia em que a Terra estivesse pronta para sua canção novamente.
Hanna mordeu o lábio inferior, uma ideia terrível e audaciosa tomando forma em sua mente.
— E se… — ela começou, a voz baixa. — E se Anhangá… o espírito sombrio que devora a luz ao sul… se ele o encontrou primeiro, em seu sono? E o… corrompeu? Como ele faz com os espíritos menores da floresta, com os animais, transformando-os em sombras de si mesmos?
A fogueira estalou alto e subitamente, lançando uma chuva de fagulhas que dançaram no ar como olhos furiosos, como se a própria floresta tivesse se assustado com a blasfêmia da pergunta.
Um silêncio pesado instalou-se entre elas. Anara rosnou baixo, um som gutural de puro desprezo.
— Não, criança — disse ela, inclinando-se para frente, os olhos intensos fixos nos de Hanna. A imagem de olhos infantis, antes cheios de admiração e agora vazios de tudo exceto fome, queimou por trás de suas retinas. A sombra não corrompe a luz, pensou com uma fúria fria. Ela se aninha por dentro e apodrece a pureza até que não sobre nada além de uma casca faminta. — Anhangá é a própria sombra, o lodo que sufoca a vida. Tupã é o raio primordial, a força que rasga a escuridão. Sombra não devora raio, Hanna. Apenas se esconde dele, temendo sua chegada. — Ela bateu o punho no peito. — Acredito na força dos nossos, dos espíritos da floresta que ainda resistem, não em deuses adormecidos. Se Tupã, o Pai do Trovão, verdadeiramente retornou em sua glória ancestral, como dizem as lendas do povo de Lyra, então ele virá para obliterar Anhangá e suas Terras Corrompidas, não para se curvar ou servir a ele.
Nayara interveio, a voz calma, mas firme, trazendo equilíbrio à fogueira de emoções.
— As lendas dos Roy’sangas são valiosas, Anara, assim como as nossas. Eu sei por que você diz isso. E sua convicção é uma arma. Mas a fúria, por mais justa que seja, cega para outras possibilidades. Hanna levanta uma questão válida. A luz mais brilhante projeta a sombra mais escura. E Anhangá, antes de ser a sombra, foi um guardião. A tragédia dele, segundo as histórias que Kael guarda, não foi ter nascido das trevas, mas ter se perdido nelas, contaminado pela própria crença doente dos que caminham. É por isso que sua ideia, por mais terrível que seja, não pode ser descartada. Mas concordo com você em um ponto, Anara. Se o que vimos foi Tupã, seu propósito seria claro.
— Mas… por que agora? — perguntou Hanna, seu tom quase suplicante. — Por que depois de tanto tempo?
— Talvez — disse Lyra, seus olhos translúcidos ainda perdidos nas chamas que dançavam. — Porque o grito de agonia da terra, o lamento silencioso de Yaciara, finalmente subiu alto o bastante para acordá-lo de seu sono.
— Ou — Nayara murmurou, sua voz calma cortando as especulações com a frieza de uma lâmina, trazendo todas de volta à realidade da missão. — Porque não é ele. E o que quer que tenha rasgado o céu, é algo que ainda não compreendemos. E o desconhecido, minhas irmãs, é sempre o mais perigoso dos inimigos.
Essa última frase pairou no ar, pesada e fria como a névoa que começava a se infiltrar pelas bordas do abrigo. O fogo ardeu em silêncio por longos minutos, suas chamas já não oferecendo apenas calor e luz, mas refletindo as histórias antigas, os medos presentes e as esperanças incertas. E naquele círculo frágil de proteção, sob um mundo que ainda sangrava as feridas de sua ruína, quatro guerreiras da Lua partilharam uma dúvida que ecoava através do próprio tecido do tempo:
Quando os deuses ancestrais dormem e se calam, quem, ou o quê, ousa despertar em seu lugar?
Nayara, com um suspiro quase imperceptível, quebrou o transe reflexivo.
— As lendas são o alimento da alma em noites escuras, e a esperança, o escudo do coração contra o desespero. Mas agora, o corpo exige descanso. O caminho à frente será árduo, e os olhos famintos do Sul são muitos e vigilantes. Durmam enquanto podem. Eu farei a primeira vigília.
Com um aceno respeitoso, Anara, Lyra e Hanna se ajeitaram em seus leitos de folhas, buscando o sono sob o olhar atento de sua comandante. A discussão sobre o feixe de luz pairava no ar da noite, uma mistura volátil de temor reverente e uma fagulha recém-acesa de uma esperança quase impossível em meio à desolação iminente.
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