A manhã avançava sob um céu acinzentado, e a floresta, embora menos exuberante que o coração do território da Tribo, ainda pulsava com vida. O ar carregava o cheiro de terra fértil, e o som abafado de seus pés descalços era acompanhado pelo zumbido distante de insetos e o chamado ocasional de um pássaro. A comunicação era feita inteiramente por sinais de mão, uma linguagem silenciosa que transformava as quatro guerreiras em uma única entidade de caça.

    Por horas, a marcha foi tensa, mas rotineira. Um exercício de disciplina e paciência. Nayara lia o terreno à frente, Hanna se esforçava para antecipar cada sinal, e Lyra sentia a canção familiar da terra, ainda que com uma nota de melancolia distante vinda do sul.

    Elas não seguiam trilhas demarcadas por mãos humanas. O caminho era ancestral, traçado apenas nas memórias das guerreiras mais velhas e nos cantos esquecidos pelos pássaros sagrados que, segundo as lendas, guiavam os puros de coração. Um estreito corredor entre árvores gigantescas, onde cipós grossos como braços pareciam se afastar respeitosamente à sua passagem, e pedras cobertas de musgo escorregadio vibravam sutilmente sob seus pés, indicando a direção correta através de uma linguagem tátil. Nayara e Lyra pareciam ler essas vibrações com naturalidade, mas Hanna ainda lutava para discernir os padrões sutis, concentrando-se em não tropeçar.

    Hanna, no centro, sentia um arrepio constante percorrer-lhe a nuca, como se olhos invisíveis a seguissem. É diferente da floresta que conheço… até o silêncio aqui parece gritar.

    Durante os primeiros quilômetros, ainda dentro do território considerado seguro e sagrado da Floresta, o ambiente mantinha sua exuberância característica, pulsando com uma miríade de formas de vida. O ar era fresco e limpo, perfumado com o hálito adocicado das bromélias em flor e a umidade terrosa das samambaias gigantes. Beija-flores iridescentes cortavam o ar como minúsculas lâminas coloridas, e bandos de maritacas, barulhentas e inquietas, pulavam de galho em galho nas altas copas, observando a comitiva silenciosa com olhares laterais e uma inteligência antiga e curiosa.

    Foi Anara quem parou primeiro.

    O movimento foi tão abrupto que Hanna quase colidiu com suas costas. A guerreira estava imóvel, o corpo rígido como uma árvore petrificada, o rosto uma máscara de concentração intensa. Não fora um som ou um vulto que a detivera. Fora a perna. A prótese de madeira da Yaci’na, que normalmente vibrava em uma harmonia sutil com a terra viva, enviou um choque dissonante por seu corpo. Um frio que não era da umidade. Uma sensação de madeira morta, de raízes que não mais bebiam da vida, mas do silêncio.

    Nayara ergueu um punho fechado, os nós dos dedos brancos – o sinal de Pytu’u, Araesakã (“Parar. Atenção Redobrada.”). Todas congelaram em suas posições, tornando-se estátuas vivas em meio à vegetação. Hanna, focada em imitar as reações das mais velhas, demorou um milésimo de segundo a mais para reagir, seus sentidos ainda se ajustando à tensão da missão, mas corrigiu-se antes que sua hesitação pudesse ser percebida como falha. Mais rápido. Preciso ser mais rápida. ela se repreendeu internamente.

    — Nayara — a voz de Anara era um rosnado baixo, quase inaudível, mas carregado de uma urgência que fez as outras congelarem. Seus olhos, a cor de terra escura endurecida, varreram o chão à frente, depois as árvores. — Está errado. A terra aqui… está doente.

    Só então as outras perceberam. A transição fora súbita. Um passo atrás, a floresta respirava. Ali, ela sufocava. O cheiro de vida fora substituído por um odor sutil de mofo e algo metálico. As árvores à frente, embora ainda parecessem normais à primeira vista, tinham uma palidez doentia em suas folhas.

    Lyra agachou-se, a palma da mão espalmada a centímetros do solo, sem tocá-lo, o olho branco brilhando com uma luz fantasmagórica.

    — É um silêncio oco — a voz de Lyra era um sopro gélido, quase um lamento. — Onde antes havia uma presença que fazia a terra tremer… agora há um vazio. O guardião deste território… não está mais aqui. Sua canção foi arrancada da floresta.

    Lyra, com seus sentidos aguçados, foi a primeira a verbalizar a mudança. Ela apontou com o queixo para uma imponente árvore à frente, um antigo Angelim cujas raízes formavam contrafortes naturais. A casca da árvore, que deveria ser de um marrom-avermelhado vibrante, agora exibia extensas marcas negras, como veias mortas e ressequidas subindo pelo tronco, uma doença que parecia sugar a própria vida da madeira. A madeira ao redor das marcas parecia ressequida, quebradiça, e uma seiva escura, quase como piche, escorria lentamente de uma fissura. Hanna sentiu um cheiro sutil de queimado, um odor que a fez recuar instintivamente, lembrando-se do evento da noite anterior. Aquele… aquele cheiro da luz…

    — Começou. — Murmurou Nayara, sua voz um sopro quase inaudível, mais para si mesma do que para as outras. Ela se aproximou da árvore com cautela felina. A superfície parecia anormalmente fria, apesar do calor úmido da manhã. Mais do que fria: estava inerte, desprovida da sutil pulsação de vida que caracterizava as árvores saudáveis da Floresta.

    Lyra, aproximando-se, estremeceu visivelmente, uma mão sobre o estômago. — A podridão é palpável aqui, Comandante. Suga a energia vital. — A floresta ali não respirava; estava entorpecida, silenciada.

    — Primeiras manifestações da zona morta, — informou Lyra em voz baixa, seus olhos percorrendo o entorno com uma intensidade febril. — Ainda não é o coração da podridão. Mas estamos na borda. O ar aqui já cheira a mofo e a algo… metálico. —

    Anara deu um passo à frente, mancando levemente, a prótese agora emitindo um leve e doentio brilho esverdeado nos entalhes rúnicos. — Mais cedo do que esperávamos. Essas marcas… estavam a pelo menos dois dias de jornada daqui, na última expedição de reconhecimento, há muitas luas. Anhangá está se espalhando como praga. O que quer que guardasse este lugar… foi devorado. —

    A revelação pairou no ar, mais fria e pesada que a própria névoa. Não era uma simples expansão. Era uma conquista. Algo poderoso o suficiente para manter Anhangá à distância havia sido neutralizado.

    — A corrupção está se expandindo, — respondeu Lyra, sua voz carregada de uma preocupação contida. — Ou o feixe de luz que vimos ontem à noite acelerou o processo de alguma forma nefasta. —

    A estratégia dele mudou, pensou Nayara, a mandíbula tensa. O feixe de luz não foi um evento isolado. Foi um catalisador. Ele não está mais apenas se expandindo. Está caçando os guardiões. Temos que ser rápidas. Se a influência dele está crescendo assim, não temos tempo a perder.

    — Mudaremos de rota — decidiu ela, a voz um comando baixo e preciso que cortou a tensão. — Contornaremos pela crista leste. O que quer que tenha silenciado o gigante, não estamos prontas para enfrentar de frente. *Nhekatu’arã* (Cautela. Observem.).

    Mudaram a rota com uma fluidez impressionante, como um cardume de peixes desviando de um predador. Deslizaram entre ruínas antigas que começavam a emergir da vegetação densa – estruturas de pedra cobertas por trepadeiras grossas como serpentes, torres de observação tombadas e corroídas pelo tempo, pilares com inscrições em idiomas que Hanna jamais vira e que nem mesmo Lyra, com seu conhecimento de runas ancestrais, conseguia identificar completamente. Eram símbolos que não pertenciam nem às tradições de seu povo, nem aos ensinamentos da Tribo. Mais antigos ainda, Lyra pensou, sentindo um arrepio de admiração e temor. De quem seriam estas mãos? Que deuses ouviram preces nestas pedras?

    Hanna se permitiu um brevíssimo segundo de distração, os olhos capturados por um pedestal coberto de musgo onde ainda se via, parcialmente visível, a imagem entalhada de uma figura humanoide com seis braços e olhos que pareciam buracos negros vazios, encarando o nada. Que tipo de ser precisaria de tantos braços? E por que seus olhos… por que são tão vazios?

    — Concentre-se no presente, Hanna — a voz de Anara soou ao seu lado, um sussurro ríspido, mas não cruel. — A curiosidade desatenta é o primeiro passo para ser tragada por algo que não se compreende. As ruínas dos Antigos guardam mais perigos do que sabedoria para os despreparados.

    Hanna assentiu rapidamente, o rosto corando, e voltou sua atenção para a trilha. Mais adiante, o terreno declinou, e elas encontraram um córrego lento. Sua água, que em tempos mais puros deveria ser cristalina, agora escorria como um líquido leitoso e opaco, quase viscoso, com um leve e doentio brilho esverdeado emanando de suas profundezas.

    — Não bebam desta água — alertou Lyra, sua voz tensa. — Nem permitam que a pele submerja. Sinto a mácula nela.

    Cruzaram o córrego saltando sobre pedras escorregadias e cobertas de um limo escuro. A cada metro conquistado, o ar parecia mais pesado. Hanna começou a sentir um zumbido baixo e persistente em seus ouvidos – uma vibração sem som, uma pressão interna que parecia ressoar em seus ossos. É parecido com o que senti antes da luz… mas agora é constante. E dói.

    — Sente isso? — ela arriscou sussurrar para Lyra, quando tiveram um momento de pausa para observar o terreno à frente.

    Retomaram a marcha, seguindo por uma trilha secundária, quase invisível, que subia de forma íngreme pela lateral da colina. Agora em silêncio absoluto, a comunicação reduzida a gestos codificados, uma linguagem secreta de mãos e olhares passada de guerreira para guerreira ao longo de incontáveis gerações. Um rápido levantar de mão de Nayara, dedos apontados para o chão – Yvy vai (“Solo perigoso”). Lyra tocando o próprio olho e apontando para uma sombra específica – Ajesareko (“Observar com atenção ali”). Anara batendo no próprio peito duas vezes – Che poru (“Eu cubro/protejo”). Cada sinal carregava um significado preciso. Avisos de terreno instável. Indicação de rastros suspeitos. Alerta para atenção redobrada.

    Hanna, com os sentidos em alerta máximo, imitava os gestos com a maior precisão que conseguia, seus olhos alternando entre o caminho traiçoeiro e as figuras experientes de Nayara e Anara, que se moviam com uma fluidez fantasmagórica.

    O esforço era considerável, e o ar rarefeito dificultava a respiração. Finalmente, alcançaram o topo de uma crista de pedra nua, coberta apenas por musgos ressequidos e pequenas árvores retorcidas e enfezadas pela hostilidade do solo. Ali, esgueirando-se entre as fendas das rochas e a vegetação escassa, elas viram o vale. Uma vasta depressão coberta por uma névoa densa e baixa.

    — Estamos nas bordas do domínio de Anhangá. Ele percebe nossa aproximação. Ele observa. — Lyra fez uma pausa, e sua voz baixou ainda mais. — Alguns dizem que ele escuta o próprio sangue dos intrusos pulsar na terra. —

    Aquelas palavras causaram um arrepio gelado em Hanna que nenhuma brisa da floresta, por mais fria que fosse, poderia explicar. O medo era uma presença física agora, um nó em seu estômago, um peso em seus ombros. Ele escuta… meu sangue?

    Horas se arrastaram sob um céu cada vez mais carregado e opressor. O grupo parou apenas uma vez, em uma pequena elevação rochosa, encoberta por um emaranhado de samambaias gigantes e folhas espessas que ofereciam alguma camuflagem.

    Nayara, com a ponta de sua naginata, desenhou um pequeno mapa ritual no solo úmido, utilizando pó de carvão e pétalas esmagadas de caapeba-roxa, uma flor conhecida por sua resistência à podridão, registrando o avanço da corrupção na região e os pontos de referência. Não era apenas um registro, mas um pedido silencioso aos espíritos da terra para que guiassem seus passos. Lyra, por sua vez, amarrou um pequeno pingente de osso de harpia polido, gravado com runas de proteção de seu povo, em um galho discreto de uma árvore próxima – um selo espiritual para guiar e proteger futuras patrulhas que por ali passassem, e um pedido silencioso aos espíritos guardiões para que velassem por elas. Anara, sempre pragmática, inspecionou suas flechas uma a uma, verificando a firmeza das pontas e a integridade das penas.

    Hanna permaneceu em silêncio, vigiando os arredores com a lança pronta, tentando entender o tempo, o espaço, e o estranho pulsar que agora sentia em seu próprio sangue, um eco da terra doente ao seu redor. Preciso ser forte. Preciso entender.

    Estamos perto, Nayara pensou, analisando o terreno à frente e os sinais que Lyra lhe transmitia. O penhasco que delimita o antigo Vale dos Espíritos Caídos deve estar além daquela próxima elevação. É de lá que o feixe de luz pareceu emanar. Kael contava que o Vale era um cemitério de almas, onde espíritos de uma guerra ancestral haviam sido derrotados e aprisionados pela própria terra, antes de Anhangá clamar o local como seu.

    —Nos aproximaremos por cima — decidiu Nayara, após um momento de contemplação. — Quero olhos no vale antes de colocarmos os pés em solo aberto. Máxima cautela. Nada de contato ainda, a menos que seja inevitável. Apenas observação. Lembrem-se da mensagem da Matriarca. —

    Foi então, enquanto Nayara, com a cautela de uma onça farejando uma armadilha, sinalizava uma pausa a partir da cobertura de um antigo e retorcido ipê-roxo – cujas flores, outrora vibrantes, agora pendiam murchas e escurecidas, como lágrimas púrpuras contra a casca cinzenta – que o som fatídico rasgou o silêncio mortal.

    Não o uivo lúgubre de uma fera das Terras de Anhangá, nem o chamado agourento de uma ave noturna desconhecida. Era inconfundivelmente humano. Agudo, desesperado, carregado de uma angústia tão pura e visceral que parecia ecoar desde as profundezas da própria alma atormentada. Tinha uma qualidade quase insana, uma nota de terror absoluto que ia além da simples dor física, como se a própria razão estivesse sendo estilhaçada.

    Para Hanna, que ainda sentia o zumbido constante daquelas terras doentes em seus ossos, o grito foi como um golpe físico. Ela arfou audivelmente, uma mão voando instintivamente ao peito, os olhos arregalados como duas luas cheias de pavor, o coração disparando contra as costelas como um pássaro desesperado preso em uma gaiola. Mãe Yaciara, que agonia é essa? É como o uivo de um espírito sendo devorado!

    Anara enrijeceu instantaneamente, a mão buscando as flechas envenenadas em sua aljava, o suor frio brotando em sua testa.

    — Pelas garras da Yaci’na! Que tipo de criatura faz um homem gritar assim? — ela rosnou baixo, mais para si mesma do que para as outras.

    Lyra inclinou a cabeça abruptamente, seu olho branco parecendo vibrar com uma luz interna e fantasmagórica.

    — Uma perturbação violenta no fluxo — ela sibilou, a voz tensa. — Uma alma se rompendo… ou sendo arrancada.

    Nayara, a comandante, permaneceu imóvel por um instante mais longo, seus olhos fixos na direção do som. Um único grito. Humano, sem dúvida. Mas o que faria alguém gritar assim neste ermo? Armadilha? Ritual? Ou apenas um louco encontrando seu fim? Seja o que for, está perto demais de nossa fronteira.

    — Do penhasco — Nayara sibilou, sua voz baixa e tensa, mas cortante como o vento da montanha. — Ao sul. É um único grito, mas… a agonia nele é a de muitos. Uma alma em tormento absoluto. — Ela varreu suas guerreiras com um olhar que não admitia hesitação. — A mensagem da Matriarca foi clara: observar. Mas o dever de uma guardiã é também entender a natureza da ameaça que ronda nosso lar. Pelas copas das árvores. Quero olhos sobre aquele precipício antes que a fonte daquele lamento se cale para sempre, ou nos arraste junto.

    Não houve um segundo de hesitação. Em um instante, a disciplina forjada em anos de treinamento implacável assumiu o controle. Utilizando cipós grossos e resistentes como cordas naturais e a agilidade felina que era sua segunda natureza, as quatro mulheres ascenderam às alturas das árvores ancestrais que margeavam a descida traiçoeira para o vale do rio. Moviam-se como espíritos da mata, sombras ágeis deslizando de galho em galho, cada movimento sincronizado com uma precisão mortal, uma dança silenciosa e perigosa contra o tempo e o desconhecido.

    De sua posição elevada, a visão tornou-se terrivelmente mais clara. E lá, no topo do paredão de rocha escura, uma figura solitária e minúscula estava recortada contra o céu cinzento do lado Sul. Distante demais para discernir feições, mas a postura curvada e os gestos agitados denunciavam um ser à beira do desespero.

    — É um *Mairu* — rosnou Anara, a voz um sussurro áspero, os olhos semicerrados. — Um espírito atormentado, repetindo sua queda para a eternidade. Anhangá adora esses espetáculos cruéis.

    — Não é uma repetição… — contrapôs Lyra, o olho branco fixo na cena, o corpo emanando uma tensão quase elétrica. — A energia é… presente. Fresca. Uma alma de verdade, presa no limiar.

    — Mas… parece uma pessoa — a voz de Hanna foi um fio, quase se perdendo no vento, uma observação nascida da inocência e não da experiência com os horrores daquelas terras.

    — Pessoas não chegam até aqui para morrer, criança — Anara replicou, o tom ríspido, mas não cruel. — Elas morrem muito antes de alcançar a borda deste precipício. É um truque. Uma ilusão para nos atrair.

    Ou não, pensou Nayara, absorvendo cada detalhe com sua mente estratégica. O que quer que seja, está esgotado. E está prestes a fazer uma escolha.

    Então, o impensável aconteceu. A silhueta no penhasco se moveu, com uma decisão súbita e terrível que pareceu sugar todo o ar dos pulmões das observadoras. E saltou.

    Um suspiro coletivo, um som de puro horror e descrença, escapou das guerreiras, um lamento que se perdeu no farfalhar das folhas. Observaram, paralisadas e impotentes, enquanto a figura pequena e escura despencava em um arco mortal em direção às águas turbulentas e impiedosas muito abaixo. Um arrepio de pavor ancestral percorreu até mesmo a espinha de aço da Comandante Nayara. Aquele era um ato final, uma entrega ao abismo, sem esperança de retorno.

    — Mãe Yaciara o acolha em seu seio escuro… — murmurou Lyra, traçando instintivamente um símbolo de passagem no ar com dedos trêmulos.

    — Rápido! Para a margem do rio! — ordenou Nayara, sua voz um chicote afiado que cortou a paralisia do momento. — Se o rio cuspir algo para fora, quero saber o que era. Nenhum corpo sobrevive a essa queda, mas os espíritos de Anhangá, e aqueles que ele comanda, têm formas estranhas e cruéis de pregar peças aos vivos!

    Elas desceram das árvores com uma velocidade vertiginosa, a gravidade sua aliada momentânea. Embrenharam-se na mata densa que ladeava o rio, correndo em direção a uma pequena praia de seixos negros que sabiam existir mais abaixo, onde a correnteza do rio amaldiçoado perdia um pouco de sua fúria. Seus corações batiam em um ritmo frenético, um eco da própria turbulência das águas que corriam ao lado.

    Elas chegaram à orla da floresta, os corpos tensos e suados, ocultas pela cortina densa de folhas largas e cipós retorcidos que pendiam como serpentes. A pequena praia de seixos negros se abria para uma enseada onde as águas profundas do rio corriam escuras, mas com uma clareza surpreendente, refletindo o misto do céu cinzento ao sul e o belo céu aberto ao Norte como um espelho quebrado.

    Foi então que a superfície, até então tranquila, agitou-se. Não com a violência caótica da correnteza, mas com uma ondulação lenta, quase oleosa, como se algo vasto, antigo e indescritivelmente poderoso despertasse em suas profundezas. Uma melodia baixa e etérea, quase inaudível, começou a emanar da água, uma canção sem palavras, de uma tristeza lancinante, que arrepiava a pele e ecoava diretamente na alma.

    Um terror primordial, uma verdade terrível instilada nelas desde as primeiras histórias contadas ao pé da fogueira, gelou o sangue nas veias das quatro guerreiras. Cada uma delas recuou um passo instintivo, os músculos enrijecendo em antecipação, prontas para uma fuga desesperada.

    E então, Ela emergiu.

    A figura era inconfundível, arrancada das lendas mais sombrias e dos avisos mais severos de suas ancestrais. Uma mulher, se é que tal termo ainda poderia ser aplicado àquela aparição sobrenatural e aterradora, envolta em trajes que pareciam tecidos da própria névoa, adornada com cabelos longos e negros que flutuavam ao seu redor como serpentes aquáticas conscientes. Sua pele, de uma palidez cadavérica, parecia absorver a pouca luz, e veias escuras, como rios de sombra, eram visíveis sob a epiderme translúcida. Um leve odor de lodo e decomposição se misturava à brisa. Seus olhos, de um verde estranhamente intenso e hipnótico, carregavam a tristeza acumulada de eras incontáveis.

    Em seus braços, com uma delicadeza macabra e antinatural que contrastava horrivelmente com a aura de perdição e morte que a envolvia, ela trazia o corpo inerte da figura que havia saltado do penhasco.

    As guerreiras prenderam a respiração, não de simples espanto, mas de um pavor paralisante e absoluto. Aquilo não era um simples espírito da natureza; era uma lenda mortal encarnada, uma entidade cujo nome era sussurrado com o mais profundo temor e evitado em todas as preces e rituais.

    — Pelos espíritos ancestrais… Pelas garras de Anhangá… é Ela… — a voz de Lyra foi um sopro gélido, um som estrangulado pelo terror, seu olho branco arregalado em um misto de horror e uma admiração profana. — Iara… a Rainha Afogada… a Noiva de Anhangá!

    Hanna sentiu suas pernas fraquejarem. As histórias… Kainoa contava… corrompida, uma predadora implacável de almas. A ordem é clara: avistar e recuar. Fugir.

    Iara, a Senhora dos Rios, outrora uma entidade de beleza selvagem e poder sobre as águas doces. Mas há séculos, talvez desde o próprio Cataclismo, ela havia sido uma das primeiras e mais poderosas entidades a ser corrompida pela influência nefasta de Anhangá, tornando-se sua consorte nas profundezas. Ninguém que a encontrara em seu estado profanado havia retornado para contar a história.

    Anara, mesmo com sua bravura forjada em inúmeras batalhas, tinha a mão direita crispada sobre o cabo de seu pesado facão de caça, os nós dos dedos brancos como osso.

    — Não pode ser… — ela sibilou entre dentes. — Ela… ela nunca se mostra assim. Nunca… ajuda.

    A Iara Corrompida caminhou para fora da água, seus pés descalços parecendo deslizar sobre a areia negra sem verdadeiramente tocá-la, deixando um rastro úmido que brilhava com uma fosforescência esverdeada e doentia. Ela depositou o corpo na areia com uma suavidade quase maternal, que, para os olhos aterrorizados das guerreiras, soava como o predador que brinca com sua presa.

    Inclinou-se sobre ele, e as guerreiras, mesmo à distância considerável, puderam ver a expressão de profunda e antiga tristeza em seu rosto perturbadoramente belo e atemporal – uma tristeza que, em vez de inspirar qualquer traço de compaixão, apenas aumentava o terror primordial que sentiam. Seus olhos verdes, por um instante, pareceram perder o brilho hipnótico e doentio, revelando um lampejo de uma cor mais clara, quase um verde-água límpido, uma hesitação dolorosa antes de uma de suas mãos pálidas e translúcidas tocar a testa do corpo inerte. Aquele toque pareceu carregar o peso de uma despedida, uma dor que transcendia a corrupção.

    Então, com um gesto lento e deliberado que fez o coração de Hanna saltar à garganta e o ar gelar nos pulmões de Nayara, a Iara ergueu a outra mão, cujos dedos eram longos e finos como raízes de salgueiro, e apontou para uma grande pedra lisa que se projetava na margem, a poucos metros dela. No instante em que seu dedo espectral indicou a rocha, uma onda anormalmente forte do rio, como se convocada por um comando silencioso e irresistível da Rainha das Águas, varreu a praia com uma fúria súbita, cobrindo completamente a pedra com suas águas espumantes e escuras. Quando a água recuou, com a mesma rapidez antinatural e assustadora com que viera, algo repousava sobre a rocha agora molhada e brilhante: uma pequena esfera metálica.

    Iara ergueu-se lentamente, em toda a sua estatura etérea e imponente. Continuou a olhar para o corpo por um longo momento. Fixou o olhar no pulso direito dele, onde as guerreiras agora podiam vislumbrar uma mancha escura, que pareceu pulsar brevemente com uma luz sombria e própria. A expressão de Iara, ao ver a mancha, era de um amargo reconhecimento, uma tragédia silenciosa.

    E então, lentamente, ela virou a cabeça e seus olhos verdes encontraram os das guerreiras. Não havia ameaça, mas um peso incomensurável, uma comunicação silenciosa e urgente. Um pedido de ajuda, desesperado e mudo. Ela olhou novamente para o corpo, e de volta para as guerreiras, um gesto sutil, mas inequívoco, como se lhes entregasse uma responsabilidade sagrada e terrível.

    Com a mesma lentidão majestosa, ela se virou e caminhou de volta para o rio, desaparecendo sob a superfície sem deixar sequer uma ondulação.

    Por vários minutos que se estenderam como uma eternidade, nenhuma das quatro guerreiras da Tribo da Floresta Eterna ousou se mover ou emitir qualquer som. O que haviam testemunhado transcendia qualquer experiência anterior.

    — Aquilo… — começou Hanna, a voz um fio trêmulo. — Eu senti… senti uma tristeza nela… uma dor antiga… como se estivesse se despedindo de um filho perdido.

    — A Rainha Iara — confirmou Lyra, ainda pálida. — Mas corrompida. Profanada. E, ainda assim… ela o protegeu. Ela nos viu. Ela… pediu nossa ajuda?

    — E o que é aquela… coisa… que ela conjurou sobre a pedra? E por que a Entidade das Águas deixaria aquela coisa ali, como uma… uma oferenda? — questionou Anara, sua voz rouca.

    Nayara finalmente se moveu, seus músculos destravando com um esforço visível.

    — Não sabemos. Mas o gesto foi claro. Ela nos confiou algo. Ou nos alertou sobre algo de imensa importância. — Seu olhar estava fixo no corpo inerte na praia. — Vamos observar. De perto. Mas com a astúcia da sucuri e a paciência da garça. Não sabemos o que ele é, nem os segredos ou os perigos que carrega consigo. —

    As guerreiras, ainda ocultas na borda da floresta, avançaram alguns passos, seus corações divididos entre o terror reverente do que haviam testemunhado e o peso da responsabilidade implícita no olhar da Iara. Observaram por um tempo que pareceu se estender por vários ciclos da lua. Nada. Ele jazia imóvel, como se a vida o tivesse abandonado.

    Então, o corpo se mexeu. Um espasmo violento. Tossiu, cuspindo água do rio. Ergueu-se sobre os joelhos, a cabeça pendendo. Olhou ao redor, os olhos vazios e confusos, completamente desorientado, e então, algo inacreditável aconteceu. Ele riu. Uma risada fraca, rouca, quase um soluço que se transformou em um som de triunfo bruto. Ergueu-se, cambaleante, pondo-se de pé com uma teimosia desesperada e gritou para o céu limpo do Norte, um urro de pura e selvagem libertação, um desafio à própria morte que o rondara.

    A vitória, no entanto, foi efêmera. O corpo, exausto, desabou novamente na areia escura, mergulhando em uma inconsciência profunda.

    Foi nesse exato momento que a coisa sobre a pedra brilhou. Um pulso de luz azul vibrante. O pequeno objeto, despertou. Ergueu-se no ar com um zumbido quase inaudível, flutuando até pairar ao lado do corpo caído.

    As guerreiras observaram, boquiabertas, boquiabertas e com uma apreensão crescente, enquanto o objeto emitia feixes de luz analítica.

    — Uma… Esfera — murmurou Anara.

    Pequenos e finos braços metálicos emergiram de sua superfície – garras espirituais ou tentáculos de luz, pensou Hanna. Com eles, a esfera aparentemente removeu parasitas da pele, aplicou uma substância translúcida nos cortes.

    A tecnologia em ação era de uma complexidade e precisão que desafiava qualquer compreensão que possuíam. Então, com uma agilidade que desmentia sua forma esférica, disparou para o alto, subindo em linha reta com uma velocidade espantosa, até desaparecer brevemente acima das copas das árvores mais altas. Retornou momentos depois com a mesma rapidez, trazendo consigo o que pareciam ser tufos de folhas verde-escuras e raízes finas e nodosas. Ele processou esses elementos botânicos dentro de si, e as guerreiras puderam ver luzes piscando em seu interior através de pequenas frestas, como se um xamã poderoso realizasse um ritual de cura acelerado. Logo depois, administrou uma substância espessa e dourada diretamente na corrente sanguínea do jovem através de um dos ferimentos.

    O corpo, embora inconsciente, pareceu reagir, sua respiração se tornando mais regular.

    — O que… o que é essa coisa? — Hanna sussurrou, a voz um misto de fascínio e pavor, os olhos fixos na esfera que agora pairava protetoramente sobre o jovem.

    — Um espírito de metal dos Povos Antigos? — arriscou Lyra, a voz cheia de um assombro cauteloso. — Ou uma armadilha engenhosa de Anhangá, de um tipo que nunca vimos?

    — Seja o que for, está determinado a manter aquele ser vivo — observou Anara, sua desconfiança natural lutando contra a evidência de seus olhos. — Mas por quê? E quem é este para merecer a intervenção da Iara e a guarda leal de um… artefato tão poderoso e estranho?

    Nayara permaneceu em silêncio por mais um momento, seu olhar calculista pesando todas as variáveis daquela situação sem precedentes. O gesto enigmático da Iara. A sobrevivência inexplicável do jovem. A estranha máquina que o curava com uma eficiência sobrenatural. Análise… falhou, pensou, sua mente tática em curto-circuito. Variáveis… desconhecidas. Isto não é combate. É um presságio manifesto. A missão acabara de se tornar infinitamente mais complexa.

    O silêncio que se abateu sobre o vale era espesso como resina velha, uma quietude viscosa que se agarrava aos corpos das quatro guerreiras, solidificando o ar, tornando cada inspiração um ato de cautela. A esfera enigmática, continuava a pairar sobre o corpo inerte, sua luz azulada vibrando num pulso lento e contínuo, um batimento cardíaco artificial na quietude da margem escura do rio.

    Na cobertura das árvores, Nayara observava, sua mente tática lutando para processar o impossível. Iara, a Noiva de Anhangá, devolvendo uma vida. E esta… coisa… curando-a com uma perícia que transcende a feitiçaria. A mensagem da Matriarca foi clara: observar. Mas isto não é mais observação. Isto é um presságio manifesto, e Kainoa precisa saber.

    — São perigos que ainda não podemos nomear — Nayara finalmente disse, sua voz um sussurro tenso que mal cortava o som distante e agourento do rio. — A Entidade das Águas não o teria trazido à margem sem um propósito, nem aquela… coisa… o atenderia com tanto afinco se ele fosse um simples desgarrado das Terras de Anhangá. — Ela varreu o olhar entre suas companheiras, a decisão endurecendo suas feições. — Não podemos permitir que uma ameaça desconhecida desta magnitude permaneça sem investigação em nossas fronteiras.

    — Não podemos simplesmente deixá-lo ali, — a voz tensa e seca de Anara cortou a imobilidade, soando mais alta do que pretendia no silêncio opressor. Seu semblante normalmente impassível traía uma inquietação profunda. — Seja o que for, se ele veio das Terras de Anhangá, pode carregar a corrupção em si. Ou algo muito pior. — Se ele se levantar como uma daquelas crias da podridão… pensou, a mão já no facão.

    Nayara manteve o olhar fixo no jovem, o peso da responsabilidade gravado em sua expressão austera. — O que quer que seja aquilo, o jovem, a esfera, a intervenção da própria Iara, carrega um poder que pode desestabilizar o equilíbrio precário que lutamos tanto para manter. Se não entendermos sua natureza, se não soubermos suas intenções, corremos o risco de que este perigo, seja ele qual for, encontre o caminho sinuoso até o Coração de Anani, até o seio de nossa tribo. — Por fim, um suspiro quase imperceptível escapou de seus lábios antes de erguer a mão com um gesto tenso, a decisão tomada, fria e afiada como obsidiana.

    — Avançaremos, — declarou. Sua voz, no entanto, não carregava a rigidez de uma ordem comum. Havia um peso nela, uma gravidade que transcendia o comando – o peso de quem sabe que está prestes a cruzar um limiar sem retorno, a mergulhar em águas desconhecidas e potencialmente venenosas. — Descobriremos o que é isso. Quem é ele. O que carrega em seu corpo e em sua alma. O que busca em nossas fronteiras. E se houver perigo… o enfrentaremos aqui, longe do coração da floresta. Antes que ele possa se aproximar de nosso povo. É nosso dever sagrado, como guardiãs, descobrir o máximo possível, aqui e agora, antes que seja tarde demais e a sombra do sul encontre uma nova fresta para se infiltrar em nosso lar. —

    Seus olhos experientes pousaram então em Hanna, a mais jovem do grupo, cujo rosto ainda carregava o assombro pálido e o medo cru do que haviam testemunhado. A respiração da jovem era visivelmente acelerada, traindo a mistura de pavor e um fascínio perigoso que a consumia.

    — Mas você, Hanna… — Nayara ordenou, sua voz agora desprovida da suavidade de uma mentora, mas ressoando com o peso da autoridade de uma comandante em uma missão de vida ou morte, uma missão que poderia selar o destino de todas. Havia também um tom tingido de uma gravidade quase maternal, raramente usado em campo. Kainoa me mataria se algo acontecesse a esta pequena luz…, mas a mensagem precisa chegar — Você não prosseguirá conosco nesta incursão imediata. Sua tarefa, neste momento, é outra, e de igual importância. Retorne à tribo imediatamente. Use as trilhas secretas que apenas as iniciadas mais ágeis conhecem, seja mais rápida que o vento que corta as copas, mais silenciosa que a coruja na caçada noturna. Alerte o *Abaeté Rekó*. Descreva cada detalhe: a queda, a aparição da Iara Profanada, a estranha esfera e sua cura inexplicável, o olhar da Rainha das Águas sobre nós. Diga-lhes que encontramos algo que transcende nosso conhecimento ancestral, um poder que não podemos prever nem mensurar. Diga-lhes que, se não retornarmos até o próximo ciclo completo da lua cheia – o terceiro ciclo a partir desta noite –, devem selar as passagens do sul, preparar as barreiras espirituais e convocar as caçadoras do norte. A segurança de nosso povo, a continuidade de nossa linhagem, depende da sua velocidade, da sua clareza e da sua coragem para levar esta mensagem. Entendeu?”

    Hanna sentiu um frio percorrer sua espinha. O rosto da jovem empalideceu, e ela abaixou o olhar, o corpo subitamente imóvel. Uma onda de recusa teimosa, de um desejo profundo de não ser novamente posta de lado, de provar que era mais do que a “estrangeira acolhida”, endureceu seu olhar normalmente suave quando ela finalmente o ergueu.

    — Você me ouviu, guerreira? — insistiu Nayara, uma nota de severidade infiltrando-se em sua voz. — Este é um campo que exige experiência e discernimento. —

    Hanna fechou os olhos por um breve instante, a mandíbula tensa. Inspirou profundamente e ergueu o queixo, os olhos brilhando com uma determinação crua

    — Não, Comandante — ela respondeu, a voz surpreendentemente firme, embora baixa e vibrando com uma emoção contida. — Eu não vou voltar. Meu lugar é aqui, com vocês, minhas irmãs de clã. Sou uma guerreira. mesmo que meus pés ainda não tenham trilhado tantas luas quanto os seus. Fui escolhida para esta patrulha, e meu juramento foi de proteger a tribo ao lado de minhas companheiras, não de fugir ao primeiro sinal de um perigo que não compreendemos. — Sua voz ganhou um pouco mais de força, a hesitação dando lugar a uma firmeza inabalável.

    — Se for para morrer, morrerei com vocês. Não voltarei. Não agora. Não depois de tudo o que vi. Eu senti… Aquela esfera… há algo nela que… me chama. Se vamos encarar algo maior do que nós, então… eu quero estar com vocês. Mesmo que seja para morrer. Não pedi para vir, mas aceitei as provações, fui testada, e agora… agora querem me deixar para trás quando tudo se torna real? —

    raramente vista, brilhou em seu semblante normalmente controlado. Ela deu um passo à frente no galho, o rosto a poucos centímetros do de Hanna. O olhar que lançou sobre a novata era de aço temperado, mas algo no fundo daqueles olhos experientes vacilava – um ponto frágil onde o dever do comando encontrava o temor de perder uma filha de consideração, uma guerreira em formação. — Hanna, isto não é um treinamento para testar sua bravura — retrucou ela, o tom oscilando entre a frustração de uma líder e a preocupação genuína de uma mentora. — É um perigo real, de uma natureza que nem mesmo eu, com todas as minhas cicatrizes e estações vividas, consigo mensurar completamente. Sua vida é preciosa para a tribo, e a informação que você carrega, a mensagem que deve entregar, é vital. Sua missão de retornar e alertar é tão importante, se não mais, do que a nossa de investigar. Morrer é fácil, Hanna. É o caminho dos tolos e dos desesperados. Permanecer viva para carregar a história, para alertar os outros, isso sim exige uma coragem diferente. Isto não é covardia. É comando. E o comando existe para preservar vidas, não para desperdiçá-las em orgulho fútil. Se você morrer aqui por teimosia, espírito algum a acolherá com honra. Você não está pronta para algo assim.

    — Não é orgulho, Comandante — rebateu Hanna, o queixo ainda erguido, embora sua voz embargasse levemente. — É o que eu sou. Eu preciso provar, a mim mesma e à tribo, que sou uma de vocês, não apenas a criança encontrada. Se eu fugir agora, o que serei quando voltar? Um eco vazio? Serei apenas a que foi poupada. Ser deixada para trás não me ensinará nada sobre a coragem que a senhora menciona! Se for para morrer… que seja ao lado de minhas irmãs!

    A tensão entre as duas era palpável. Anara observava a cena em silêncio, sua expressão indecifrável, mas havia um brilho de algo que poderia ser respeito pela coragem da jovem em seu olhar severo. Foi Lyra quem interveio suavemente, pousando uma mão leve no ombro tenso de Nayara.

    — Comandante — Lyra disse, sua voz calma como o murmúrio de um riacho. — O coração de Hanna fala com a coragem de uma leoa jovem. Ela já viu demais para não carregar o peso desta noite em sua alma. Fugir agora só a despedaçaria por dentro. A floresta a chamou até aqui. A Iara a viu. Não se manda embora quem os espíritos já convocaram. E talvez… talvez haja um propósito em ela estar aqui. Seus olhos, a ‘Luz que Desperta’, viram o feixe antes de qualquer uma de nós. Sua alma parece ressoar com a estranheza deste lugar de uma maneira que nós, com nossos escudos de experiência, talvez já não consigamos sentir.

    — Ela é jovem, Lyra… — sussurrou a comandante, a rigidez em sua postura começando a ceder.

    — Sim, — concordou a rastreadora, um leve e enigmático sorriso tocando seus lábios. — E é por isso que talvez ela possa ver o que nós, com nossos olhos cansados pela guerra e pelo tempo, já esquecemos como enxergar. — Lyra se virou novamente para a jovem, sua voz agora firme, mas ainda com aquela serenidade profunda.
    — Mas há uma solução, talvez. Deixe-a ficar, Nayara. Mas com uma condição, que deve ser tão sagrada quanto qualquer juramento à Lua. —
    Ela se voltou para Hanna. — Hanna, você permanecerá na retaguarda, protegida pela força de Anara e pela minha visão. Recue dois passos atrás de nós o tempo todo. Atrás de mim. Atrás de Anara. Não fala. Não se move sem ordem direta. Seus olhos aguçados serão nossa vigia extra, seus ouvidos jovens, nosso alerta antecipado. Mas ao primeiro sinal de perigo real e avassalador, ao primeiro comando meu ou de Anara para que fuja, você não hesitará um único instante. Você correrá. Correrá como se o próprio Anhangá estivesse em seus calcanhares, e levará o aviso à tribo. Isso não será covardia, jovem guerreira; será o cumprimento de seu dever mais sagrado para com aquelas que podem tombar para que você e a mensagem sobrevivam. Se algo sair terrivelmente errado, se sentirmos a mais sutil das ameaças que possa nos superar… ela corre. Sem hesitar. Sem heroísmo. Volta para a tribo. Corre como se carregasse o fogo do Curupira em seus pés. Não é uma negociação, Hanna, é uma contingência. Sua vida pode ser a única mensagem que chegará. Você compreende a gravidade deste pacto? Estamos entendidas? —

    Hanna olhou para a expressão séria de Lyra, depois para o rosto agora pensativo de Nayara. A teimosia em seu olhar juvenil cedeu lugar a uma compreensão sombria da responsabilidade que lhe estava sendo confiada, mesmo que de forma condicionada. Engoliu em seco, o nó em sua garganta apertando, mas o coração estranhamente firme, aquecido por uma nova resolução. Assentiu lentamente, sua postura relaxando um pouco da rigidez desafiadora.
    — Eu… eu compreendo, Lyra. E obedeço, Comandante. Sim, Comandante. Não as decepcionarei.

    Nayara sustentou o olhar de Hanna por mais um longo momento. Por fim, um suspiro pesado, quase inaudível, escapou de seus lábios.
    — Que assim seja, então — ordenou ela, a voz baixa, mas cortante. — Que os Encantados tenham misericórdia de todas nós se esta decisão se provar um erro fatal. Avançaremos.
    — Lyra, mantenha um olho nela e em nossos rastros. Anara, cubra o flanco direito. Eu tomo a dianteira. —

    Com a nova e tensa dinâmica estabelecida, elas iniciaram sua lenta e perigosa aproximação. Nayara e Anara na vanguarda, Lyra e Hanna logo atrás.

    Foi então que a esfera se virou para a direção delas. Sua luz azul central, que antes pulsava suavemente, subitamente piscou em um padrão de alerta rápido e intenso. Ela girou em sua posição, e um feixe amplo de luz azulada varreu a encosta na direção das guerreiras.

    — Abaixo! — Nayara sibilou.

    As quatro se jogaram ao chão, buscando a cobertura escassa das rochas, no exato instante em que o feixe estranho varria a área onde estiveram. Do ponto de vista delas, a coisa as havia detectado e reagido.

    E então, o que viram a seguir as fez prender a respiração. A esfera, como se desesperada para neutralizar a ameaça que elas representavam, concentrou sua energia. Uma luz intensa brilhou em seu núcleo como uma gota de sol líquido, e então disparou um pulso elétrico calculado, direcionado com precisão cirúrgica ao peito do jovem adormecido.

    Para as guerreiras, aquilo foi um ataque.

    O jovem arqueou-se violentamente na areia, como se tivesse sido atingido por um raio invisível, os olhos se arregalando em um despertar brusco, selvagem e instantâneo. Ele se impulsionou para cima em um único movimento fluido e animalesco, não como um homem acordando, mas como uma fera encurralada, seus instintos de sobrevivência gritando em alerta máximo.

    — Pela Mãe! — Anara exclamou, a voz um misto de surpresa e alerta, sua flecha já apontada firmemente para o peito do jovem. Nayara, com a naginata em guarda baixa, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Lyra recuou um passo instintivo, os chakrams firmes em suas mãos. Hanna, atrás delas, prendeu um grito, os olhos fixos na figura ameaçadora.

    Os olhos do jovem, ainda turvos pela inconsciência, mas agora ardendo com uma intensidade febril e quase predatória, fixaram-se nelas. E, sob a luz crescente da manhã, elas viram uma mancha escura em seu pulso direito brilhar com uma tênue, mas sinistra, luminescência avermelhada, um pulsar profano que parecia ecoar a batida selvagem de seu coração.

    Que tipo de feitiçaria é esta? Nayara preparou-se para o combate, a mente tentando categorizar uma ameaça que não se encaixava em nenhum padrão conhecido.

    Mas então, tão subitamente quanto a selvageria o possuiu, ela pareceu vacilar. A luminescência da marca tremeluziu e diminuiu, quase se apagando. A tensão em seus ombros cedeu. A cabeça, antes erguida em desafio, pendeu para o lado, e a intensidade febril em seus olhos deu lugar a uma confusão palpável, a uma dor profunda. Ele piscou, uma, duas vezes, como se a luz da manhã o ferisse. Seus olhos varreram as guerreiras, depois suas próprias mãos, depois a paisagem ao redor, a expressão de quem acorda de um pesadelo apenas para encontrar-se em outro, igualmente incompreensível.

    — O que…? — Anara murmurou, a ponta de sua flecha ainda firme, mas a certeza do ataque iminente se esvaindo. — A sombra… recuou?

    Lyra, que sentira a onda de malevolência se dissipar, respondeu em um tom baixo, cheio de assombro:
    — O espírito que o cavalgava… hesita. Ou foi contido por algo mais forte dentro dele.

    Mas enquanto as outras viam apenas a mancha escura se aquietar, o olho branco de Lyra percebeu mais. Por uma fração de segundo, no limiar entre o visível e o invisível, ela viu uma tênue serpente de luz líquida se tecer ao redor do pulso do jovem, exatamente sobre a marca profana. A criatura de luz mordeu a própria cauda, formando um círculo perfeito que brilhou com um pulso de energia pura e silenciadora, que pareceu esmagar os últimos resquícios da luminescência vermelha. E então, tão rápido quanto surgiu, o selo de luz desapareceu, deixando para trás apenas a pele ferida e o mistério.

    Uma serpente que devora a si mesma… O pensamento atravessou a mente de Lyra não como uma revelação, mas como o eco de uma canção esquecida. Onde eu vi isso antes? A imagem era um fragmento de uma lenda contada por sua avó, uma história sussurrada sob os céus gelados das Montanhas do Norte. Ela não conseguia se lembrar do nome do conto, nem das palavras exatas, mas o sentimento que o símbolo carregava era inconfundível. Sua natureza era a de conter, de fechar um ciclo, de aprisionar algo terrível dentro de seus próprios limites.

    Seus olhos fixaram-se na marca agora dormente no pulso do jovem, e ela entendeu que o perigo que ele carregava era muito mais complexo, e talvez muito mais antigo, do que qualquer uma delas poderia imaginar.
    — A mancha permanece — concluiu ela em voz alta, a frase agora carregada de um significado novo e mais profundo.

    Nayara observou atentamente. O jovem à frente delas agora parecia apenas isso: um jovem. Ferido, confuso, assustadoramente vulnerável apesar da demonstração de poder de instantes atrás. Que jogo é este? Uma armadilha de Anhangá, ou algo mais? A Iara o salvou… por quê? E esta coisa… agora silenciosa… Seu olhar se desviou brevemente para a esfera inerte.

    Hanna, vendo a mudança no jovem, sentiu o nó em seu estômago afrouxar um pouco, mas a imagem daqueles olhos em chamas ainda queimava em sua retina. Ele… ele parecia um inimigo…, mas agora… — Ele… ele parece perdido — Hanna sussurrou, mais para si mesma do que para as outras, a tensão em seu corpo diminuindo um pouco, mas o medo ainda presente.

    Anara franziu o cenho, mas não baixou o arco. — Perdido ou esperando o momento certo. Não confio em nada que venha daquelas terras.

    Lyra observava, uma expressão de profunda concentração. — A energia… mudou. A sombra se retraiu, mas não desapareceu. Está… adormecida? Ou contida?

    O jovem levou uma mão trêmula à cabeça, um gemido baixo escapando de seus lábios enquanto ele cambaleava levemente, a força parecendo abandoná-lo tão rápido quanto viera. O olhar que agora dirigia às guerreiras não era de ameaça, mas de um desamparo quase infantil.

    Nayara observou o jovem confuso, a maneira como ele olhava ao redor, a vulnerabilidade repentina em sua postura. Ela fez um sinal quase imperceptível com a mão, *Nhekatu’arã* (“Cautela. Observem.”), e as guerreiras, embora ainda alertas, relaxaram minimamente sua postura de ataque. A situação era mais complexa do que um simples confronto. Elas avançaram alguns passos lentos, a cautela ainda guiando cada movimento, o mistério sobre o jovem e a esfera apenas se aprofundando.

    A adrenalina do confronto imediato cedeu lugar a uma profunda e perturbadora incerteza. A incerteza, por sua vez, deu lugar à ação calculada. As guerreiras não avançaram simplesmente; elas se espalharam, cada uma movendo-se com a graça silenciosa de um predador cercando uma presa desconhecida. Anara deslizou para a direita, o arco ainda tenso, a flecha seguindo cada micro movimento do jovem. Lyra moveu-se para a esquerda, os chakrams baixos, mas prontos, seu olho vidente perscrutando não apenas o corpo do rapaz, mas a própria energia que o envolvia. Hanna, seguindo o pacto, manteve-se na retaguarda, um triângulo de proteção se formando ao seu redor, seus olhos arregalados absorvendo cada detalhe da cena impossível.

    Não foi uma aproximação linear, mas um cerco silencioso. Uma teia tática tecida em segundos.

    O jovem no chão era um paradoxo. Minutos antes, uma manifestação de fúria selvagem, o portador de uma marca que pulsava com uma energia profana. Agora, ele era apenas… um rapaz. Ferido, enlameado, seus olhos vazios de fúria, agora repletos de uma dor primordial e uma confusão que beirava a inocência. Ele as observava se aproximarem, não com desafio, mas com o medo desamparado de um animal encurralado que não compreende a natureza de sua própria armadilha.

    O sol da manhã começava a romper as névoas do vale, iluminando a cena com uma luz crua e impiedosa. A pergunta pairava no ar, invisível e cortante como uma lâmina de obsidiana: amigo ou inimigo? Vítima ou isca?

    Com um movimento fluido e inaudível, que era mais um deslizar do que um passo, Nayara quebrou a imobilidade. Ela fechou a distância final. O cabo de sua naginata girou em sua mão, e a ponta afiada da lâmina ancestral parou, imóvel, a um palmo do coração do jovem, sem tocá-lo, mas prometendo um fim instantâneo à menor hesitação.

    O rapaz enrijeceu, os olhos arregalados fixos no aço frio.

    Nayara olhou para ele. Seus olhos de comandante percorreram o cenário da impossibilidade: a queda de um penhasco que nenhum homem sobreviveria. O resgate pela Noiva de Anhangá, uma entidade que só trazia a morte. A cura por uma máquina que não deveria existir. E aquela marca em seu pulso, agora dormente, mas cuja lembrança de seu brilho profano ainda ardia em sua mente.

    Sua voz, quando finalmente falou, não era de raiva, nem de compaixão. Era firme e clara como a luz da lua em noite de tempestade, a voz de uma guardiã exigindo a verdade de um mistério que ousara nascer em sua fronteira.

    — Por que você ainda está vivo?

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